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Acesso aos dados armazenados no WhatsApp pela polícia durante investigação criminal:

implicações nos direitos fundamentais

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3 LIBERDADE DE COMUNICAÇÃO E SEGURANÇA PÚBLICA

3.1  LIBERDADE DE COMUNICAÇÃO

No catálogo de direito fundamentais trazido por nossa Constituição Federal de 1988, notam-se o “direito geral de liberdade” e as “liberdades específicas”. Portanto, a liberdade de comunicação consiste em um dos grupos associados às liberdades consagradas constitucionalmente.

"A Constituição Brasileira reconhece a todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país o direito à liberdade. É o que diz o caput do art.5º no que se convencionou chamar de direito geral de liberdade. O mesmo artigo reconhece, ainda, expressamente, por intermédio de diversos de seus incisos, um grande número de liberdades específicas, como a liberdade de expressão, a liberdade de consciência e crença, a privacidade, a liberdade de exercer qualquer trabalho ou ofício, o direto de ir e vir, ou liberdade de locomoção, as liberdades de manifestação, de associação ou de não se associar, para aqueles que não estejam interessados." (VIEIRA, 2016, p.136-137).

Vários direitos são assegurados pela liberdade de comunicação, a qual permite a criação e propagação de pensamentos, a troca de informações e dados por uma multiplicidade de meios de exteriorização.

"A liberdade de comunicação consiste num conjunto de direitos, formas, processos e veículos, que possibilitam a coordenação desembaraçada da criação, expressão e difusão do pensamento e da informação. [...] . Compreende ela as formas de criação, expressão, e manifestação do pensamento e de informação, e a organização dos meios de comunicação [...] ." (SILVA, 2002, p.242).

O direito à liberdade de comunicação abrange o direito à inviolabilidade do sigilo das comunicações, que, por sua vez, está umbilicalmente ligado ao direito da inviolabilidade da intimidade e vida privada. De se lembrar que tais direitos classificam-se como “direitos de defesa” ou “liberdades negativas”, de modo a impedir ingerência do Estado. Fazem parte dos direitos fundamentais de primeira geração ou dimensão.

"A princípio, os direitos fundamentais constituíram uma limitação do poder estatal, pois buscavam delimitar a ação do Estado. Tais direitos definiam a fronteira entre o que era lícito e o que não era para o Estado, reconhecendo liberdades para os cidadãos, pois o que ficasse de fora do alcance do Estado, seria lícito. Eram chamados de direitos de defesa, marcando uma zona de não intervenção do Estado (negativos). Esses direitos exigiam uma abstenção do Estado e não uma conduta positiva." (BREGA FILHO, 2002, p.22).

Tais direitos, também chamados de “direitos de resistência ou de oposição perante o Estado” (BONAVIDES, p.517), são as “Liberdades Públicas”, destacando-se a intimidade, honra, vida, propriedade, liberdade de comunicação, expressão e manifestação, intimidade, vida privada e outros.

Quadra consignar que, para efeito deste trabalho, será considerada apenas a liberdade de comunicação, mormente o direito relativo à inviolabilidade do sigilo das comunicações, diretamente atrelada ao direito à intimidade e à privacidade, uma vez que os dados e os diálogos trocados via WhatsApp e armazenados nos celulares, em regra, são invioláveis em virtude dos aludidos direitos fundamentais.

3.2  SEGURANÇA PÚBLICA

A garantia de pacificação social, livre da violência ou ameaça decorrente da prática de crimes consiste em um dever do Estado, mas também direito e responsabilidade de todos. O vertiginoso crescimento da criminalidade contemporânea coloca o direito à segurança pública no centro da preocupação de grande parte do meio jurídico e político. Não é por outra razão que vem sendo pauta de reivindicação de todos segmentos da sociedade.

Cotidianamente segurança pública é tema de debate em todos os rincões do país. As questões envolvendo segurança abrangem todas as classes sociais. Quiçá por ser inimaginável viver ou sobreviver em um lugar repleto de desordem e tumultos generalizados. O povo clama por mais segurança pública na mesma proporção que o crime se alastra.

Para prevenir e reprimir o fenômeno criminal, faz-se necessário obviamente o aumento de investimento em segurança pública, mas também é preciso considerá-la como um direito fundamental de grande importância.

A segurança pública é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e de seus bens patrimoniais (art.144).  As polícias federal, rodoviária federal, ferroviária federal, civis, militares e o corpo de bombeiros militares foram os órgãos estatais eleitos pela Constituição para promover a segurança pública.

