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Breve estudo sobre a legalidade dos exames psicotécnicos com caráter eliminatório em concursos públicos

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Resumo:


  • Exame psicotécnico pode ser utilizado como fase eliminatória em concursos públicos.

  • Para atender ao princípio da legalidade, é essencial definir critérios claros e objetivos para eliminação dos candidatos.

  • O edital do concurso não pode criar critérios de investidura no cargo, sendo necessário um ato regulamentar para definir o perfil profissiográfico.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Basta que esteja prevista em lei a submissão a exame psicotécnico para que o candidato possa ser excluído de certame por inaptidão?

Palavras-Chave: Concursos Públicos. Exame Psicotécnico. Princípio da Legalidade. Caráter Eliminatório.

Sumário: Introdução – Notas sobre o princípio da legalidade na Administração Pública – Da legalidade do exame psicotécnico em concursos públicos e a necessidade de complemento regulamentar – Da inadmissibilidade de definição criativa do perfil profissiográfico no edital do concurso – Conclusão – Referências bibliográficas.


Introdução

O presente artigo cuida de um dos temas mais tormentosos e complexos do acesso aos cargos públicos no Brasil, o exame psicotécnico eliminatório. Obviamente que não buscamos esgotar o tema, mas nos ateremos, pelo menos neste trabalho, a apenas uma das facetas desse tipo de exame nos concursos públicos. Ressaltamos, porém, que este é o primeiro de três artigos que cuidam do problema envolvendo essas espécies de avaliações em concursos, sendo o segundo referente à objetividade dos exames psicotécnicos aplicáveis e o último referente à recorribilidade dos resultados, encerrando, assim, a trilogia facetária concernente ao tema, dentro das perspectivas jurídicas.

O presente trabalho, portanto, encontra-se calcado numa sistemática de pesquisa doutrinária e jurisprudencial, buscando com a análise interpretativa desses elementos formular uma teoria aplicável à espécie que sirva, ao menos, de luz para os estudantes, candidatos, advogados, juízes, promotores de justiça, administradores, enfim, aos operadores do direito para que possamos, ao enfrentarmos essa realidade concreta, sabermos minimamente do que estamos cuidando, facilitando com isso não só a avaliação nos concursos públicos como também a defesa em juízo e administrativamente dos candidatos que se sentirem prejudicados nas avaliações.

Não é segredo para ninguém que o exame psicotécnico, nos concursos públicos pelo menos, tem em torno de si uma mística intransponível, pois se revela, muita das vezes, como a fase mais obscura dos concursos, onde toda preparação pode não servir para nada, já que mergulhamos em águas escuras e quase nunca visitadas.

Assim, buscamos, neste primeiro trabalho, enfrentar o ponto de partida para qualquer avaliação psicológica em concurso público com caráter eliminatório, qual seja, a legalidade do uso desses exames e nos ateremos, portanto, apenas aos aspecto da legalidade, não tratando, por lógico, com profundidade sobre a natureza jurídica desses exames, coisa que deixamos por uma questão didática para o segundo artigo, que é referente à objetividade dos exames.

Desta forma, no primeiro item buscamos examinar e reexaminar o princípio da legalidade na Administração Pública, já num segundo momento cuidamos da legalidade do exame psicotécnico em concursos públicos e a necessidade de complemento regulamentar para a sua admissão, no terceiro item enfrentamos a inadmissibilidade de definição criativa do perfil profissiográfico no edital do concurso, concluindo o trabalho no sentido de que não basta a previsão nua e crua na lei da carreira da necessidade de realização do exame psicotécnico, mas de que é fundamental que a lei seja completa, fazendo-se completar por ato regulamentar administrativo definindo os critérios para que um candidato seja considerado apto num exame psicotécnico, sob pena de a previsão de eliminação ser norma desprovida de eficácia e, por conseguinte, incapaz de eliminar o candidato considerado inapto, pois, simplesmente, inexistem legalmente tais critérios.


