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Hermenêutica e princípios jurídicos

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4. A RELAÇÃO CIRCULAR ENTRE REGRAS E PRINCÍPIOS

Com a finalidade de dar um passo adiante na hermenêutica baseada em princípios, Marcelo Neves constrói um modelo teórico com uma perspectiva sistêmica, inspirando-se na Teoria dos Sistemas de Luhmann. Em relação à distinção entre regras e princípios, Neves faz uma relevante colocação. Para ele, a distinção entre estas espécies normativas não constituiria uma “forma de-dois-lados” como igual/desigual, válido/inválido, etc (NEVES, 2013, p. 101). Regras e princípios seriam “conceitos típico-ideais nos termos da tradição weberiana” (NEVES, 2013, p. 101). Os tipos ideais nunca são identificados em sua forma pura na vida real. Tratase de conceitos que auxiliam na compreensão de fenômenos mais complexos observados na realidade social. Por exemplo, os tipos de dominação concebidos por Max Weber (carismática, tradicional, legal) não são identificados de forma pura em determinada liderança política. Pode ser que determinada liderança possua características mais preponderantes, mas não exclusivas de determinado tipo ideal.

Como observa o Marcelo Neves, os tipos ideais não tem por finalidade a orientação de expectativas cognitivas. Sua finalidade se encontra na estabilização de expectativas normativas e na ordenação seletiva de enunciados normativos expressos em um amplo repertório (jurisprudência, atos administrativos, leis, costumes, etc.). A partir deste raciocínio, realiza-se a seguinte distinção entre regras e princípios: Os princípios são normas no plano reflexivo, possibilitando o balizamento e a construção ou reconstrução de regras. Estas, enquanto razões imediatas para normas de decisão, são condições da aplicação dos princípios à solução dos casos. Na cadeia argumentativa, uma norma afirma-se tipicamente, como princípio ou como regra. De antemão, não se pode definir qual padrão constitui um princípio ou uma regra. Vai depender do modo mediante o qual a norma será incorporada do ponto de vista funcional-estrutural no processo argumentativo. (NEVES, 2013, p. 103).

Por se tratarem de tipos ideais, admite-se a existência de híbridos, que seriam normas que se encontram em um estado intermediário entre regras e princípios. Em seguida, o autor descreve a importância da construção progressiva dos princípios constitucionais como instrumentos importantes para resolução de controvérsias no âmbito da complexa sociedade em que vivemos para concluir que:

(...) os princípios constitucionais, enquanto normas de normas do ponto de vista da estática jurídica, passam a ser um filtro fundamental em face da pluralidade de expectativas normativas existentes no ambiente do sistema jurídico, com pretensão de abrangência moral. As regras, inclusive as constitucionais, destinadas a atuar, por fim, como razões definitivas de solução de controvérsias jurídicas, mostraram-se 9 insuscetíveis de realizar plenamente essa tarefa seletiva de maneira imediata. (NEVES, 2013, p. 118).

 Neves identifica que a relação entre regras e princípios não seria linear, mas sim circular. Neste contexto, os princípios permitiriam o fortalecimento ou enfraquecimento de regras, haja vista atuarem como fundamento de sua aplicação. As regras, por sua vez, constituem condições para a aplicação dos princípios em casos concretos. Nas palavras do autor:

Os princípios constitucionais servem ao balizamento, construção, desenvolvimento, enfraquecimento e fortalecimento de regras, assim como, eventualmente, para restrição e ampliação do seu conteúdo. Em suma, pode-se dizer, com o devido cuidado, que eles atuam como razão ou fundamento de regras, inclusive de regras constitucionais, nas controvérsias jurídicas complexas. Mas as regras são condições de aplicação dos princípios na solução de casos constitucionais. (NEVES, 2013, p. 135).

Sob uma perspectiva sistêmica, os princípios permitiriam uma estruturação da complexidade. Os princípios estruturariam a complexidade constituída pela pluralidade de valores, expectativas e pretensões morais da sociedade. Dessa forma, podemos afirmar que os princípios permitiriam a passagem de uma complexidade desestruturada para uma complexidade estruturável. As regras, que possibilitam a solução de casos concretos, ao serem aplicadas, permitiriam a passagem da complexidade estruturável para a complexidade estruturada. Neste sentido, é útil o trecho a seguir:

Mediante a invocação de princípios, inicia-se um primeiro passo seletivo na estruturação da complexidade do caso em face dos valores, pretensões morais e interesses que circulam no ambiente social do processo de concretização: busca-se um caminho de passagem da complexidade desestruturada à estruturável. Por meio da invocação de regras, dá-se um passo além: procura-se tornar estruturada a complexidade do caso. (NEVES, 2013, p. 135).

Após a exposição das três teorias de interesse, torna-se necessário realizar algumas reflexões. Apesar das críticas que possam ser dirigidos ao mau uso dos princípios por integrantes do Poder Judiciário, deve-se destacar o papel desempenhado por estas espécies normativas nos tempos em que vivemos. Deve-se admitir que a significativa importância adquirida pelos princípios, como ferramentas hermenêuticas, deriva da complexidade alcançada pela sociedade. 

Na sociedade plural em que vivemos, caracterizada pelo dissenso e pela constante colisão de direitos, exige-se um sistema jurídico mais sofisticado, capaz de responder a demandas cada vez mais complicadas.

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5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

DWORKIN, Ronald. Levando os Direitos a Sério. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

QUELHO, Rafael Tonicelli Mello. Hermenêutica e princípios jurídicos. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5583, 14 out. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/68852. Acesso em: 19 abr. 2024.

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