"A segurança pública consiste numa situação de preservação ou restabelecimento dessa convivência social que permite que todos gozem de seus direitos e exerçam suas atividades sem perturbação de outrem, salvo nos limites de gozo e reivindicação de seus próprios direitos e de defesa de seus legítimos interesses. Na sua dinâmica, é uma atividade de vigilância, preservação e repressão de condutas delituosas." (SILVA, 2002, p.754).

Como visto, polícia e segurança pública guardam relação de meio e fim dentro do contexto de controle social. Constitucionalmente, não existe efetivação da segurança pública sem as forças policiais. Por isso, a Constituição incumbiu às polícias da árdua tarefa de assegurar a ordem, a harmonia e a paz coletiva, objetivos primordiais da segurança pública.

"Sobre controle social, importa relembrar que são mecanismos e sanções sociais tendentes a submeter as pessoas aos modelos e normas comunitárias. Para que isso ocorra, a sociedade dispõe de dois sistemas articulados entre si: o controle social informal e o controle social formal.  Este último caracteriza-se pela atuação do aparelho político do Estado, sendo a polícia identificada como uma das instâncias de controle social formal ." (SHECAIRA, 2012, p.53).

Tem-se que reconhecer que o texto constitucional não catalogou expressamente a segurança pessoal e a segurança pública como direitos fundamentais. A par disso, inúmeras discussões gravitaram em torno da natureza do direito à segurança pública.

Nesse sentido, é lícito afirmar que o direito à segurança pública representa uma faceta pública do direito fundamental à segurança pessoal.

 "[...] tem-se que o direito fundamental à segurança pessoal faz parte da primeira dimensão dos direitos fundamentais, vinculado que está à integridade física, à liberdade pessoal, etc. A segurança pública, por sua vez, pode ser concebida como a dimensão pública da segurança pessoal e, assim como a habitação, saúde, etc., necessita de um agir Estatal, estando situada, por isso, na segunda dimensão dos direitos fundamentais."  (AZEVEDO & BASSO, 2008, p.28).

O Pacto de San José de Costa Rica, em seu art. 7º, assegura que toda pessoa tem direito à segurança pessoal.  Lado outro, como já mencionado, a nossa Constituição Federal trata da segurança pública no seu artigo 144. Por meio da cláusula de abertura prevista no §2º do art.5º da Constituição, mesmo não existindo expressa previsão, resta claro que a segurança pessoal e a segurança pública merecem ser tratadas como direito fundamentais.

"Por duas vias, o direito à segurança encontraria guarida como direito fundamental, por estar no corpo da Constituição, pois previsto em seu art. 144, e por constar, sob outra dimensão, como segurança pessoal, no art. 7º da Convenção Americana de Direitos Humanos. "(AZEVEDO & BASSO, 2008, p.28).

À luz disso, não há como negar que o direito à segurança pública pertence ao grupo dos direitos sociais de segunda dimensão. Em razão de ser um direito considerado positivo, o Estado precisa atuar, buscando criar condições efetivas de segurança pública. Para tanto deve se valer das instituições e dos órgãos policiais.

"Acerca da eficácia das normas constitucionais relativas à segurança pública, é preciso observar a presença dos requisitos de natureza fática e técnico-normativa. A eficácia fática diz respeito à estrutura do serviço de segurança pública, com o pleno funcionamento dos órgãos policiais. A eficácia técnica depende da existência de normas constitucionais e infraconstitucionais sobre segurança pública, tratando da organização e funcionamento dos órgãos policiais, bem como das condições técnico-normativas voltadas para a produção de efeitos concretos." (SANTIN, 2004, p.82).

Assim, a estruturação da investigação criminal, realizada pela Polícia Judiciária, revela-se indispensável para gerar um procedimento eficiente destinado à apuração de crimes e, via de consequência, garantir, de fato, segurança pública.  Esta estruturação não deve ser apenas material, mas pessoal, qualificando os policiais no sentido de produzirem uma investigação criminal contemporânea.

A Polícia Judiciária, incumbida constitucionalmente do poder investigatório, não pode fechar os olhos para a evolução tecnológica e para os meios telemáticos de comunicação dos quais têm se valido os autores de delitos, sob pena de se criar um espaço imune ao controle estatal, onde crimes graves multiplicar-se-ão sem qualquer repressão, a facilitar principalmente a ação de associações criminosas e do crime organizado.