Notas sobre o princípio da legalidade na Administração Pública

Dentre todos os princípios que balizam a atuação administrativa, talvez o da legalidade seja, ou pelo menos tenha sido no último século, o mais festejado dos princípios que regem a Administra;cão Pública. Entrementes, precisamos gizar, com certo rigor, os contornos deste princípio tão importante.

Assim, logo de início, uma indagação se faz imperiosa: será que o princípio da legalidade se resume ao fazer ou deixar de fazer algo em virtude da lei? Acreditamos que não! Pode parecer que estejamos negando a ideia largamente difundida na nossa sociedade jurídica e cultural. Mas, desde logo, afirmamos que isso não é verdade, porque, na realidade, o que o princípio da legalidade revela é a necessidade de fazer e deixar de fazer algo em virtude da norma jurídica, que, como sabemos, não se restringe à lei.

Há a lei e há a norma jurídica. Nem toda norma jurídica é lei, mas toda lei é uma norma jurídica. Por isso, é importante repisar que o princípio da legalidade não se refere só à lei, mas a toda e qualquer norma jurídica! O princípio de legalidade é firmado na premissa de que a lei deve ser obedecida por todos: povo, legislador, julgador e administrador. Entretanto a restrição dessa premissa à acepção estrita de lei é conclusão, fatalmente, imprestável e atualmente já se encontra superada.

Momentos há em que a própria lei, sozinha, é insuficiente ao atendimento do princípio da legalidade, o que nos obriga a pensar o problema da legalidade por um prisma maior, mais completo e complexo, pois ocasiões existiram onde a legalidade só será atendida com a fusão de diplomas heterogêneos (lei e decreto, e.g.), oferecendo-nos um contato com a juridicidade ou normatividade.

Só a título de esclarecimento, basta que lembremos do uso dos costumes no direito tributário. Será que a atuação da Administração Pública, com fundamento em costumes jurídicos tributários, macula o princípio da legalidade? Evidentemente que não! Um princípio, pela própria natureza significativa do signo, é algo ligado à origem1.

Assim, dentro de uma evolução histórica da lei como fonte do direito, podemos, com certa facilidade, identificar que o princípio da legalidade é comum aos países de tradição latino-romana ocidental, onde o costume passou a ser norma jurídica de menor valor. O Brasil, por exemplo, filiado a essa tradição, adotou, logo na sua Carta Maior, o princípio da legalidade.

Não podemos esquecer que a legalidade, como princípio, surgiu com a finalidade de melhor regrar as relações intersubjetivas de uma determinada nação. Porém, devido à revolução francesa, a legalidade passou a ser vista também como uma garantia de liberdade frente ao Estado, uma espécie de certeza que o cidadão necessitava para viver seguro dos desmandos do príncipe, evoluindo a ideia anterior de servir fundamentalmente à regulamentação das relações privadas, onde passa a prevalece a autonomia da vontade.

E dentro dessa perspectiva, não é difícil perceber que essa finalidade está intricada na legalidade atual. Como garantia fundamental que é, o princípio da legalidade é revelado não só na subsunção do fato à lei, mas nos balizamentos necessários à caracterização de todo o fenômeno necessário à jurisdicização dos fatos sociais, sobretudo administrativos.

Assim, dentro da dinâmica administrativista, o princípio da legalidade consiste não só na proibição de o administrador fazer o que a norma jurídica não prevê, mas, também, na necessária observância ao que ela determina. Só que este determinar tem que vir expresso em realidade completa, a fim de dissolver a possibilidade de entronização do arbítrio em detrimento da própria discricionariedade e mesmo da legalidade.

Em suma, o princípio da legalidade revela-se, na acepção moderna, como a imperiosa necessidade, de existência e respeito, de normas destinadas a assegurar ao administrado a plena segurança de que não ficará ao alvedrio irracional dos desmandos do Estado-Administração, como consequente natural da primeira dimensão dos direitos fundamentais.


Da legalidade do exame psicotécnico em concursos públicos e a necessidade de complemento regulamentar.

Vivemos, queiramos ou não, um período de indiscutível subordinação à Constituição. Passamos por crises quanto ao papel dos intérpretes e dos operadores do direito, é verdade. Mas, a regra ainda é a de que todo o direito emana de normas jurídicas pré-definidas pelo legislador e com o exame psicotécnico em concurso públicos não seria diferente.

