O Conselho Nacional de Política Fazendária – CONFAZ -, órgão regulador nacional do ICMS entre os Estados da Federação, em 05 de outubro de 2017 (posteriormente retificado em 26 de outubro de 2017), editou o Convênio ICMS 106/2017, que estabeleceu os procedimentos de cobrança do ICMS incidente nas operações com bens e mercadorias digitais comercializadas por meio de transferência eletrônica de dados, disciplinando também a concessão de isenção nas saídas anteriores à saída destinada ao consumidor final.
Por meio deste regulamento administrativo, o CONFAZ regulamentou a cobrança do ICMS pelos Estados relativos às operações de mercancia envolvendo produtos eletrônicos na sua forma digital, cuja comercialização ocorre de forma estritamente eletrônica, por meio da transferência de dados entre o consumidor final e o vendedor do bem digital, descerrando novamente a antiga discussão a respeito da tributação pertinente ao comércio de softwares.
Os estados, equivocadamente, por intermédio desse Convênio ICMS 106/2017, previram a possibilidade de cobrança do ICMS nas “operações com bens e mercadorias digitais, tais como softwares, programas, jogos eletrônicos, aplicativos, arquivos eletrônicos e congêneres, que sejam padronizados, ainda que tenham sido ou possam ser adaptados, comercializadas por meio de transferência eletrônica de dados”. Ainda, estabeleceu-se a exigência de ICMS quando o site ou plataforma eletrônica efetuar “a venda ou a disponibilização, ainda que por intermédio de pagamento periódico, de bens e mercadorias digitais mediante transferência eletrônica de dados”.
Ocorre que o licenciamento de software estar previsto na lista de serviços anexa à LC 116/2003, circunstância que demonstra indícios de uma problemática conceitual no campo tributário que pode gerar problemas como a bitributação ao contribuinte, já que o licenciamento se subsome à incidência do ISS, e não do ICMS, seja o software padronizado ou por encomenda.
Com fins introdutórios, deve-se suscitar, ainda que de forma breve, a antiga celeuma que sobrevoa desde há muito a questão da tributação dos softwares. É que o software, como produto imaterial da inteligência humana, é um bem imaterial, virtual, que existe e tem sua aplicabilidade, até o momento, e nas vias ordinárias, na esfera eletrônica. Conceitualmente, disse que o software é um conjunto de informações lógicas de um computador ou sistema de processamento de dados, um programa, firmado em rotinas ou conjunto de instruções que controlam o funcionamento de um computador ou realiza o suporte lógico de tarefas por ele realizadas. Neste sentido, sendo produto imaterial, o software não se confunde com os discos ou circuitos integrados do próprio computador, sendo estes, o conjunto do hardware (a estrutura física).
As divergências tributárias que acometeram as operações de venda de softwares, ou seja, sobre os programas de computador, exatamente se encontra no fato de que se trata de um produto imaterial, virtual ou inteligentivo, ou seja, ele não teria como ser enquadrado como “mercadoria”, uma vez que o conceito de mercadoria exigiria a sua materialidade como objeto possível de ter sua propriedade jurídica transferida.
Para fomentar a discussão, tem o fato de que o adquirente final, ao “comprar” um determinado programa computador, não adquire a propriedade do bem, mas sim uma mera autorização de uso provisório, pois o registro do sistema - o código-fonte -, permanece sendo propriedade daquele que o desenvolveu. Neste sentido, não há, com efeito, a transmissão da propriedade do bem, seja ela jurídica ou factual, mas mera venda de uma autorização de sua utilização pelo usuário final, circunstâncias que impediria o enquadramento do conceito de qualquer das operações jurídicas com mercadorias que autorizasse a cobrança do ICMS, nos termos da Constituição Federal.
E a problemática da questão foi mais ampla quando se questionou qual a atividade realizada por desenvolvedores de sistemas personalizados voltados a um cliente específico, que busca o acesso à mercadoria digital por meio de encomenda. Esse desenvolvedor é um prestador de serviços ou vende um produto, considerando que o sistema por ele adquirido é único e desenvolvido especialmente para preencher os interesses e necessidades daquele cliente, de forma individualizada.
No primeiro caso, estar-se-ia diante da exigência de ICMS ou do ISSQN, de competência municipal? E no segundo caso, haveria venda de produto, sujeitando o bem ao ICMS ou prestação de serviços, sujeitando a atividade ao ISS? Essas questões foram sendo dirimidas pela doutrina e jurisprudência ao longo do tempo que definiram alguns pontos de afirmação.