O acesso aos dados e conversas realizadas por intermédio do WhatsApp pela polícia surge como instrumento investigatório catalisador de vantajosos e elevados resultados para a elucidação de crimes, impactando positivamente na segurança pública. Por carecer de regulamentação legal e administrativa, vem sendo suscitada alegações de devassa dos telefones celulares pela polícia. Em virtude disso, avocam ao judiciário o papel de equacionar soluções em que se verifica a colisão de dois blocos de direitos fundamentais: a inviolabilidade do sigilo das comunicações/da intimidade/da vida privada e a garantia da segurança pública/investigação criminal eficiente.


4 ACESSO AO APLICATIVO WHATSAPP PELA POLÍCIA DURANTE A INVESTIGAÇÃO CRIMINAL

4.1 LIMITAÇÃO À INVIOLABILIDADE DO SIGILO DAS COMUNICAÇÕES/INTIMIDADE/PRIVACIDADE

Como consabido, não existem direitos fundamentais absolutos. Por isso, “estudar os direitos fundamentais significa principalmente estudar suas limitações” (DIMOULIS & MARTINS, 2011, p.130).

Todos os direitos fundamentais sofrem limitações em variados graus de amplitude. Faz parte do constitucionalismo adequado, a compreensão da Constituição como um sistema aberta de regras e princípios. Esse sistema encaixa-se perfeitamente em uma sociedade pluralista, em que é comum existirem conflitos de valores e discordâncias de interesses.

"Restrições aos direitos fundamentais podem ser impostas expressamente pela própria Constituição ou por ela autorizadas, como também pela colisão de outros direitos fundamentais. “A restrição expressa pode ocorrer ou mediante um texto restritivo já ao nível constitucional, ou pela possibilidade de limitação por lei." (BORNHOLDT, 2005, p.94).

"Em caso de restrições de direitos fundamentais sem cláusula de reserva, ou seja, sem imediata determinação constitucional ou autorização da Constituição, o parâmetro para a restrição sempre será um outro direito constitucional." (MÜLLER apud BORNHOLDT, 2005, p.99).

A inviolabilidade do sigilo das comunicações está consagrada no artigo 5º, inciso XII, da Constituição. Conforme a referida norma, é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, para fins de investigação criminal ou instrução processual penal, nas hipóteses e na forma estabelecidas em lei.

Nitidamente a norma constitucional citada protege a liberdade de comunicação, assegurando a não interferência de terceiros. São tuteladas as comunicações postal, telegráfica, de dados e telefônica. O sigilo figura-se como o meio de proteção da troca de informações privadas ou íntimas (secretas), motivo pelo qual a inviolabilidade do sigilo das comunicações mantém vínculo estreito com os direitos de intimidade e privacidade.

A comunicação realizada por meio postal, por dados informáticos ou telemáticos e por meio telegráfico não poderia ser restringida como a comunicação telefônica. Esse é o entendimento de parte da doutrina (GREGO FILHO, 1996, p.11-13). Seguindo essa linha de pensamento, apenas a comunicação telefônica poderia sofrer restrições, com a possibilidade da quebra do sigilo por ordem judicial, na forma da lei, para fins de investigação criminal ou instrução processual penal.

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"Para outra parcela da doutrina, o inciso XII do artigo 5º da Constituição possui dois blocos ou partes. O primeiro englobaria a comunicação postal e comunicação telegráfica. Já o segundo abarcaria as comunicações executadas por meio de dados e via telefones. Os defensores dessa corrente entendem que a restrição à inviolabilidade do sigilo abrange o segundo bloco, ou seja, comunicação de dados e comunicação telefônica." (RANGEL, 1999, p.143).

Hodiernamente não se pode deixar de interpretar a norma constitucional dentro do contexto histórico, social, político e tecnológico. A interpretação constitucional deve sempre encontrar espaços para complementar e desenvolver a aplicação do direito na justa medida, proibindo-se, logicamente, acessos que possam comprometer a segurança jurídica.

"Uma interpretação literal, que feche os olhos para o avanço da técnica, possibilitará o desenvolvimento de uma criminalidade moderna, em especial para a prática de crimes mais sofisticados, que poderá planejar livremente seus delitos pela troca de correspondência eletrônica ou mediante transferência de dados por sistemas de telemática. O problema pode ser mais grave, ao se imaginar que, futuramente, será cada vez mais reduzida a utilização da comunicação telefônica tradicional, que será substituída pela comunicação de vozes – e provavelmente imagens – por computadores, inclusive tablets, smartphones cada vez menores. Nesse sentido, uma interpretação literal e historicamente descontextualizada do inciso XII impediria, de modo absoluto, qualquer restrição a tal forma de comunicação." (BADARÓ, 2015, p.504).

