A discriminação é um legado que acompanha a pessoa com deficiência desde muito tempo. A visão da deficiência sob uma percepção caritativa ainda é presente nos dias atuais. Essa percepção reforça uma história de perseguição, exclusão, menosprezo, preconceito e discriminação. Desde tempos remotos até nossos dias, existiram enormes contradições na forma como a sociedade enxerga e trata a pessoa com deficiência
Etimologicamente, a palavra “discriminação” está associada à ideia de fazer distinção com base em etnia, raça, gênero, idade, nacionalidade, orientação sexual, condição social, religião ou, ainda, em razão de deficiência.
De acordo com as Nações Unidas no Brasil, ainda hoje, “pessoas de diferentes grupos sociais enfrentam em seu dia a dia situações de preconceito. São maltratadas ou estigmatizadas por serem negras, soropositivas, gays, nordestinas, viverem com uma deficiência, entre outras características alvo de discriminação no país. ”[1]
Na legislação acerca de direitos humanos, a proibição da discriminação é princípio assente e está presente na maioria dos tratados internacionais, leis e constituições dos Estados, inclusive da Declaração Universal dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU) de 1948:
“Artigo II
1 - Todo ser humano tem capacidade para gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição.
2 - Não será também feita nenhuma distinção fundada na condição política, jurídica ou internacional do país ou território a que pertença uma pessoa, quer se trate de um território independente, sob tutela, sem governo próprio, quer sujeito a qualquer outra limitação de soberania. ”
No Brasil, o princípio da não-discriminação está insculpido no art. 3º, inciso IV, da Constituição Federal:
“Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: [...]
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, cor, sexo, idade e quaisquer outras formas de discriminação. ”
Existe, ainda, o princípio da igualdade formal disposto no art. 5º da Carta Magna:
“Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, à propriedade, nos termos seguintes: [...]”
No que se refere especificamente à pessoa com deficiência, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência estabelece:
“Artigo 2
Definições
Para os propósitos da presente Convenção:
[...]
“Discriminação por motivo de deficiência” significa qualquer diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, com o propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o desfrute ou o exercício, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais nos âmbitos político, econômico, social, cultural, civil ou qualquer outro. Abrange todas as formas de discriminação, inclusive a recusa de adaptação razoável;
Artigo 5
Igualdade e não discriminação
1. Os Estados Partes reconhecem que todas as pessoas são iguais perante e sob a lei e que fazem jus, sem qualquer discriminação, a igual proteção e igual benefício da lei.
2. Os Estados Partes proibirão qualquer discriminação baseada na deficiência e garantirão às pessoas com deficiência igual e efetiva proteção legal contra a discriminação por qualquer motivo.
3. A fim de promover a igualdade e eliminar a discriminação, os Estados Partes adotarão todas as medidas apropriadas para garantir que a adaptação razoável seja oferecida.
4. Nos termos da presente Convenção, as medidas específicas que forem necessárias para acelerar ou alcançar a efetiva igualdade das pessoas com deficiência não serão consideradas discriminatórias. ”
Recentemente, ao estatuir um marco na legislação para as pessoas com deficiência, a Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13.146/2015), em seu art. 4º, alberga, em conjunto com o § 1º, os princípios da não-discriminação e o da igualdade formal:
“Art. 4º. Toda pessoa com deficiência tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discrimação.
§ 1º. Considera-se discriminação em razão da deficiência toda forma de distinção, restrição ou exclusão, por ação ou omissão, que tenha o propósito ou o efeito de prejudicar, impedir ou anular o reconhecimento ou o exercício dos direitos e das liberdades fundamentais de pessoa com deficiência, incluindo a recusa de adaptações razoáveis e de fornecimento de tecnologias assistivas. ”
Observe-se que a conjugação dos princípios constitucionais da não-discriminação (art. 3º, inciso IV) e da igualdade formal (art. 5º, caput) – fixados também da LBI, respectivamente art. 4º, caput e inciso IV do art. 4º -, aponta para duas vertentes da discriminação: um conteúdo positivo e outro, negativo.
