Os estudiosos e operadores do direito na área de licitações são unânimes quanto à necessidade de mudanças drásticas na legislação que rege as compras governamentais no Brasil. As dificuldades na aplicação da norma resultam em erros e apenamento do gestor. Não há entendimento heterogêneo nem na manifestação dos especialistas, onde estão incluídos os tribunais e a jurisprudência acerca do tema. Fatores esses que geram insegurança, especialmente quando estamos diante de um quadro de pessoal à posto nos entes públicos, onde o despreparo e a falta de capacitação são a regra vigente.
A insegurança e as dificuldades de interpretação e aplicação da norma resultam também em problemas na condução do certame e sua consequente resposta ao que se pretende. O gestor passa a ser refém disso.
Temos sob análise alguns parâmetros:
Conceituais: modelo de compra governamental ruim, legislação deficitária, não atualizada, que anseia por mudanças para evitar maiores perdas.
Funcional: servidores públicos sem capacitação e que assistem o descompasso na interpretação e aplicação da norma legal. Até para os de boa intenção a norma gera desacertos.
Propostas: rever drasticamente o modelo de compra, com a centralização, a padronização e o uso da tecnologia na contratação e no acompanhamento da execução do contrato. A centralização gera maior possibilidade de controle por parte dos órgãos externos e a desburocratização com a aferição das habilitações jurídicas e técnicas, feitas de forma centralizada e sob um único modelo gerencial.
Cenário político: o Congresso Nacional discute modelos que mudam a “estética” da legislação atual, dando novos nomes a modelos ultrapassados, que, no final, não significarão vantagens no cenário vivido atualmente, que é foco de fraudes e desvios, perpetrados por operadores despreparados e não capacitados, além dos que agem de má fé.
Do fundamento da licitação
O fundamento do licitar é encontrar o melhor preço aliado à qualidade e bom atendimento do poder público contratante. O objeto adquirido deve atender aos anseios do gestor, reunindo qualidade, melhor preço e agilidade no fornecimento e execução do contrato.
Para atender tais anseios, a licitação prescinde de um projeto de qualidade e de planejamento. O atual modelo é anteparo para o gestor justificar a execução ruim dos contratos, especialmente das obras e justificar a falta de produtos e equipamentos que fazem a máquina pública funcionar bem.
Os jornais noticiam, diariamente, que estão faltando vacinas, não há medicamentos, a obra está atrasada. Ouvido o gestor, a “licitação” é sempre a vilã.
Por outro lado, o fornecedor não tem segurança ao contratar com o Poder Público, sob a alegação dos riscos de não receber, das dificuldades na execução dos contratos, pois não há modelos, nem parâmetros nos julgamentos. O resultado é o baixo interesse das empresas em contratar com o governo. Via de consequência, diminuindo a disputa nas licitações, os preços tendem a aumentar, o que se reproduz na qualidade dos produtos fornecidos.
O servidor público, por despreparo e dificuldades na aplicação da lei, resiste a integrar as comissões de licitação, relegando tal mister a poucos integrantes dos quadros do ente.
Do que há em vigor
O país hoje utiliza uma lei ultrapassada, lenta e que, em mais de 25 anos, não sofreu nenhuma modificação que merecesse torná-la viável e moderna. A lei em vigor não atende os anseios da evolução tecnológica, nem se utiliza dela para que as compras governamentais sejam eficientes.
Os municípios, em sua maioria, não detêm capacitação para licitar. Não há infraestrutura, nem pessoal preparado, abrindo o caminho para a fraude e a compra em valores e com qualidade incompatível com a eficiência da gestão.
Regras iguais são aplicadas a desiguais. Um município próximo à capital tem acesso a capacitação e recursos para investir em tal intento. Um município longínquo, pequeno e sem condições de investir em treinamento, sofre os mesmos parâmetros de fiscalização de uma grande cidade. O país tem hoje 5.570 municípios, sendo que a maioria desses, mais de 70%, estão situados na faixa de população inferior a 20 mil habitantes, que são dependentes do Estado e da União.
Por outro lado, apesar de não disporem de apoio e treinamento para seus quadros funcionais, são fiscalizados pelos diversos órgãos do Ministério Público (Estadual, Federal, do Trabalho e dos Tribunais de Contas), pelo TCU (execução de convênios federais), TCE (contas anuais e execução de contratos), além do controle interno e social. Um exemplo prático é a lei de transparência, que é cumprida de forma muito canhestra, por grande parte desses municípios. Há municípios que não dispõem sequer de um site da prefeitura.
Propostas para a licitação do futuro
A nova licitação deve ser ágil, rápida e capaz de contratar com qualidade e economia, como explicitamos.
