1. INTRODUÇÃO
A segunda metade do século XX é marcada por significativas transformações na filosofia e na teoria do direito. Destacam-se neste contexto a formação de uma filosofia do direito mais vinculada a preceitos morais, e a inserção dos princípios jurídicos como ferramentas hermenêuticas aptas a auxiliar os operadores do direito na resolução de problemas em uma sociedade cada vez mais complexa. A grande adesão a uma hermenêutica baseada em princípios pelos mais diversos sistemas jurídicos ao redor mundo tornou o seu estudo em um dos mais ativos temas de pesquisa da atualidade em direito. O presente ensaio se propõe a analisar a hermenêutica jurídica a partir do estudo de modelos principiológicos de três diferentes autores, a saber: Ronald Dworkin, Robert Alexy e Marcelo Neves.
No processo de formação desta filosofia do direito do pós-guerra, destacamos o desenvolvimento da teoria da justiça de John Rawls que influenciou significativamente a teoria de Dworkin, e o trabalho de Jürgen Habermas que exerceu expressiva influência sobre teóricos do direito de todo mundo. Habermas desenvolve uma filosofia moral com pretensão universalista. Para isso, utiliza-se das teorias ontogenéticas de Piaget (desenvolvimento cognitivo do indivíduo) e Kohlberg (desenvolvimento do julgamento moral) e constrói um modelo teórico filogenético (relacionado ao desenvolvimento da sociedade).
2. DWORKIN E O JUIZ HÉRCULES
Na década de 1960, Ronald Dworkin propõe sua teoria como uma reação à concepção de textura aberta do direito (open texture of the law) defendida por seu orientador em Oxford, Herbert Hart. Para Hart, um dos maiores expoentes do positivismo jurídico, haveria determinados casos concretos que, pela existência de lacunas normativas, seriam de difícil solução. Nestes casos (conhecidos por hard cases ou casos difíceis), o juiz teria uma margem de discricionariedade para decidir. Em outras palavras, em casos para os quais não houvesse normas explícitas para aplicação, o juiz decidiria discricionariamente conforme suas convicções. Os argumentos extrajurídicos eventualmente utilizados pelo magistrado não o vinculariam. Em contraposição a este modelo, Dworkin defende a utilização dos chamados princípios quando as regras fossem insuficientes para resolver o caso. Os princípios vinculariam o juiz que proferiu a decisão. Neste sentido, segue o trecho esclarecedor:
(...) mesmo quando nenhuma regra regula o caso, uma das partes pode, ainda assim, ter o direito de ganhar a causa. O juiz continua tendo o dever, mesmo nos casos difíceis, de descobrir quais são os direitos das partes, e não de inventar novos direitos retroativamente. Já devo adiantar, porém que essa teoria não pressupõe a existência de nenhum caso procedimento mecânico para demonstrar quais são os direitos das partes nos casos difíceis. Ao contrário, o argumento pressupõe que os juristas e juízes sensatos irão divergir frequentemente sobre os direitos jurídicos, assim como os cidadãos e homens de Estado divergem sobre os direitos políticos. (DWORKIN, 2002, p. 127 -128).
O filósofo estadunidense define três espécies normativas ou padrões de orientação aos operadores do direito:
(a) Regras: Normas aplicadas segundo o critério do “tudo-ou-nada”. Ademais, as regras poderiam ser completamente enunciadas porque seria possível listar taxativamente todas as suas exceções.
(b) Princípios: Normas que possuem uma dimensão de peso. Em caso de colisão entre princípios, o operador do direito deve aplicar aquele que é mais relevante para a resolução do caso concreto.
(c) Policies (ou políticas): Normas que veiculam direitos coletivos e prevêm o alcance de melhorias de natureza socioeconômica à comunidade. Nas palavras de Dworkin, a diferenciação entre princípios e policies:
Os argumentos de princípio são argumentos destinados a estabelecer um direito individual; os argumentos de política são argumentos destinados a estabelecer um objetivo coletivo. Os princípios são proposições que descrevem direitos; as políticas são proposições que descrevem objetivos. (DWORKIN, 2002, p. 141-142).