De acordo com Sidney Madruga “o caráter negativo traduz-se na vedação da discriminação, que em determinadas circunstâncias poderia gerar desigualações indesejáveis. É o caso da igualdade de direitos entre homens e mulheres; (...) a proibição de qualquer discriminação no tocante a salário e critérios de admissão ao trabalhador “portador de deficiência”, dentre outros.[2]
Ainda, segundo o autor, o caráter positivo advém da consolidação do princípio da igualdade material plasmado na Constituição. O texto constitucional discrimina positivamente, para promover a igualdade de oportunidades e afastar os fatores de desigualdades entre os menos protegidos: (...) na reserva percentual de cargos e empregos públicos às “pessoas portadoras de deficiência”.[3]
Dessa forma, a isonomia brasileira engloba igualações e desigualações para promover o bem de todos. Destaca-se que, em seu aspecto negativo, a conduta discriminatória, em razão de sua própria feição, encontra-se apta não somente a gerar a exposição vexatória perante terceiros, mas também humilhação, sensação de angústia e dor íntima ao ofendido. Trata-se, por certo, de ofensa à honra objetiva e/ou à honra subjetiva, face à latente violação aos direitos inerentes à personalidade, configurando-se assim o chamado dano moral.
Após esse esclarecimento, ressalta-se que a proibição do ato discriminatório pelo ordenamento jurídico é relativa tanto à discriminação direta quanto à indireta.
A discriminação direta é aquela que contém em si o animus, a intenção de discriminar. O sujeito é discriminado intencionalmente, tratado de forma desigual, em função de uma característica, individual ou de grupo, que lhe é peculiar, tal como sua condição física. Neste caso, cabe à vítima o dever de comprovar o ato discriminatório praticado contra si.
Um exemplo de ato discriminatório direto seria negar um posto de trabalho a uma pessoa gay, por força única de sua opção sexual.[4]
Na discriminação indireta, a diferença de tratamento aparece de forma indireta, dissimulada, desprovida de fator de intencionalidade, cujos efeitos advêm de práticas ou políticas aparentemente neutras, mas que redundam em atos discriminatórios.
Joaquim B. Barbosa Gomes acentua que a discriminação indireta, também chamada de “Teoria do Impacto Desproporcional”, foi uma grande inovação do direito norte-americano, pois no lugar de se buscar conter o tratamento discriminatório, se propõe a combater a “discriminação indireta”. Entendida esta como a que origina uma desigualdade não oriunda de atos concretos ou de manifestação expressa de discriminação por parte de alguém, mas de práticas administrativas, empresariais ou de políticas públicas, em princípio neutras, porém de grande potencial discriminatório. Ainda no dizer do autor, essa discriminação por “impacto desproporcional”, quase invisível, raramente abordada nos compêndios de Direito, seria a forma mais perversa de discriminação (grifo nosso), devido a sua aptidão de perpetuar situações de desigualdade resultantes de fatores histórico-culturais.[5]
Exigir em uma contratação pessoal que se utilize de força física extrema ou se possua determinada altura, acarreta uma forma de discrímen indireto às mulheres e a certos grupos étnicos, acaso essa exigência não seja indispensável para o emprego ou cargo público almejado. [6]
Ainda, entende-se que a atual construção de edifícios públicos e privados que não prevejam a acessibilidade adequada para as pessoas com deficiência caracteriza uma forma de discriminação indireta.
Assim, a oposição à discriminação não se restringe a não legitimar ações que conferem tratamento ou políticas arbitrárias (discriminação direta). É preciso ir além, identificando práticas indutoras de efeitos discriminatórios, prejudiciais a um grupo específico, embora aparentemente neutras, tornando vulnerável, consequentemente, a isonomia (discriminação indireta).
Notas
[1] In https://nacoesunidas.org/tem-gente-que-sofre-discriminacao-todos-os-dias-e-se-fosse-com-voce/. Consultado em maio de 2018.
[2] MADRUGA, Sidney. Pessoas com Deficiência e Direitos Humanos. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 99-100.
[3] MADRUGA, Sidney, op. cit., p. 100.
[4] MADRUGA, Sidney, op. cit., p. 103.
[5] GOMES, Joaquim B. Barbosa. A ação afirmativa e o princípio constitucional da igualdade. O direito como instrumento de transformação social. A experiência dos EUA. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 23-24.
[6] MADRUGA, Sidney, op. cit., p. 103.