A Lei n.9.296/1996 colocou uma pá de cal na polêmica: foi categórica ao ampliar a possibilidade de interceptação do fluxo de comunicações em sistemas de informática e telemática (parágrafo único do artigo 1º). O entendimento consolidado na lei foi o mais ajustado, de forma que considerou “serem a comunicação informática e a comunicação telemática formas derivadas do gênero comunicação telefônica” (FERNANDES, 2010, p.96).

Aflorados alguns comentários sobre a interceptação telefônica e telemática e a restrição autorizada pela Constituição, impõe-se a delimitação do tema, focando a atenção para a restrição à inviolabilidade do sigilo da comunicação realizada por meio do acesso aos dados telemáticos estáticos, armazenados no aplicativo WhatsApp.

Impende destacar que a restrição à inviolabilidade do sigilo da comunicação telemática mediante o acesso aos dados e conversas pretéritas trocadas pelo WhatsApp não se confunde com a interceptação desses mesmos dados. A pesquisa exploratória do referida aplicativo incide sobre dados registrados e armazenados no aparelho de telefone. O acesso é de diálogos ocorridos no passado. Diferente da interceptação, em que ocorre a captação do fluxo dos dados telemáticos e que, segundo a empresa WhatsApp, seria impossível, pela criptografia de ponto a ponta.

A Constituição não trouxe autorização imediata de limitações aos direitos fundamentais no que concerne ao acesso aos dados telemáticos contidos em aparelhos de telefone celular. Logo, qualquer restrição deverá ser decorrente de norma infraconstitucional ou por outro direito fundamental.

Por ser o acesso aos dados contidos no aplicativo WhatsApp qualificado como intervenção ao direito de comunicação estática, o qual está umbilicalmente ligado aos direitos inerentes à intimidade e privacidade, é lícito afirmar que entrará em rota de colisão como o direito fundamental à segurança pública.

Portanto, a restrição de tais direitos fundamentais individuais justifica-se diante da colisão com direito ou princípio de interesse geral, como a segurança pública, sobretudo quando da aplicação de norma infraconstitucional, a qual, no caso, se refere à legislação processual penal (Código de Processo Penal) que permite a apuração de delitos por meio da obtenção de elementos informativos e de provas em sede de inquérito policial, buscando garantir segurança pública.

"Termos possibilidade de intervenção justificada se dois direitos fundamentais ou um direito fundamental do indivíduo e um princípio de interesse geral colidirem quando da aplicação de normas de direito infraconstitucional. Exemplos: a polícia proíbe uma reunião para possibilitar o exercício da liberdade de locomoção (...); o diretor de um presídio abre a correspondência dos detentos por razões de segurança pública (...). Nesses casos, o comportamento proibido situa-se na área de proteção, porém sua proibição ou limitação pode vir a ser constitucionalmente justificada pela existência de uma colisão normativa. Seu pressuposto é a atividade legiferante infraconstitucional do Estado que, ao perseguir a proteção de bens jurídicos constitucionais, acaba tendo que limitar o exercício de um direito fundamental." (DIMOULIS & MARTINS, 2011, p.142).

Ocorre que a permissão de limitar um direito fundamental mediante intervenção em seu âmbito de proteção não pode ser ilimitada. Policiais não podem sair apreendendo celulares de suspeitos ou investigados sem obedecerem a critérios, sendo proibido o excesso no exercício do direito à efetiva investigação criminal (meio de alcançar a segurança pública).

"A doutrina exprime essa constatação afirmando que a limitação dos direitos fundamentais conheceu suas próprias limitações. Isso significa que é proibido proibir o exercício do direito além do necessário. Essa é a teoria dos limites dos limites (Schranken-Schranken) elaborada no direito constitucional alemão."  (DIMOULIS & MARTINS 2011, p.158).

No Brasil, diferente do direito constitucional alemão, não há disposição estabelecendo critérios ou requisitos para limitar as intervenções aos direitos fundamentais. A solução encontrada, diante da colisão entre direitos fundamentais, é o intérprete e/ou operador do direito, no caso concreto, ponderar e justificar o modo como se dará a limitação, interpretando de forma sistemática a Constituição e aplicando o princípio ou critério da proporcionalidade ((DIMOULIS & MARTINS 2011, p.162).

4.2 INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL DAS NORMAS COLIDENTES (INVIOLABILIDADE DO SIGILO DA COMUNICAÇÃO/INTIMIDADE/PRIVACIDADE X SEGURANÇA PÚBLICA/INVESTIGAÇÃO CRIMINAL EFETIVA)

No pós-positivismo, o Constitucionalismo se modernizou. Os princípios constitucionais foram reconhecidos pelo ordenamento jurídico. A dogmática jurídica atual consagrou sua normatividade. Houve a superação do positivismo meramente legalista, em que normas se definiam tão-somente como regras. A Constituição representa um sistema aberto de princípios e regras, considerados como duas categorias de normas.