Em tempos de tecnologia, qualquer mudança na lei deve considerar que está se legislando para o futuro, não para o passado. O modelo atual permite que um órgão adquira um produto que, ao ser entregue, não tem a serventia que teria quando a compra foi solicitada.
Os novos tempos precisam de uma gestão que responda rápido aos anseios do gestor público e atenda os anseios das populações locais. Cumprindo, assim, o princípio constitucional da eficiência, em sua plenitude.
Não é preciso lembrar que as licitações são os maiores focos de corrupção e desmandos na gestão brasileira. O gestor não tem recursos financeiros para a saúde, educação e infraestrutura, por não investir em transparência e na eficiência da licitação. Se a licitação é eficiente, se o gestor compra, no tempo certo, o produto que lhe atende a contento, economiza e sobram recursos para investir em outras áreas.
Investir em tecnologia é imprescindível, tanto para a compra e contratação, quanto para o controle de estoques e da execução dos contratos. Não adianta comprar bem e o objeto não ser entregue ou o serviço ser executado de forma diferente do que previa o contrato.
A ideia de centralização na realização da licitação e o uso de ferramentas eletrônicas, delegando apenas parte do acompanhamento da execução ao gestor contratante, pode surtir efeitos na agilização e na padronização dos procedimentos. Especialmente num quadro onde a maioria das cidades é de pequeno porte, sem capacidade de investir em infraestrutura e treinamento de seu pessoal.
A centralização pode suprir o efeito do despreparo dos entes que não possuem, em seus quadros funcionais, pessoal qualificado para realizar licitações, especialmente as de maior complexidade. Vide hoje a constatação de alguns tribunais de contas, no sentido de que o gestor se utiliza dos erros detectados no controle externo, para institucionalizar contratos emergenciais, sob a justificativa de que “não conseguem licitar”.
A centralização reduziria a burocracia com a instituição de cadastro único de licitantes, controlado via senha de acesso nos moldes da assinatura digital, num modelo e-Licitação.
O acompanhamento da execução também seria centralizado em partes, incumbindo ao gestor local, dos quadros do ente, apenas a validação das etapas, que seriam publicadas em aplicativos para acesso geral e possibilidade de manifestação popular ativa, opinando sobre obras, sobre seu andamento e plena execução.
Assim, listemos alguns itens imprescindíveis à nova licitação:
1) Ser 100% eletrônica - decretar o fim da licitação presencial. A licitação eletrônica hoje é viável para qualquer empresa que queira oferecer produtos e serviços a órgãos públicos. Exemplo disso é que temos um imposto de renda totalmente eletrônico há vários anos, os balanços das empresas são eletrônicos, com a implantação do e-Social, grande parte das tarefas relacionadas a pessoal, é eletrônica, assim, não há justificativa para ainda existir um procedimento tão importante, sendo feito com papel e caneta. Aliás, a grande maioria dos órgãos já utiliza algum tipo de software para realizar suas licitações, inclusive aquelas chamadas de presenciais.
2) Instituir o pregão, como única modalidade licitatória, independente do objeto e valor. A unificação numa única modalidade permite ao gestor, ao legislador e aos licitantes e órgãos, estabelecer padrões. Hoje existem, nada mais do que 6 modalidades, além de suas variantes e espécies, que servem à confusão e dificuldade de realização com qualidade e eficiência. A quem serve a não unificação dos modelos de licitação? A confusão facilita a fraude e dificulta o bom gestor aplicar a lei atendendo requisitos de eficiência.
3) Instituir um cadastro único de fornecedores como requisito da habilitação - as empresas só acessariam o sistema via senha concedida por este órgão, que pode até ser privado (modelo das atuais empresas certificadoras de assinatura digital). Cada empresa disporia de um cadastro público único (Nacional) e se valeria dessa “assinatura digital” para acessar as licitações que tivesse interesse e que, para as quais, tivesse comprovada capacidade técnica e jurídica. As empresas poderiam ser qualificadas por faixas: para obras, a empresa entraria num nível básico, onde poderia participar de licitações até um determinado valor. Assim subiria na escala, até atingir a faixa maior. Para isso, seriam considerados fatores como boa execução de contratos anteriores, saúde financeira e tributária, atendimento das regras trabalhistas e cumprimento dos protocolos de meio ambiente e sustentabilidade. Afastaria as empresas que não detém capacidade técnica e operacional de atender um determinado contrato mais complexo.
