A inadequação da presunção absoluta de fraude à execução fiscal estabelecida pelo Superior Tribunal de Justiça

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Analisou-se julgado no âmbito do STJ que afastou a presunção absoluta de má-fé, que considerou inaplicável o precedente firmado com o julgamento do REsp nº. 1141990/PR.

RESUMO: O objetivo desse trabalho é realizar discussão a respeito da fraude à execução, buscando-se inferir quais seriam os limites para a persecução do bem alienado indevidamente, discutindo-se acerca da aplicabilidade da súmula nº 375 do STJ, das distinções entre a fraude à execução que ocorre em processos fiscais ou não fiscais, das modificações trazidas pelo Código Processual de 2015, e das consequências que poderiam eventualmente ser impostas a terceiros, dando-se atenção especial sobretudo para aquele que adquire o bem imóvel sem gravame no Registro Imobiliário a fim de que se obtenha uma solução mais condizente com o Ordenamento Jurídico Brasileiro.

Palavras-chave: presunção absoluta - fraude - má-fé - execução fiscal

ABSTRACT:The main goal of this study is to embrace the discussion concerning the legitimacy of the absolute presumption of tax fraud established by the decision of the superior court “Superior Tribunal de Justiça” dispensing proof of bad faith involved in economic transaction after the procedure of credit formation by the Public Administration is concluded, due to the promulgation of the legislation LC 118/2005, altering the art. 185 of the “Código Tributário Nacional”, in abandonment of the precedent “Súmula nº375”. The objective of the study is to obtain a solution that is in accordance with the Brazilian Judicial System, which means in that the persecution of the credit must respect the civil rights protected by the legislation.  

Keywords: presumption - tax fraud - bad faith - tax execution


INTRODUÇÃO

De início, sendo fundamental para o presente trabalho, cumpre relembrar o conceito de fraude à execução: instituto processual que consiste na atuação ilícita de um devedor que, em estado de insolvência ou na iminência de assim se tornar, dispõe de seu patrimônio, a fim de furtar-se da responsabilidade pelo adimplemento das obrigações contraídas, apesar da pendência de processo de execução[1].

Com base nesse conceito, é válido esclarecer a diferença fundamental entre à fraude à execução e o fenômeno conhecido por fraude contra credores, qual seja: a existência ou não de um processo de execução no momento em que ocorre a alienação fraudulenta. Para que se constate fraude à execução, a instauração do processo de execução em face do alienante deve preexistir à disposição maliciosa de bens, ao passo que, no caso da fraude contra credores, o devedor também procura se eximir ilicitamente da obrigação contraída, mas o dispõe de seus bens antes da propositura do processo de execução.

Ademais, o instituto processual independe de a obrigação a que o devedor busca se esquivar ter sido originada a partir de relação com o poder público ou de realização de negócio jurídico entre particulares, havendo, no entanto, regulamentação especial a depender do credor (se particular ou se Fazenda Pública): tratando-se de execução não fiscal, segue-se o disposto no art. 792 do CPC (art. 593 no CPC/73), já no tocante à execução fiscal, o regramento é pautado no art. 185 do Código Tributário Nacional.

Não obstante a distinção, a partir da leitura dos textos normativos, percebe-se que ambas as disposições possuem a mesma finalidade: garantir o adimplemento das obrigações, punindo o devedor imbuído de má-fé que aliena seus bens de forma fraudulenta, consistindo a diferença apenas quanto ao momento em que seria presumida a fraude à execução.

Tratando-se de execução não fiscal, presumir-se-ia a fraude a partir da citação do devedor para integrar o processo de execução tal como ocorria nos casos de fraude à execução fiscal até o advento da LC 118/2005, que a antecipou para o momento da regular inscrição do crédito tributário em dívida ativa.

No entanto, e aqui repousa o ponto central do presente estudo, a jurisprudência passou a entender que, a despeito de não existir previsão expressa nesse sentido, a presunção de fraude, no tocante às execuções fiscais, seria absoluta, inadmitindo-se, portanto, prova em contrário, traduzindo-se, em alguns julgados como uma faculdade de o Poder Público perseguir os bens alienados fraudulentamente em qualquer patrimônio, inclusive nos casos envolvendo terceiros de boa-fé.

Percebendo o potencial lesivo desse tipo de interpretação, é necessário rememorar o óbvio: a persecução do bem alienado (ou onerado) ilicitamente para a efetivação do adimplemento das obrigações deve encontrar limites nas garantias constitucionalmente asseguradas ao devedor e aos terceiros que com ele realizaram negócios jurídicos, mormente se os realizaram com boa-fé, sob pena de violar os preceitos de justiça que permeiam o ordenamento brasileiro.