"Na trajetória que os conduziu ao centro da norma jurídica, os princípios tiveram de conquistar o status de norma jurídica, superando a crença de que teriam uma dimensão puramente axiológica, ética, sem eficácia jurídica ou aplicabilidade direta e imediata. A dogmática moderna avaliza o entendimento de que as normas em geral, e as normas constitucionais em particular, enquadram-se em duas grandes categorias diversas: os princípios e as regras. (...) A Constituição passa a ser encarada como um sistema aberto de princípios e regras, permeável a valores jurídicos suprapositivos, no qual as idéias de justiça e de realização de direitos fundamentais desempenham um papel central.[...] .A mudança de paradigma nessa matéria deve especial tributo à sistematiza de Ronald Dworkin. Sua elaboração acerca dos diferentes papéis desempenhados por regras e princípios ganhou curso universal e passou a constituir o conhecimento convencional na matéria. Regras são proposições normativas aplicáveis sob a forma de tudo ou nada (‘allornothing’).[...] . Princípios contêm, normalmente, uma maior carga valorativa, um fundamento ético, uma decisão política relevante, e indicam uma determinada direção a seguir [...] .A colisão de princípios, portanto, não só é possível, como faz parte da lógica do sistema, que é dialético. [....] . Deve-se reconhecer aos princípios uma dimensão de peso ou importância. À vista dos elementos do caso concreto, o intérprete deverá fazer escolhas fundamentadas, quando se defronte com antagonismos inevitáveis [...] . A aplicação dos princípios se dá, predominantemente, mediante ponderação." (BARROSO, 2001, p.30-31).

Longe de serem iguais, regras e princípios não se assemelham juridicamente. As regras veiculam mandados de definição ou mandamento definitivos. Já os princípios expressam mandados de otimização. As regras são válidas e aplicáveis ou são inválidas e não são aplicáveis. Sua forma de aplicação é a subsunção. Ao passo que os princípios devem ser aplicados da forma mais ampla possível, admitindo gradação de intensidade de acordo com as possibilidades jurídicas que circundam o caso. A restrição da otimização do princípio pode ser levada a efeito por regras com poder de gerar exceções em algumas situações e por outros princípios opostos e com a mesma estatura. Nesse último caso, torna-se necessária solucionar pela ponderação. (ALEXY, 1999, p. 74-75).

Verifica-se, portanto, que existindo princípios contrapostos, como é o caso da norma relativo ao direito ao sigilo das comunicações/intimidade/privacidade e o direito à segurança pública/investigação criminal eficiente, faz-se mister a ponderação de valores ou interesses, buscando examinar, no caso concreto, o peso e importância correspondentes a cada um dos princípios em colisão. O resultando da ponderação deve ser obtido com o mínimo de sacrifício e preservação do possível, estribado no princípio da razoabilidade/proporcionalidade.

4.3       ACESSO AOS DADOS ARMAZENADOS NO WHATSAPP COM AUTORIZAÇÃO JUDICIAL PELA POLÍCIA

Não raras vezes, ao se prender alguém em flagrante delito ou numa abordagem de rotina, faz-se a apreensão ou a retenção do telefone celular. A dúvida que se levanta é saber quem, quando e como deve ser realizada a pesquisa exploratória dos dados registrados, eis que acessando as informações nele contidas, estas podem representar elementos de provas relevantes e hábeis a fundamentar medidas cautelares, prisões, desmantelamento de associações e organizações criminosas.

Acerca da prova, a Constituição Brasileira inadmite, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos (art.5º, inciso LVI).  Ao passo que nosso Código de Processo Penal, seguindo a mesma linha, estabelece que são inadmissíveis as provas ilícitas, devendo ser desentranhadas do processo, assim entendidas as obtidas em violação a normas constitucionais ou legais (art.157).

Sobre as provas derivadas das ilícitas, o nosso Código de Processo Penal também proíbe essa espécie/meio de prova, excetuando apenas quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente das primeiras. (§1º do art.157). Cabe salientar que a legislação citada considerada fonte independente aquela que por si só, seguindo os trâmites comuns, próprios da investigação ou instrução criminal, viabilizaria se chegar ao fato objeto da prova (§2º do art.157).