Os princípios jurídicos encontram suas origens no que Dwokin denomina de moralidade comunitária, definida como a moralidade pressuposta pelas leis e pelas instituições políticas de uma determinada comunidade (DWORKIN, 2002, p. 197). Em seus escritos, o jusfilósofo norte-americano recorre à figura do juiz Hércules, um modelo de juiz ideal, cuja atribuição consiste em identificar e manejar os princípios nas controvérsias que lhe são submetidas de modo a chegar a única resposta correta ou, no mínimo, ao melhor julgamento do caso concreto. Dworkin atribui ao juiz Hércules o dever de garantir a aplicação consistente dos princípios jurídicos conforme se depreende do excerto abaixo: Os indivíduos tem um direito à aplicação consistente dos princípios sobre os quais se assentam as suas instituições. É esse direito constitucional, do modo como o define a moralidade constitucional da comunidade, que Hércules deve defender contra qualquer opinião incoerente, por mais popular que seja. (DWORKIN, 2002, p. 197).
Fica claro que, na teoria de Dworkin, para que um princípio tenha dimensão jurídico-constitucional, além de se originar da moralidade comunitária, deve passar pela prova de coerência, a qual se relaciona ao esforço sobre-humano empreendido pelo juiz Hércules. Compete ao juiz Hércules defender a ordem jurídica de qualquer opinião incoerente por mais popular que possa ser. Nestes casos, Hércules “não aplica suas próprias convicções contra as da comunidade. Ao contrário julga que, nesse aspecto, a moralidade da comunidade é incoerente” (DWORKIN, 2002, p. 197). Para isso, se vale da ideia de moralidade constitucional definida como “a justificação que se deve dar à constituição, tal como interpretada por seus juízes” (DWORKIN, 2002, p. 197). A partir dessa observação, se evidencia outra característica marcante da obra de Dworkin: a defesa da atividade jurisdicional como meio de garantir os direitos de minorias. Por exemplo, uma determinada maioria, formada no âmbito da comunidade, não conseguiria impor medidas lesivas contra um determinado grupo minoritário, pois haveria a atuação contra-majoritária do Poder Judiciário o qual, verificando que tal medida não se coaduna com a ordem constitucional, decretaria sua invalidade. Em outras palavras, essas medidas lesivas, por mais populares que sejam, não passariam no teste de coerência. A seguir são elencadas e descritas algumas das críticas suscitadas à teoria dos princípios do jusfilósofo estadunidense. A teoria de Dworkin adota uma abordagem normativa bastante simplista que, como observado por Neves, esconde o problema “da complexidade e da contingência” (NEVES, 2013, p. 57). Os princípios propiciam a formação de um sistema jurídico sofisticado apto a lidar com problemas complexos, mas também aumentam as possibilidades argumentativas. Nas palavras de Neves:
No processo de concretização da Constituição, os princípios, de um lado, têm a maior capacidade de estruturar a complexidade desestruturada do ambiente do sistema jurídico, no qual uma diversidade enorme de expectativas normativas pretende afirmar-se na esfera pública corno constitucionalmente amparadas. Mas, de outro lado, eles enriquecem os potenciais e alternativas da cadeia argumentativa do 4 ponto de vista interno do direito. O direito se flexibiliza mediante princípios constitucionais para possibilitar urna maior adequação do argumentar jurídico à complexidade da sociedade. (NEVES, 2013, p. 57-58).
Os conceitos de comunidade e de moralidade comunitária, comumente utilizados em sua teoria, são problemáticos na sociedade em que vivemos. A ideia de comunidade assenta-se no compartilhamento de tradições, costumes e valores. Na sociedade moderna, caracterizada pelo dissenso e pela pluralidade, tais conceitos se mostram inadequados. Recai-se na mesma crítica empreendida por teóricos do Law and Economics como Cass Sunstein e Richard Posner: a existência de um relativismo moral. A definição de regras utilizada por Dworkin apresenta-se como incompleta. Ele defende que as regras são aplicadas da maneira do “tudo-ou-nada” e que, ao menos teoricamente, são suscetíveis de serem enunciados completamente com todas as suas exceções taxativamente enumeradas. A suposição pode ser verdadeira em relação a jogos esportivos, mas não em contextos mais sofisticados, como o ordenamento jurídico. Dworkin considera que somente os princípios possuem uma dimensão de peso. No entanto, é possível a colisão de duas regras na solução de um caso concreto. A determinação de qual regra prevalecerá revela uma dimensão de peso e traz consigo a necessidade de utilização do sopesamento sobre regras conflitantes.