No julgamento do RE n. 176.626/SP, em 1998, o Supremo Tribunal Federal ponderou o seguinte:
“III. Programa de computador ("software"): tratamento tributário: distinção necessária. Não tendo por objeto uma mercadoria, mas um bem incorpóreo, sobre as operações de "licenciamento ou cessão do direito de uso de programas de computador" — matéria exclusiva da lide —, efetivamente não podem os Estados instituir ICMS: dessa impossibilidade, entretanto, não resulta que, de logo, se esteja também a subtrair do campo constitucional de incidência do ICMS a circulação de cópias ou exemplares dos programas de computador produzidos em série e comercializados no varejo — como a do chamado "software de prateleira" (off the shelf) — os quais, materializando o corpus mechanicum da criação intelectual do programa, constituem mercadorias postas no comércio.”
De forma unânime, decidiu-se que o software vendido em mídias físicas (CD ou disquete), em série (não individualizado ou personalizado) e no varejo, chamados de “software de prateleira”, ou off the shelf, constituiriam mercadoria para fins de cobrança do ICMS. Importante frisar que essa consideração era, à época, específica para os programas desenvolvidos de forma linear e vendidos no varejo, o que exigia o transporte em mídias físicas.
Ao julgar a medida cautelar sobre a ADI n. 1945/MT, Supremo Tribunal Federal ponderou que a inexistência de um bem corpóreo ou mercadoria em sentido estrito, no caso dos softwares, é irrelevante para a consideração da subsunção da regra tributária do ICMS, podendo os Estados estabelecer a tributação sobre as operações de compra e venda dos mesmos. Embora ainda penda de julgamento definitivo (agendado para 22/8/2018), a decisão sobre a medida cautelar apresenta conceitos que firmam o entendimento das Fazendas Públicas sobre o tema.
Ainda pendentes de julgamento, com matéria afeitas ao tema, também estão as ADI n. 5576 e 5659. Na primeira, questiona-se a inconstitucionalidade da tributação dos softwares, visto que as empresas estão atualmente sujeitas à imposição de exigibilidade do recolhimento do ICMS sobre as operações com programas de computador – software, seja por meio físico, sejam as realizadas por transferência eletrônica de dados, estão submetidas ao âmbito de incidência tributária da Lei Complementar nº 116/03, que prescreve o recolhimento do ISS aos Municípios, sobre a mesma operação, o que majorou a carga tributária desta categoria econômica, instituindo, na prática, uma bitributação.
Importante destacar que, no conceito constitucional de “operação de circulação de mercadoria”, a “operação de circulação” exige a transferência de titularidade do bem, não só juridicamente, por contratos de compra e venda, por exemplo; mas faticamente, com a efetiva circulação, representativa da tradição. Por sua vez, no mercado de software, como apontado, o que acaba sendo objeto dos negócios jurídicos é a licença de uso, conforme disposto no artigo 9º da Lei n. 9.609/1998, que prevê que “o uso de programa de computador no País será objeto de contrato de licença”.
Neste contexto, se não há transferência de titularidade, falta objetivamente um dos requisitos para que o software possa ser considerado mercadoria, para os fins tributários. E nem há que se afirmar que, na prática, o software que se “compra” fica com o usuário para sempre. Esse modelo, denominado licença perpétua, vinha da época em que se adquiria programas em mídias físicas (disquete e CD), e ainda do download, onde o usuário paga uma só vez para poder usar o software de forma indefinida. Entretanto, em nenhuma das hipóteses ocorre a transmissão da propriedade do programa, a mera utilização não faz do usuário “dono” do software.
A evolução dos meios de comércio trouxe à baila uma nova realidade, em que os softwares são comercializados diretamente ou exclusivamente de forma eletrônica, por meio de downloads (descarregamento do programa e do direito de uso diretamente de modo virtual entre o fornecedor e o usuário final). Ao lado dessa forma de conclusão dos negócios, passou a existir um novo modelo de negócio eletrônico, por assinatura, em que a empresa proprietária licencia o software por tempo determinado, período em que o usuário paga o uso do bem eletrônico em razão do seu interesse, podendo ou não ser momentâneo. Isso escancara o fato de que o software não pode tem condições de considerado uma mercadoria, pois senão teríamos de admitir que o usuário — não necessariamente um adquirente — da mercadoria tê-la por tempo determinado. É possível haver um serviço por tempo determinado, mas nunca uma mercadoria por tempo determinado.