Importa destacar que o Código Penal da Espanha trata como crime aquele que, sem consentimento, com vistas a descobrir os segredos ou vulnerar a intimidade de outro, apodere-se de papéis, mensagens de correio eletrônico, intercepta telecomunicações, utilize artifícios técnicos de escuta, transmissão, gravação, reprodução de som ou de imagem e outro sinal de comunicação. O autor poderá sofrer pena de prisão de um a quatro anos e multa de doze a vinte e quatro meses. (art. 197).

É preciso esclarecer que existe recente e paradigmático julgado do Superior Tribunal de Justiça, em que foi enfrentada, pela primeira vez por um Tribunal Superior, a matéria envolvendo o acesso aos dados e conversas trocadas pelo WhastsApp gravadas no aparelho de telefone celular. Trata-se do RHC 51 531 – RO[12] , cuja questão objeto de discussão consistiu na declaração de nulidade dos elementos de prova obtidos pelo acesso aos dados contidos no aplicativo WhatsApp de um telefone celular apreendido por policiais durante a prisão em flagrante delito de um suspeito da prática do crime tráfico de drogas.

Ao final, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça decidiu que o acesso aos dados contidos no telefone celular depende de ordem judicial. Nesse mesmo, julgado foram citados leading cases dos Estados Unidos, Canadá e Espanha.

No caso Riley v California, ocorrido no ano de 2009, policiais de San Diego fizeram a abordagem de David Riley, o qual conduzia um veículo com a habilitação vencida. Durante a revista no veículo, foram encontradas duas pistolas e o celular. Os policiais acessaram o conteúdo do aparelho e descobriram que Riley era membro de uma gangue de assassinos. O Tribunal Californiano entendeu que não havia sido contrariada a 4ª (quarta) emenda. Contudo, o caso seguiu para a Suprema Corte Americana, e os juízes decidiram que a atuação policial violou o direito à intimidade de Riley e que havia necessidade de ordem judicial para explorar os dados contidos no telefone celular.

Outra comparação realizada no julgado RHC 51 531 – RO foi com o Leading Case R v Fearon[13] . Em 2014, no Canadá, Kevin Fearon e comparsa roubaram joias de um comerciante. Policiais abordaram a dupla e acessaram o celular de Fearon. No celular, eles encontraram fotos da arma (espingarda) usada para praticar o roubo e mensagens (confissão do roubo). Depois de um dia, os policiais pediram busca no veículo baseados nos dados obtidos pelo acesso ao celular. No veículo, foi localizada a arma no interior do veículo (mesma arma antes retratada pela foto armazenada no celular). A Suprema Corte Canadense entendeu pela existência de prerrogativa policial de acesso aos dados do celular recentes e de interesse criminal incidente à prisão, de forma excepcional para servir à persecução penal (identificar autores, auxiliar na apreensão de instrumentos do crime, preservação de provas, prevenção de fuga, tornar possível a continuidade da investigação etc).

A citação da Sentencia 115/2013, proferida pelo Tribunal Constitucional Espanhol, também fez parte da sobredita decisão do Superior Tribunal de Justiça. Em resumo, policiais abordaram suspeitos, os quais fugiram, deixando para trás haxixe e celulares. Então, os policiais acessaram os dados gravados nos celulares e identificaram os suspeitos. Houve localização dos suspeitos e prisões. O Tribunal entendeu que ocorreu ingerência leve (somente a agenda foi examinada). Observou que os julgadores que, se tivesse ocorrido exame mais aprofundado, demandaria um parâmetro mais rigoroso de verificação do princípio da proporcionalidade.

Quadra consignar que a reserva de jurisdição mostra-se como exigência legal, em havendo restrição à inviolabilidade do segredo da comunicação. A Lei n. 9.472/97 (Lei das Telecomunicações), prescreveu que o usuário de serviços de telecomunicações tem direito a inviolabilidade e ao segredo de sua comunicação, salvo nas hipóteses e condições constitucional e legalmente previstas (art.3º, inciso V). Já a Lei n.12.965/14 (Marco Civil da Internet), que assegurou aos usuários de internet o direito à inviolabilidade da intimidade e da vida privada; inviolabilidade e sigilo do fluxo de suas comunicações pela internet, salvo por ordem judicial, na forma da lei; inviolabilidade e sigilo de suas comunicações privadas armazenadas, salvo por ordem judicial (art.7º, incisos I, II, III). 

À luz disso, pela interpretação literal depreende-se que tanto a Constituição quanto as legislações infraconstitucionais salvaguardam o direito fundamental à privacidade/intimidade, bem ainda tutelam a liberdade e o sigilo das comunicações de dados telefônicos.