É à luz do compromisso constitucional que se analisará a recente decisão do Superior Tribunal de Justiça, proferida em sede de recursos repetitivos, em que se pretende estabelecer uma presunção absoluta de fraude à execução nos casos alienação de bens em sede de execução fiscal, desconsiderando, portanto, qualquer exame probatório, para, em seguida, discutir soluções mais consentâneas com o ordenamento jurídico brasileiro, tanto sob o viés do direito tributário quanto sob o viés dos direitos constitucional e processual.

Por fim, será feito ainda aprofundamento no que se refere às alienações de bens imóveis, sobretudo no tocante às alienações sucessivas, hipóteses em que o adquirente originário aliena o bem para terceiro alheio à relação jurídica que teria ensejado fraude à execução.


ANÁLISE DO POSICIONAMENTO DO STJ - FRAUDE À EXECUÇÃO

O Superior Tribunal de Justiça, firmando seu entendimento sobre fraude à execução na Súmula nº 375, sob vigência do CPC/73, explicitou que “o reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente”. Beneficiava-se o terceiro de boa-fé que adquirisse bem imóvel que se encontrava desimpedido no Registro Imobiliário, cabendo ao credor a responsabilidade de provar a má-fé desse adquirente, hipótese em que o bem adquirido responderia pela dívida.

O entendimento sumular, contudo, foi afastado pelo Tribunal Superior com o julgamento do Recurso Especial Repetitivo nº 1.141.990/PR[2], para os casos referentes a execuções fiscais, sob a justificativa de que a norma especial, o art. 185 do CTN, a partir da nova redação dada pela LC 118/2005, indicaria uma presunção absoluta (jure et de jure) de alienação fraudulenta de bens quando já houvesse inscrição na dívida ativa de crédito da Fazenda Pública em face do sujeito passivo alienante.

De acordo com a fundamentação do acórdão, a referida transformação teria ocorrido precipuamente: 1) em virtude da alteração do art. 185 do CTN pela LC118/2005, e 2) do interesse público decorrente da natureza do débito discutido em juízo. A consequência, segundo o tribunal, seria o fim do espaço para discussão acerca do reconhecimento da boa-fé, nem mesmo, por exemplo, quando houvesse sido realizada consulta perante o órgão notarial, na alienação imobiliária.

Após análise do artigo que trata da fraude à execução fiscal, percebe-se que ambos os argumentos trazidos na decisão são insustentáveis do ponto de vista exegético, posto que incapazes de servir de alicerce teórico sólido para uma guinada do entendimento. Tal afirmação é feita porque a alteração da redação do art. 185 do CTN pela LC 118/2005 se consubstancia exclusivamente na supressão do termo “em fase de execução”, antecipando o lapso temporal em que se passa a presumir a fraude:

Redação antiga: Art. 185. Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa em fase de execução.

Redação nova: Art. 185. Presume-se fraudulenta a alienação ou oneração de bens ou rendas, ou seu começo, por sujeito passivo em débito para com a Fazenda Pública, por crédito tributário regularmente inscrito como dívida ativa.  

Em relação ao primeiro argumento, como adiantado, observa-se que a alteração do texto do artigo apenas se referiu ao momento em que se presume a fraude à execução, não abrindo margem para a caracterização do tipo de presunção de má-fé, se absoluta ou se relativa. O segundo argumento é igualmente insustentável, pois a natureza fiscal do débito sempre foi a mesma, sempre foi permeada pelo interesse público, não sendo per si, justificativa para garantir uma presunção absoluta de fraude à execução.

Sendo assim, a partir de uma interpretação clássica do dispositivo sob exame, diversamente da conclusão a que chegou o STJ, o resultado da ilação é de que a única alteração advinda da LC 118/2005, é de que a presunção, que ocorria a partir da citação (ato que o integra ao processo de execução), passaria a ocorrer no instante da inscrição em dívida ativa, mas jamais que passou a ser absoluta, e desse modo, imutável[3].

Volvendo à perspectiva da Corte Superior, quanto ao viés prático, depreende-se a imposição de nova obrigação de cautela para realização de negócio jurídico às partes, de maneira a evitar surpresas oriundas da persecução de crédito da Fazenda Pública: a obtenção de Certidão Negativa de Débitos Fiscais, na órbita de todos os Entes Federativos.

Neste ponto, mesmo que se pudesse admitir fazer parte da máxima de experiência a exigência de certidões de débitos fiscais daquele que celebra com cautela negócio jurídico, seria irrazoável defender que, para realizar um negócio com a devida segurança jurídica, o terceiro adquirente seria obrigado a obter certidões fiscais em todos os entes federados, sendo a República Federativa do Brasil constituída por mais de 5 mil municípios, além dos 26 estados e da União[4]. Configurar-se-ia ingerência burocrática extremamente danosa na órbita das relações privadas em afronta aos princípios da eticidade, socialidade e operabilidade, aplicáveis à luz da eficácia vertical dos direitos fundamentais.