Desta forma, de forma abstrata e hipotética, em se tratando de um serviço, suscita-se, de tal modo, a não incidência do ICMS, mas do ISS, uma vez que, dentre as hipóteses de serviços os quais possível a incidência do ICMS, não se encontram listadas as descritas no Convênio. Pelo contrário, o item 1.05 (“Licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação”) está expressamente previsto na Lista de Serviços anexa da Lei Complementar n. 116/2003.
Então, o Convênio n. 106 do CONFAZ reativou a polêmica sobre a matéria, mesmo pendente de um entendimento consolidado sobre a matéria pelo Poder Judiciário. Esse Convênio compreende e atinge, na hipótese de incidência, os “bens e mercadorias digitais” que são justamente os “softwares, programas, jogos eletrônicos, aplicativos, arquivos eletrônicos e congêneres, que sejam padronizados, ainda que tenham sido ou possam ser adaptados, comercializadas por meio de transferência eletrônica de dados”.
Na esfera de incidência tributária, o Convênio permite isentar o ICMS das operações entre as empresas envolvidas na cadeia de produção e distribuição. Entretanto, determina a incidência da tributação por ocasião do comércio interno e nas importações desses bens e mercadorias digitais quando destinados ao consumidor final. A previsão é a de que o tributo estadual seja devido em operações eletrônicas realizadas em qualquer plataforma eletrônica (site ou aplicativos), podendo o pagamento, inclusive, ser periódico. Nestes casos, o tributo seria devido ao Estado onde é domiciliado ou estabelecido o adquirente do bem ou mercadoria digital.
Caberá a cada Estado decidir e regulamentar os elementos atinentes à responsabilidade pelo recolhimento do imposto. O Estado de São Paulo, por exemplo, já regulamentou a matéria do Convênio, por meio da edição do Decreto n. 63.099, de 22 de dezembro de 2017. Veja-se que, consoante disposição do Convênio, as empresas deverão se inscrever nos cadastros dos Estados em que praticarem as saídas internas ou de importação destinadas a consumidor final, sendo facultada, a critério de cada Estado, a instituição de alguns requisitos para a concretização dessa inscrição. Também, a critério de cada Estado, poderá ser dispensada a inscrição, o que fará com que o ICMS deva ser recolhido por meio de Guia Nacional de Recolhimento de Tributos Estaduais – GNRE ou documento de arrecadação previsto na legislação estadual.
Aparentemente a atividade do item “1.05” – Licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação, da 116/2003 da Lista de Serviços anexa à Lei Complementar n. 116/2003 está incorporada nas atividades previstas pelo Convênio ICMS 106/2017, o que, inevitavelmente, poderá ocasionar o fenômeno da bitributação, pois uma mesma atividade (hipótese de incidência) terá condições de gerar obrigações tributárias distintas (ICMS e ISS).
A bitributação, em si, não é fonte de questionamentos jurídicos por sua validade ou adequação ao texto constitucional, senão pelo fato de que essa dupla incidência decorre da interpretação do conceito das operações comerciais envolvendo softwares (se é produto ou serviço) e, por isso, um conflito de competência fiscal (Estados ou Municípios). A incidência de mais de um tributo sobre uma mesma base material é possível em nosso sistema, desde que a legislação assim o preveja (em respeito ao princípio da legalidade estrita); entretanto, o que não pode ocorrer é a alteração dos conceitos materiais sobre as atividades e produtos, sob pena de ocorrer gravame ao disposto no art. 110, do Código Tributário Nacional, pois a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal. No caso, os conceitos de “mercadoria” e “serviços”, não podem ser alterados ao livre critério do legislador infraconstitucional.
Assim, pode-se dizer que o Convênio ICMS n. 106/2017 foi lançado pelo Poder Público repleto de situações potencialmente incompatíveis e deletérias ao sistema tributário nacional, reavivando polêmica fiscal sobre a incidência do tributo estadual sobre operações envolvendo softwares, situação que há muito vem gerando acalorados debates jurídicos e que, por isso, já merece um capítulo de relevância na história jurídica fiscal contemporânea.
Caberá às instâncias superiores esclarecerem os pontos de relevância sobre a matéria e pacificarem a polêmica, estabelecendo, desta forma, a matriz fiscal dessas operações, e definirem conceitualmente se as operações pertinentes aos softwares possuem matiz de prestação de serviços, sujeitando-as ao ISS, ou, como expressa o CONFAZ, pela edição do Convênio n. 106/2017, de mercadorias, sujeitando-as, de fato, ao ICMS.