 Estribado na decisão do Superior Tribunal de Justiça e assentado na interpretação das normas constitucionais e infraconstitucionais, firmou-se o entendimento de que a atuação jurisdicional (reserva de jurisdição) constitui condição indispensável para legitimar o acesso aos dados telemáticos armazenados no aparelho de telefone celular pela polícia. A intromissão policial, mesmo pela Autoridade Policial[14] , nas conversas tidas pelo aplicativo WhatsApp sem a permissão judicial violaria direitos fundamentais e o texto de leis especiais inerentes à matéria.

4.4 ACESSO AOS DADOS ARMAZENADOS NO WHATSAPP DIRETAMENTE PELA POLÍCIA SEM AUTORIZAÇÃO JUDICIAL

Como ponto de partida, o artigo 6º do Código de Processo Penal impõe à Autoridade Policial, respeitando a particularidade de cada caso concreto e logo que tiver conhecimento da infração penal, apreender os objetos que tiverem relação com o fato, após liberados pelos peritos criminais, bem ainda determinar que se proceda a exame de corpo de delito e a quaisquer outras perícias (inciso II e VII).

Recontextualizando as diligências investigatórios previstas na aludida norma, invariavelmente usadas no âmbito da investigação criminal clássica, inserindo-as em um cenário de investigação contemporânea, em que a evolução tecnológica dita os meios de obtenção de provas, infere-se que a Autoridade Policial pode, como deve, apreender telefones celulares relacionados com o crime, bem como determinar a realização do exame pericial de vistoria e “degravação” das conversas incutidas no aplicativo WhatsAppde interesse investigatório e relevantes para a persecução penal.

 Alicerçado nesse entendimento, que decorre de uma interpretação progressiva da legislação infraconstitucional, verifica-se que a Autoridade Policial pode ter acesso a conversações e dados armazenadas no WhatsApp de suspeitos investigados pela prática de delitos independentemente de autorização judicial.

 Outro argumento do qual se valem é o de que o acesso aos dados guardados na memória do celular não pode ser confundido com a interceptação. Ou seja, não existe captação em tempo real do fluxo das conversas e arquivos trocados entre os interlocutores. Portanto, a Autoridade Policial, ao explorar diretamente o conteúdo dos dados e diálogos aglutinados no aplicativo WhatsApp atua em estrito cumprimento do dever legal (COSTA & SILVA, p.57, 2014).

 Cumpre salientar que a lista de chamadas, as conversas (textuais ou em áudios) reunidas no aplicativo do telefone são acessíveis porque o suspeito não manifestou interesse em excluí-las, bem ainda não optou por criar senha de proteção do aparelho. Isso pode levar à conclusão de que os dados não foram considerados sigilosos pelo suspeito, tornando a atuação policial legítima. 

 Ou seja, o suspeito não quis exercer o seu direito fundamental. Daí se pode afirmar que o não exercício da liberdade de comunicação (inviolabilidade do sigilo, intimidada e privacidade) poderá ocorrer mediante autorização expressa, quando se reduz a termo a autorização do suspeito, ou por autorização tácita, constatada pela análise das circunstâncias e comportamento do suspeito de não adotar as cautelas necessárias típicas de quem reputa sigilosos os dados armazenados no telefone celular.

"Na maioria dos direitos fundamentais, há livre-arbítrio de exercer ou não o direito outorgado. A liberdade decorrente de direito fundamental é, em toda a regra, dispositiva, sendo somente o Estado obrigado a justificar suas ações/omissões em face da liberdade outorgada, não sendo o indivíduo obrigado a justificar o seu não exercício (Verteilungsprinzip)." (DIMOULIS & MARTINS, 2011, p.134).

Convém enfatizar que a decisão do Superior Tribunal de Justiça (RHC 51 531 – RO)[15] , apesar de ter sido no sentido de exigir autorização judicial para acesso aos dados constantes no telefone celular, por meio do voto da ministra Maria Thereza Moura, trouxe à baila a existência de um conflito parcial entre o direito fundamental à segurança pública (art. 144, da CF/88) e o direito fundamental à intimidade. Restou demonstrada a indispensabilidade do processo de ponderação diante dos interesses colidentes.

Destacou a ministra Maria Thereza Moura que no processo de ponderação não se deve conferir primazia absoluta a um princípio/direito, mas sim assegurar a aplicação dos direitos e normas conflitantes, com a atenuação de um deles.