3. ALEXY E A PROPORCIONALIDADE
Prosseguimos então com a análise da teoria de Robert Alexy. O jurista alemão, inspirado na teoria dos princípios de Dworkin e tomando por base a jurisprudência que estava se consolidando no Tribunal Constitucional Federal alemão na década de 1970, desenvolve sua própria teoria principiológica. Apesar de ter sido desenvolvida em um contexto específico, a teoria de Alexy ganha grande repercussão e aceitação ao redor do mundo, tanto em países da tradição civil law quanto em países da tradição do common law. Verifica-se, portanto, que a teoria dos princípios de Alexy adquire uma pretensão universalista, algo que o autor revela, em suas palestras, não ter sido seu objetivo inicial.
Primeiramente, Alexy apresenta novos conceitos para os instrumentos normativos de sua teoria. O jurista alemão contesta o conceito de regra utilizado por Dworkin como normas que seguem o critério do “tudo-ou-nada” e que podem ser completamente enunciadas, pois suas exceções podem ser taxativamente enumeradas. O jurista alemão sustenta que é impossível se determinar a priori todas as exceções para uma dada regra. A cada novo caso concreto, poderão surgir novas exceções até então desconhecidas. Dessa forma, regras e princípios são conceituados da seguinte maneira:
(a) Regras: normas que podem ser sempre satisfeitas ou sempre insatisfeitas.
(b) Princípios: normas que se traduzem em mandamentos de otimização. Os princípios ordenam que algo seja realizado em maior ou menor medida a depender dos pressupostos fáticos e jurídicos do caso concreto.
Para Alexy, os princípios podem veicular tanto direitos individuais quanto direitos coletivos. Por isso, para ele, a distinção entre princípios e policies não se mostra relevante.
Antes de prosseguirmos, faz-se útil descrever o método do sopesamento, que se subdivide em três etapas:
(a) Adequação: A medida a ser implementada deve ser apta a alcançar a finalidade pretendida.
(b) Necessidade: A medida a ser implementada deve ser a menos gravosa, dentre as que alcançam a finalidade pretendida.
(c) Proporcionalidade em sentido estrito: Preceitua que quanto mais intensa for a intervenção sobre direito fundamental, maior deverá ser a importância dos fundamentos justificadores da intervenção.
A adequação e a necessidade estariam relacionadas aos pressupostos fáticos, enquanto que a proporcionalidade em sentido estrito estaria relacionada aos pressupostos jurídicos.
Apesar de sua má utilização pelos órgãos do Judiciário brasileiro, deve-se ressaltar que o método hermenêutico proposto por Alexy não possui uma pretensão sistêmica e generalista. Ao aplicar corretamente o sopesamento, o operador do direito obtem uma norma, com estrutura de regra, a qual o caso concreto se subsume. A sentença judicial (norma de caráter individual) derivaria desta norma. Pode-se depreender isto a partir da leitura do seguinte excerto:
(...) como resultado de todo sopesamento que seja correto do ponto de vista dos direitos fundamentais pode ser formulada uma norma de direito fundamental atribuída, que tem estrutura de uma regra e à qual o caso pode ser subsumido. Isso significa admitir uma camada normativa intermediária entre os princípios que tomaram a precedência sob as condições do caso concreto e a norma de decisão (norma de julgamento). (NEVES, 2013, p. 66).
Ao longo dos anos, a teoria de Alexy é progressivamente aprimorada e os conceitos refinados. Neste contexto, é útil o seguinte raciocínio: os princípios não possuem a extensão de seu conteúdo completamente definida. Para percebermos isto, basta que observemos a aplicação de um mesmo princípio em casos concretos diversos. Por exemplo, o princípio da proteção à intimidade em colisão com o princípio da segurança nacional e o mesmo princípio em colisão com o princípio da liberdade de expressão. Embora seja possível aferirmos seu significado de modo geral e abstrato, não é possível enunciar o princípio em toda sua completude de modo a abarcar todas as suas possibilidades interpretativas. A aferição do conteúdo do princípio depende dos pressupostos fáticos e jurídicos do caso concreto. De modo diverso, em relação às regras. Verificando-se a ocorrência de determinada situação concreta descrita pela regra, deverá ser aplicado o mandamento nela transcrito, desde que não seja identificada nenhuma exceção. Assim, as regras são mais densas e possuem um conteúdo com maior grau de definição. Decorre destas observações uma conceituação mais precisa de normas e princípios. Princípios seriam razões prima facie, enquanto que regras seriam razões definitivas (NEVES, 2013, p. 67).