Com o advento da Constituição de 1988, que definiu, em seu art. 37, os princípios norteadores da Administração Pública, o acesso a cargos públicos efetivos e vitalícios e a empregos públicos passou obrigatoriamente a se dar através de concurso público.

Assim, o administrador público tem o dever de obedecer aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência quando estiver no trato das coisas públicas, por essa razão o concurso público para o provimento de cargo ou emprego público tem que respeitar os critérios definidos na Constituição e na norma jurídica.

E aqui somos obrigados a fazer um comparativo didático importante. A norma penal fere a liberdade da pessoa, de forma similar e por razões igualmente aceitas socialmente, o concurso público limita a liberdade do acesso ao cargo público. Desta forma, já que estamos diante de normas que limitam a liberdade do cidadão, precisamos enxergar essa limitação de modo bem claro, pois se a norma penal exige, para cumprir o princípio da legalidade, que sua aplicação somente seja permitida nos termos delineados pela parte geral do Código Penal2, com razão semelhante a limitação ao acesso a cargo público, mediante a seleção em concursos públicos deve ter os seus lindes de maneira objetivamente clara.

Como consideramos que cada carreira, devido ao seu mister, possui um regulamento próprio, temos que imaginar serem estes regulamentos os cumpridores do princípio da legalidade, sobretudo material. São eles que definem, para cada carreira o que pode e o que não pode ser exigido como requisito na seleção pública.

Atualmente, sob o frágil pálio de uma afirmação – repetida e cristalizada no tempo – de que o edital do concurso é a lei do certame, vemos editais com verdadeiras regras mirabolantes de eliminação de candidatos a cargos públicos. Não podemos esquecer que o edital é sim a lei do certame, mas ele em si mesmo não é a lei de ingresso na carreira, ele é antes de tudo um ato administrativo submetido, portanto, à lei anterior e desprovido de poder de criação ou inovação jurídica no campos dos direitos subjetivos.

Assim, somente a lei pode estabelecer o exame psicotécnico como requisito necessário à aprovação em concurso público, consoante prescreve a norma constitucional do art. 37, II, in verbis: “a investidura em cargo ou emprego público depende de aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos, de acordo com a natureza e a complexidade do cargo ou emprego, na forma prevista em lei, ressalvadas as nomeações para cargo em comissão declarado em lei de livre nomeação e exoneração”.

E nesse mesmo sentido é a jurisprudência nacional, que destaca, de forma mansa e pacífica, a necessidade primária, para a validade do exame psicotécnico como fase em concursos públicos, de anterior previsão em lei do exame, in verbis:

Súmula 686 STF: "só por lei se pode sujeitar a exame psicotécnico a habilitação de candidato a cargo público."

Se a lei exige, para a investidura no cargo público, o exame psicotécnico, não pode o Judiciário dispensá-lo ou considerar o candidato aprovado nele, sob pena de ofensa ao art. 37, I, da Constituição. (AI 422.463-AgR, Rel. Min. Ellen Gracie, julgamento em 12-8-03, DJ de 19-9-03)

Exame psicotécnico como condição para ingresso no serviço público: Agente da Polícia Federal: se é a lei que o exige, não pode ser dispensado, sob pena de ofensa à Constituição, art. 37, I. (RE 294.633-AgR, Rel. Min. Carlos Velloso, julgamento em 22-10-02, DJ de 22-11-02)

Como vemos, a ideia é a de que se a lei exige, a lei deve ser cumprida e o exame não pode ser suprimido por decisão judicial alguma. Mas, então, será que basta a simples e literal previsão na lei de que para ser considerado aprovado em determinado concurso público o candidato deve ser aprovado em exame psicotécnico?

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E a resposta, portanto, deixamos a cargo da jurisprudência pátria, que assevera ser assegurado ao candidato que o exame seja objetivo, recorrível e legal, conforme se extrai dos arestos do STJ3. Mas apenas nos ateremos, neste trabalho, ao exame da legalidade do psicotécnico.