Tanto é assim que, caso se seguisse rigorosamente a decisão do STJ, esse terceiro não estaria resguardado nem se consultasse Cartório de Registro Imobiliário e constatasse a ausência de gravame/penhora no registro do imóvel a ser transferido, posto que a cautela seria incapaz de afastar a presunção absoluta da prática do ato ilícito. Desta maneira, imprescindível que a espécie de presunção prevista no art. 185 do CTN seja estabelecida à luz da Carta Magna, consoante será exposto adiante.

Ademais, jamais se poderia, de igual modo, presumir de forma absoluta que um terceiro adquirente que sequer participou da alienação fraudulenta viesse a responder com seu patrimônio por dívida proveniente de relação jurídica da qual não fez parte, tendo tolhido de si o direito de provar sua boa-fé, sendo esse tipo de interpretação claramente ilegal e inconstitucional.

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FRAUDE À EXECUÇÃO NO CPC/15

O Novo Código de Processo Civil de 2015, a fim de satisfazer os anseios pela efetividade das normas relativas à satisfação dos direitos dos credores, através, por exemplo, previsão da multiplicidade de foros competentes para a propositura da execução fiscal (art.46, §5º), estabeleceu o enrijecimento de regras garantidoras da execução, afastando, em parte, o preceito cristalizado pelo STJ na Súmula nº 375 no tocante às execuções não fiscais.

Como mencionado, de acordo com a previsão sumular, preponderava a presunção relativa de boa-fé em favor do terceiro adquirente de imóvel, cabendo ao exequente provar a má-fé dos envolvidos na transação ou de já existir registro de penhora alienado antes da alienação. O posicionamento, no entanto, tende a ser modificado em face da previsão contida no art. 792 do NCPC:

Art. 792.  A alienação ou a oneração de bem é considerada fraude à execução:

I - quando sobre o bem pender ação fundada em direito real ou com pretensão reipersecutória, desde que a pendência do processo tenha sido averbada no respectivo registro público, se houver;

II - quando tiver sido averbada, no registro do bem, a pendência do processo de execução, na forma do art. 828;

III - quando tiver sido averbado, no registro do bem, hipoteca judiciária ou outro ato de constrição judicial originário do processo onde foi arguida a fraude;

IV - quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência;

V - nos demais casos expressos em lei.

§ 1o A alienação em fraude à execução é ineficaz em relação ao exequente.

§ 2o No caso de aquisição de bem não sujeito a registro, o terceiro adquirente tem o ônus de provar que adotou as cautelas necessárias para a aquisição, mediante a exibição das certidões pertinentes, obtidas no domicílio do vendedor e no local onde se encontra o bem.

§ 3o Nos casos de desconsideração da personalidade jurídica, a fraude à execução verifica-se a partir da citação da parte cuja personalidade se pretende desconsiderar.

§ 4o Antes de declarar a fraude à execução, o juiz deverá intimar o terceiro adquirente, que, se quiser, poderá opor embargos de terceiro, no prazo de 15 (quinze) dias.

O artigo transcrito, ao tratar das hipóteses em que será constatada a fraude à execução, prevê que ela passará a ser presumida “quando, ao tempo da alienação ou da oneração, tramitava contra o devedor ação capaz de reduzi-lo à insolvência”, aduzindo também, no inciso V, que o rol do artigo não é exaustivo, mas admite a previsão em legislação esparsa.

Ao se analisar o trabalho do legislador responsável pela elaboração do Novo Código Processual, percebe-se a consecução do objetivo que teria sido pretendido pelo Superior Tribunal de Justiça: endurecer as normas que versam acerca da cautela ao se realizar negócio jurídico com a finalidade de evitar a fraude à execução, sem, contudo, desrespeitar uma série de direitos e garantias.

Em dissonância com a conclusão a que chegou o STJ no recurso especial nº 1.141.990/PR, analisado anteriormente, de que existiria uma presunção absoluta de má-fé do terceiro adquirente, o Diploma Processual, embora tenha estabelecido a consubstanciação da fraude à execução nos casos em que se encontrava em trâmite ação capaz de reduzir o devedor à insolvência, deixa clara a necessidade de averbação no registro público (incisos I, II e III).

Ademais, no §2º do art. 792, referiu-se expressamente que a cautela exigida do terceiro adquirente para a aquisição de bens, mediante a exibição das certidões pertinentes, restringidas aos locais de domicílio do vendedor e ao local onde se encontra o bem apenas para os bens que não estariam sujeitos a registro, já que, a contrario sensu, as precauções relativas aos bens sujeitos a registro seriam observadas com o seu exame em Cartório.

Assim, é forçoso concluir que, a partir da visão do CPC/15, a súmula nº 375 do STJ deverá ser cancelada, devendo ser afastada ao menos a presunção relativa de boa-fé do terceiro adquirente que, consoante disposição legal, transladaria, posicionando-se em favor do exequente[5].

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