A seguir, são apresentadas algumas críticas dirigidas ao trabalho do jusfilósofo alemão.
O jurista Klaus Günther questiona a distinção realizada por Alexy entre regras e princípios. Para Günther, a teoria de Alexy diferencia as duas espécies normativas (regras e princípios) mais com base em sua aplicação a casos concretos do que com base em sua estrutura. Neste sentido, a depender da situação, uma determinada norma pode ser tanto aplicada como princípio quanto pode ser aplicada como regra. Uma norma é tratada como princípio quando se consideram todas as circunstâncias fáticas e jurídicas do caso concreto, e tratada como regra quando a análise empreendida é mais simples. Alexy responde a crítica afirmando que a observância dos pressupostos fáticos e jurídicos pode ser realizada na aplicação de toda e qualquer norma, e não somente em relação aos princípios (NEVES, 2013, p. 70). Na perspectiva de Alexy, Günther confunde a “aplicação da norma segundo os pressupostos fáticos e jurídicos” com o procedimento da “otimização”:
Conforme Alexy, a consideração de todas as circunstâncias também é possível na aplicação de normas que apenas podem ser satisfeitas ou não satisfeitas, enquanto a otimização pressupõe que a norma é satisfazível em graus diversos. (NEVES, 2013, p. 70).
Com relação ao problema de se determinar se uma dada norma deve ser aplicada como regra ou princípio, Alexy admite que, a depender do caso concreto, esta determinação poderá ser complexa.
Em relação às várias críticas tecidas por Jürgen Habermas, destacamos a crítica segundo a qual, na teoria de Alexy, os direitos coletivos poderiam ter prevalência sobre os direitos individuais. Para Habermas, havendo colisão entre direitos individuais e bens coletivos, os direitos individuais não poderiam sacrificados em favor de fins coletivos. Alexy responde que a primazia irrestrita dos direitos individuais sobre os bens coletivos não permitiria, por exemplo, restrições ao direito de propriedade em favor do meio ambiente, restrições a liberdade profissional em favor da defesa do consumidor, e assim por diante (NEVES, 2013, p. 73).
O Professor Marcelo Neves, por sua vez, tece críticas bastante relevantes ao modelo principiológico de Alexy. Primeiramente, ambas as definições de “regra” de Dworkin e Alexy são binárias, de modo que, do ponto de vista prático, a distinção criada por Alexy torna-se irrelevante:
(...) não há diferença em afirmar que as regras como razões definitivas aplicam-se à maneira do tudo-ou-nada e dizer que elas são necessariamente satisfeitas ou não satisfeitas. A binariedade está presente nas duas formulações. (NEVES, 2013, p. 77).
Em segundo lugar, é possível verificar que as regras possuem uma dimensão de peso. Embora a regra (formulada por Alexy como fundamento imediato de uma norma de decisão) tenha sua aplicação realizada de forma binária (satisfeita/insatisfeita), é possível que em determinados casos se verifique nesta espécie normativa uma dimensão de peso, tornando necessário o sopesamento entre regras. Para demonstrar isso, o jusfilósofo brasileiro se vale de exemplos interessantes:
(a) A regra que prevê o reajuste anual dos servidores públicos (CF/88, art. 37, X) em colisão com a regra do percentual mínimo para educação (CF/88, art. 122). Dependendo das circunstâncias fáticas (situação econômica do país, estado da educação e dos servidores públicos), uma das regras poderá ter sua aplicação afastada (NEVES, 2013, p. 78).
(b) A regra que prevê limites ao percentual gasto com pessoal na Administração Pública (LRF, art. 19) em colisão com a regra que prevê que os classificados no número de vagas em concursos públicos devam ser nomeados (interpretação do STJ do art. 37, incisos III e IV da CF/88). A depender das circunstâncias, como por exemplo, necessidade de servidores para a saúde, o Estado poderá contratar mais servidores, colocando em segundo plano o dispositivo da LRF (NEVES, 2013, p. 79).