Aqui, portanto, somos obrigados a enfrentar um outro problema de relevo: basta a previsão em lei de submissão a exame psicotécnico para que o candidato possa ser excluído de certame por inaptidão?

A nossa resposta é negativa e explicamos o porquê. Celso Antônio Bandeira de Mello leciona que:

Exames psicológicos só podem ser feitos como meros exames de saúde, no qual se inclui a higidez mental dos candidatos, ou no máximo – e, ainda assim, apenas no caso de certos cargos ou empregos –, para identificar e inabilitar pessoas cujas características psicológicas revelem traços de personalidade incompatíveis com o desempenho de determinadas funções.

Entretanto, a nosso juízo, o ponto nodal do exame psicotécnico em concurso público, no que diz respeito à legalidade, está na capacidade de inabilitar pessoas cujos traços de personalidade se revelem incompatíveis com o cargo pretendido. Noutras palavras, dar ao psicotécnico a capacidade de inabilitar candidatos, como fase específica de concurso público, exige atendimento ao princípio da legalidade, mas à legalidade formal, e não à gizada nos termos definidos no item anterior, pois a necessidade aqui é de normatividade plena e não apenas de legalidade formal.

Logo, prever que o candidato tem que se submeter a exame psicotécnico é necessário, mas não é suficiente à eliminação dele no concurso público. Explicamos: temos de estremar o verdadeiro significado da previsão em lei de exame psicotécnico com caráter eliminatório.

A simples previsão, em lei, de um exame eliminatório, sem maiores regramentos, faz dessa lei um ato normativo incompleto, carente de complementação para preenchimento de sua plenitude normativa, tal qual ocorre com as normas constitucionais de eficácia limitada ou mesmo as normas penais em branco ou normas exigentes de exercício de poder regulamentar, pois é fácil dito que o exame psicotécnico necessita de expressa previsão em lei para que ele possa ser aplicado em concursos públicos.

Assim, a lei, se quiser vincular alguém, sobretudo o cidadão, especialmente na restrição de seus direitos, deve ser plena e clara e completa, não basta apenas a lei, exige o Constituinte norma jurídica plena, daí a ideia de bloco de constitucionalidade. Logo, o dito simplório da expressa previsão em lei tem que ser analisado sob aspecto material e ser entendido por expressa previsão de norma jurídica plena, que vai da lei até os atos regulamentares a essa lei de forma completa e una.

E, para explicarmos de forma incisiva o problema, vamos nos socorrer dum exemplo prático. Imaginemos que uma lei estadual nº X, previsse que para a investidura no cargo de policial civil fosse necessário ter o candidato as "condições psicológicas e temperamentais adequadas para o exercício da função policial" e que estas condições deveriam ser apuradas em exames psicotécnicos, não estabelecendo quais exames deverão ser aplicados, tampouco os critérios de avaliação.

O professor Inocêncio Mártires Côelho, em aula exibida na TV Justiça, faz uma afirmação deveras importante, quando cuida da interpretação constitucional. Explica o professor que o texto responde corretamente a quem o questiona de forma igualmente certa. Assim, se queremos saber como ser considerado aprovado no exame psicotécnico temos que fazer uma pergunta fundamental ao texto: quais são as condições psicológicas e temperamentais adequadas por o exercício da função policial?

Vejam, a essa pergunta a resposta do texto é deveras importante, pois se ele nos responde de forma objetiva, clara e segura, estamos diante de uma norma completa; mas, se ao contrário, ele silencia ou não nos responde, é porque estamos diante de uma norma incompleta. Assim, no exemplo dado a resposta é silente, não sabemos quais condições e temperamentos são adequados.

E aqui, uma outra interrogação magna: seria legal ou constitucionalmente adequada a eliminação de candidatos nessa hipótese? Estariam atendidos os princípios constitucionais da igualdade, da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, etc.?

Não temos a menor sombra de dúvida de oferecer respostas veementemente negativas às perguntas acima. E aqui faremos uso de uma afirmação complexa, se mal-entendida pode levar o leitor a imaginar algo diverso do que será dito. Em hipóteses como as do exemplo acima, a eliminação do candidato é subjetiva porque é arbitrária e não porque o exame psicotécnico o seja.

