7. Conclusão: o esgotamento de um modelo
POR QUE se trata da decadência de um modelo?
Porque não é possível sustentar estudos a respeito de contratos como de teoria processual, assim como de políticas criminais ou de reformas legislativas coerentes, pois não há uma presunção de efetividade que os anime.
A cada dia, nada será como antes.
Em 15.03.2017, o Supremo julgou que o PIS e o COFINS não incluem o valor do ICMS na sua base de cálculo (RE 574706-PR). Bastou para que fossem criados cursos de atualização relâmpagos para incentivar ações em massa, pleiteando as diferenças tributárias daquela exclusão.
Esse é o único ensino, ou mais propriamente treinamento, que o quadro analisado permite. E que o tumultua ainda mais.
O negócio não é mais objeto do Direito, nas suas implicações com a transferência de propriedade, por exemplo: o que hoje avulta é o “negócio do Direito”. Ou seja, o Direito é o objeto do negócio.
Não há nenhum absurdo jurídico, teratológico que seja, que não possa ser acolhido por qualquer dos ministros do Supremo aqui referidos.
A crítica é um elemento fundamental para reconstituição de posições interpretativas, como para rever concepções do mundo, mas é impossível estabelecê-la quando seu processo de verificação, sua práxis, se torna interminável devido a modificações sucessivas, arranjos carregados de oportunismo (como de cinismo) ou infindáveis explicações incapazes de produzir o convencimento.
NUM TEMPO em que se entendia serem as relações jurídicas algo estável, e que a estabilidade era um desiderato relevante do Direito, o jurista Vicente Ráo produziu a obra “O Direito e a Vida dos Direitos”. Seria exagero escapista dizer que os direitos morreram desde então, mas é adequado sustentar que o Direito malbaratado que hoje temos não pode mais incutir vida aos direitos.
A crítica, que os revitalizaria, tornou-se marginal, não tem força para erguer novos parâmetros. Entre a teoria e os julgados há uma defasagem gigantesca, tão esmagadora que todos acorrem para apontá-la e, ao mesmo tempo, para constatar que não há muito (ou mesmo nada) o que fazer.
O pior que pode acontecer para um país, tendo um modelo esgotado, é nele persistir.
O acesso aos tribunais, o modo como estes se organizam e operam, as ações multiplicadas com direcionamento variado mas sempre especulativo, os filhos e cônjuges que atuam junto aos tribunais compostos por seus parentes (só no STJ, a então Corregedora do CNJ Nancy Andrighi listou dez ministros nessa situação e essa ousadia custou-lhe o cargo de presidente daquela Corte, pois sua eleição ficou inviabilizada), a inversão tumultuária de pautas e de prioridades em julgamentos, as contradições insolúveis dos julgados, os precedentes manipulados, as excentricidades e, movendo tudo isso, interesses poderosos arregimentados em um exército de produtores de recursos e incidentes os mais estapafúrdios... tudo isso já traçou um caminho sem volta e o Direito é incapaz de recompô-lo.
É como se os propósitos elevados da sincera República de Weimar pudessem ter sido invocados para impedir a ascensão do nazismo.
UMA PASSAGEM bastante conhecida da ópera Tosca, de Giacomo Puccini, expõe bem o espírito de nossa época. O personagem Mario Cavaradossi é levado à morte pelo vilão Scarpia, sob pretextos, pois este último visava arrebatar a amada do outro. Cavaradossi redige então sua última carta, que é a ária “E lucevan le stelle”: mesmo diante da morte, se brilhavam as estrelas, ele tinha razões para amar a vida.
Assim estamos.
Porém, no nosso caso, talvez seja apropriado sermos menos patéticos e enxergarmos o fracasso do Brasil dentro do horizonte que nos cerca, a ponto de reconhecer que tocar-se pelas estrelas “ia ser o brilho bonito mas inútil, porém de mais uma constelação”, como concluiu Macunaíma, ao pensar na própria morte. Então, “cruzou os braços num desespero tão heroico que tudo se alargou no espaço pra conter o silêncio daquele penar.”