O voto da ministra Maria Thereza, malgrado siga o entendimento unânime da Turma, demonstrou que a matéria exige debates e ainda é muito controvertida. Ela destacou que a Suprema Corte do Canadá, ao decidir o caso R. v. Fearon, entendeu (4x3 votos) que a polícia poderia acessar os dados armazenados em aparelho celular, sem prévia autorização judicial, quando fosse na sequência da prisão em flagrante do suspeito. Noutras palavras, foi reconhecido o “elemento de urgência”, irradiando o poder de restrição da liberdade individual (prisão em flagrante) para a limitação da liberdade de comunicação, permitindo o acesso aos dados gravados nos telefones celulares.

 Seguindo ainda com a análise da decisão do Superior Tribunal de Justiça sobre o caso R v Fearon, nota-se que a Suprema Corte Canadense apontou a necessidade do cumprimento de 4 (quatro) condições para legitimar o acesso aos dados contidos no celular, considerando os interesses à persecução penal e ao direito fundamental à privacidade.

Nesse passo, para a Suprema Corte Canadense, a prisão tem de ser lícita; o acesso aos dados do telefone celular tem de ser incidental à prisão e realizado imediatamente após o ato para servir efetivamente aos propósitos da persecução penal; a natureza e a extensão da medida devem servir para os referidos propósitos, indicando que apenas correspondências eletrônicas, textos, fotos e chamadas recentes podem ser escrutinadas; as autoridades policiais devem tomar notas detalhadas dos dados examinados e de como se deu esse exame, com a indicação dos aplicativos verificados, do propósito, da extensão e do tempo do acesso, requerendo a manutenção de registros, auxiliando na posterior revisão judicial e permitindo aos policiais agir em estrito cumprimento às demais condições expostas.

Cabe enfatizar que Tribunais Estaduais Brasileiros têm enfrentado a matéria. As decisões indicam que o acesso aos dados do aplicativo WhatsApp incidentemente à prisão em flagrante não configura quebra do sigilo das comunicações e independe de autorização judicial quando o suspeito libera o referido acesso.

Sabe-se que a privacidade, a intimidade e o sigilo das comunicações telefônicas são direitos constitucionalmente assegurados ao indivíduo, contudo, o acesso aos dados, do tipo mensagens/imagens armazenados em aparelho celular legitimamente apreendido pela autoridade policial, quando da prisão de seu proprietário/portador, esse que inclusive liberou dito acesso, não caracteriza hipótese de intercepção telefônica, não ensejando, portanto, nulidade do feito por ofensa à garantia da inviolabilidade das comunicações. [...] .[16]

Imperioso consignar o voto do Desembargador FLÁVIO BATISTA LEITE, proferido durante julgamento de Habeas Corpus[17] impetrado perante o Tribunal de Justiça Mineiro:

"[...] o direito à intimidade, protegido pelo art. 5º, X, da Constituição da República, genericamente alegado, não pode funcionar como óbice às investigações, sendo necessário ponderar os valores constitucionais envolvidos, conforme já entendido pelo Supremo Tribunal Federal, que admite até mesmo a quebra do sigilo de correspondência do preso, com base no princípio da proporcionalidade. Outros documentos ou mídias apreendidos na cena do crime, que também estariam, em circunstâncias normais, protegidos pelo direito à intimidade, poderiam ser periciados pelo investigador sem qualquer questionamento sobre a legalidade da medida, justamente em razão do contexto em que tais objetos, ligados direta ou indiretamente ao crime, foram encontrados. Não há, portanto, qualquer razão lógico-jurídica para se destacar a perícia em aparelhos celulares do cenário acima descrito, até porque ela fica restrita às informações que tenham relevância para a investigação. Tem-se, portanto, que, ao proceder à apreensão e perícia dos objetos encontrados no local do crime e dos respectivos dados neles armazenados, a autoridade policial age nos estritos termos da sua função e da lei, em conformidade com o disposto no art. 6º, II, do CPP."[18]  

 Por derradeiro, decidiu o Superior Tribunal de Justiça, no RHC 75.800[19] , que a ordem de busca e apreensão judicial do telefone celular traz implícita a autorização para a pesquisa do conteúdo de quaisquer matérias de interesse criminal. Ou seja, o mandado de busca e apreensão permite, por indução lógica, a pesquisa de dados (CABETTE, 2017, p.11).

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Sobre o autor
Murilo Cézar Antonini Pereira

Delegado de Polícia - MG. Especialista em ciências penais. Mestrando em Direito pela UNIVEM.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PEREIRA, Murilo Cézar Antonini. Acesso aos dados armazenados no WhatsApp pela polícia durante investigação criminal:: implicações nos direitos fundamentais . Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5535, 27 ago. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/68482. Acesso em: 8 nov. 2024.

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