A subjetividade aqui está como lado inverso da liberdade administrativa permitida pela constituição; é enaltecimento do critério arbitrário em detrimento da legalidade. É aqui, nesta “brecha” que, às vezes, os maus administradores públicos fazem uso de expedientes impronunciáveis para eliminar ou aprovar candidatos amigos ou inimigos seus, pondo por terra a própria finalidade do concurso público e impessoalidade e moralidade públicas.

Só a título de ilustração, apesar de não ser graduado em ciências psicológicas, pelo estudos que fizemos acerca do tema, as condições psicológicas a serem avaliadas podem variar desde a inteligência do examinado até a determinados aspectos da sua personalidade, havendo inúmeras escalas de enquadramento nos testes.

Observamos que, nessas matérias, não temos como definir nem sequer o que é normal, porque o exame psicotécnico não é uma prova, mas um exame de saúde e como tal deve ser encarado.

Logo, como a lei do exemplo acima não nos responde claramente o que ela quer e precisa para considerar adequado determinado candidato, temos, aí, uma hipótese clara advertida por José dos Santos Carvalho Filho de que: “Ao editar as leis, o Poder Legislativo nem sempre possibilita que sejam elas executadas. Cumpre, então, à Administração criar os mecanismos de complementação das leis indispensáveis a sua efetiva aplicação”4.

Logo, para que saibamos, com segurança jurídica, já que não há certo ou errado nesse tipo de avaliação, se um candidato é ou não adequado para o exercício da função policial, é precisamos de ato regulamentar à lei definindo quais são as condições psicológicas e temperamentais adequadas para o exercício da função policial.

Vejam, não precisamos aqui, no âmbito normativo geral, da definição dos testes que serão aplicados, e sim do que se busca avaliar e quais os limites de admissibilidade para a aprovação de alguém. E isso, apesar de estarmos sendo até insistentes, não é novidade, pois já é assim com as demais fases do concurso.

Só a título de exemplo, a Lei Orgânica do Ministério Público do Amazonas estabelece que para ser aprovado no concurso, o candidato deverá ter notas não inferiores a cinco nas fases objetivas e discursivas e média igual a seis para participar das provas oral e de tribuna, onde deverá ter igualmente média seis e notas mínimas igual a cinco e, somente, ao cabo dessas provas, os candidatos que tiverem média igual ou superior a seis seguem no concurso para as fases finais. Mas, vejam que a lei não definiu se a prova seria de múltipla escolha ou de verdadeiro ou falso, mas definiu que o critério para a aprovação na prova objetiva era ter uma nota igual ou superior a cinco pontos. Aí sim, nesse aspecto, atendeu-se à normatividade.

Entrementes, voltando ao caso do exemplo anterior, como inexiste na lei os requisitos de modo claro, como se faz necessário o complemento regulamentar da lei e o Executivo não o produziu, o que fazer?

Ora, somente podemos dizer que a lei do caso exemplificado é uma a lei sem eficácia plena e, por isso, desprovida de capacidade jurídica de eliminar um candidato em exame psicotécnico, até que sua regulamentação seja produzida e para casos posteriores a ela, evidentemente, pois permitir que haja a eliminação do candidato quando a norma jurídica do exame psicotécnico não é eficazmente plena, significa, doutra banda, chancelar a arbitrariedade administrativa em detrimento da segurança jurídica e dos princípios da moralidade, impessoalidade e legalidade. Por isso, se a norma legal existe e não está completa, mas o exame foi aplicado, só há uma saída juridicamente para o caso: a retirada da eficácia eliminatória, porque desprovida, já que a lei não a tem, da fase do concurso aqui impugnada.

E não podemos sequer imaginar que o Judiciário ao tomar tal decisão estará aprovando candidato em concurso público de forma contrária à Constituição, pelo contrário.

O administrador tem liberdade de agir, tem discricionariedade para definir quais as condições psicológicas e temperamentais adequadas, mas deve fazê-lo por meio de instrumento hábil que o vincule também, que dê à sua conduta livre a legitimidade da norma jurídica e não da liberdade desmedida.