4) Contratos de longa duração para serviços - com parâmetros de melhorias que seriam instituídas a critério da contratante. A empresa que firmasse contrato, apresentando bons preços e qualidade na prestação de serviços, teria alguns benefícios, caso o contrato fosse atendido a contento. Esses benefícios seriam medidos por avaliação dos controles internos, externos e até da população, que poderia opinar via acesso a aplicativos públicos, concedendo a ela a possibilidade de manter contratos por tempo máximo de 20 anos. Para tanto, teria que atender os requisitos (pré-estabelecidos) de bom atendimento ao público (interno e externo), cumprimento da legislação trabalhista, fiscal e previdenciária, atendimento aos protocolos de sustentabilidade e oferta de preços compatíveis. Tomemos como exemplo os serviços de transporte público. As empresas teriam contratos a longo prazo, desde que cumpridos os requisitos fixados em lei, estariam, portanto, sujeitas ao cumprimento e manutenção da qualidade, que pode ser aferida nas avaliações dos usuários. O modelo de satisfação pode ser copiado dos aplicativos como Uber e assemelhados.
5) Fiscalização dos procedimentos e controle externo único - evitando que o mesmo procedimento seja submetido a entendimentos diversos dos tribunais de contas, órgãos do Ministério Público e decisões do juiz de plantão, que inclusive dificultam o gestor na execução da licitação e na fiscalização do cumprimento de suas cláusulas.
6) Possibilidade de participação na licitação em multiplataformas - aplicativos, sistema web, sem papel ou burocracia. A participação em certame, de forma simplificada, tendo como base o cadastro único nacional, poderia ser efetivada via aplicativos online, oferta pública e credenciamento de fornecedores, agilizando, obtendo resultados favoráveis (com possibilidade de comparação de preços com licitantes de todo o país) e ganhos de eficiência.
7) Padronização para licitações de obras, veículos, concessões de serviços públicos, medicamentos, peças para veículos e manutenção desses, conservação de prédios públicos, limpeza urbana (varrição, coleta e destinação final). Essas licitações são as que mais causam dificuldades e são fontes de corrupção. Sua padronização é viável, pois existem padrões que atendem a todos os entes públicos. Por exemplo, os padrões de limpeza, são os mesmos em todos os municípios brasileiros. Esses modelos podem ser produzidos por especialistas, tornando-os de aplicação obrigatória no país, independente do ente público licitante.
8) Possibilidade de adesão a outra licitação - operada dentro do sistema nacional de licitações. Desde que o fornecedor aceite atender os requisitos e preços praticados por outro ente, é viável que se utilize os preços obtidos por um ente, em outro contrato, sempre visando a obtenção de bons preços e qualidade nos serviços.
9) Maior desconto sobre tabelas - possibilidade do vencedor de um certame ser aquele que apresentar maior desconto em tabela proposta por entidades de classe, devidamente homologada por esta autoridade nacional de licitações, também disponibilizada e totalmente interativa.
10) Execução contratual acompanhada via sistemas - por meio de estudo fotográfico, registros online diários (para obras) e controle eletrônico do produto via chip NFC (medicamentos, objetos, mobiliário). Um exemplo seria o controle na distribuição de medicamentos, que deveria seguir uma proporção equiparada a anos anteriores, com absoluto controle de entrada e saída por meio de chip, usando a tecnologia NFC. A tecnologia NFC controla a entrada de produtos num determinado local (exemplo o almoxarifado de uma unidade de saúde). No caso de medicamentos, um sistema teria os dados de dispensação de medicamentos praticados em anos anteriores. O controle de entrada evitaria fraudes na entrega de produtos aquém do contratado. E o controle de saída serviria para que o gestor tivesse como ser informado se a saídas são proporcionais aos gastos dos anos anteriores.
11) Órgão licitatório único, operando em todo o país, para Estados e municípios, inclusive. Este órgão nacional seria o responsável por executar os certames via softwares, já adotando padrões, nacionais e regionais (de acordo com o objeto), aferindo preços, centralizando a qualificação das empresas e colaborando no acompanhamento da execução do contrato.
A tecnologia pode ser a grande aliada no combate à corrupção, principalmente se estiver aliada a padrões científicos, experiências de sucesso e ampla participação popular, tendo as ferramentas via aplicativos, como aliadas da gestão pública. Espera-se que aumentem as empresas interessadas em vender para o Poder Público, com a melhoria da segurança dos contratos e o atendimento dos padrões. As empresas integrariam um cadastro nacional, onde seriam considerados o cumprimento de boas práticas de gestão, qualidade dos serviços, saúde financeira e fiscal. Ao final, teremos um ranking de boas prestadoras de serviço, que seriam qualificadas por práticas internacionais, certificações de meio ambiente e sustentabilidade e, principalmente, ampla participação popular na avalição dos serviços que ela presta.