Desse modo, a simples indicação das características do perfil do candidato é insuficiente para sua avaliação, sendo necessário estabelecer critérios balizadores e direcionadores, avaliando através de uma nota cada característica que deverá ser alcançada (como, por exemplo, o nível de agressividade que deve o candidato ter para ser considerado apto para o cargo, dentro de uma escala quantitativa).

Não basta, portanto, legalizar a exigência do psicotécnico, é necessário que se defina, ou em lei ou em instrumento legal hábil a complementar a lei, o perfil profissiográfico do candidato que a Administração Pública deseja selecionar. A definição do perfil psicológico ou profissiográfico do cargo por meio de ato regulamentar preenche o conteúdo da legalidade exigida para o psicotécnico.

E aqui temos um ponto interessante para exame. Numa escala de 0 a 100 de agressividade, qual será a escala ou o intervalo de valores a ser considerado ideal? Quem pode definir isso? Será que a comissão do concurso pode definir isso no edital apenas? Questionamentos magnos, com certeza, que enfrentaremos mais adiante.

O importante é enxergamos que o grande problema da legalidade dos exames psicotécnicos não está apenas na previsão em lei da submissão ao exame, mas nos desdobramentos acima expostos. Constar na lei que será exigido o psicotécnico para o ingresso na carreira não é suficiente para a satisfação da legalidade para a eliminação do candidato. Assim, se não houver o necessário complemento legal a essa norma, desautorizada estará qualquer eliminação dos candidatos nos concursos públicos.

Obviamente que, por uma questão de menor burocratização da Administração Pública, nós entendemos que essa regulamentação acerca do perfil profissiográfico deve vir por meio de Decreto Regulamentar, precedido do devido e competente estudo de definição de perfil profissiográfico para os cargos públicos.

Essa ideia promove, a um só tempo, a satisfação ao princípio da legalidade, da segurança, da moralidade e da transparência pública, evitando que haja espaço para a entronização irracional do arbítrio. A definição do perfil dos agentes que a Administração Pública pretende contratar faz parte da sua realidade discricionária, sem dúvida. Assim, justamente por que diz respeito à discrição da Administração Pública, é que ela deve ser promovida de modo transparente, claro e objetivo aparando as arestas e espaços para as arbitrariedades, pois a discricionariedade não se confunde com a ilimitada liberdade5.

Assim, podemos concluir que a legalidade exigida para o exame de psicotécnico em concursos públicos vai além da mera e simples previsão em lei da existência do exame como fase eliminatória no certame, pois só haverá completo atendimento à legalidade se houver, além dessa previsão, a adequada definição do perfil profissiográfico, sob pena de ser a norma jurídica do psicotécnico dotada apenas de eficácia limitada, impediente da eliminação do candidato.

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Sobre o autor
Alessandro Samartin de Gouveia

Promotor de Justiça do Estado do Amazonas. Possui graduação em Direito pelo Centro de Estudos Superiores de Maceió (2004). Pós-graduado em nível de Especialização em Direito Processual pela ESAMC/ESMAL(2006). Formação complementar em política e gestão da saúde público para o MP - 2016 - pela ENSP/FIOCRUZ. Pós-graduando em prevenção e repressão à corrupção: aspectos teóricos e práticos, em nível de especialização (2017/2018), pela ESTÁCIO/CERS. Mestre em direito constitucional pela Universidade de Fortaleza - UNIFOR. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direito Público, atuando principalmente nos seguintes temas: súmula vinculante, separação dos poderes, mandado de segurança, controle de constitucionalidade e auto de infração de trânsito. http://orcid.org/0000-0003-2127-4935

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GOUVEIA, Alessandro Samartin. Breve estudo sobre a legalidade dos exames psicotécnicos com caráter eliminatório em concursos públicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5492, 15 jul. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/66638. Acesso em: 22 dez. 2024.

Mais informações

Artigo publicado originalmente na Revista Síntese Direito Administrativo em Fevereiro de 2011.

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