A legalidade dos requisitos de segurança em instalações e serviços em eletricidade (NR 10 e normas técnicas correlatas)

A importancia do diálogo entre empresas e órgãos fiscalizadores

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11/09/2018 às 10:16
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ainda que se constatem expressivos avanços num passado recente em relação às políticas para a preservação de um meio ambiente do trabalho equilibrado, não é possível afirmar que tais avanços tenham produzido efeitos positivos em proporção semelhante para os indicadores de acidentes de trabalho, os quais ainda evidenciam um quadro para a segurança e saúde do trabalhador muito aquém do meramente aceitável.

Assegurar um meio ambiente do trabalho equilibrado requer condutas positivas de todos: de empregadores e do Poder Público, porque é obrigação que a eles reclama, e de trabalhadores, porque embora seja um direito que lhes assiste, é igualmente uma obrigação o fiel cumprimento das determinações patronais que visem a promoção da saúde e segurança no ambiente laboral.

A proteção ao meio ambiente do trabalho equilibrado guarda relação direta com a proteção à vida digna, além de também fomentar o desenvolvimento social e o econômico (este último como decorrência da redução dos gastos com os infortúnios dos acidentes e doenças do trabalho), promovendo ainda o crescimento da atividade econômica guindada pelo trabalho salubre (não restam dúvidas de que trabalhadores com qualidade de vida produzem mais e melhor).

É certo, contudo, que a persecução de um ambiente de trabalho equilibrado não pode ser feita tomando o princípio da valorização do trabalho humano de forma absoluta, olvidando-se dos pressupostos da livre iniciativa e da autonomia privada, todos eles de matiz constitucional; tais elementos devem ser ponderados de forma conjunta e sistemática, buscando harmonizá-los através de avaliação que definirá, no caso concreto, os pressupostos que deverão preponderar. Trata-se de manter o equilíbrio sempre delicado entre esses pressupostos constitucionais, de modo que

[...] ainda que o fim maior da empresa continue sendo a obtenção do lucro, suas ações passam a ser norteadas por uma função social que se deve harmonizar com os demais princípios regentes da ordem econômica, norteando, assim, a atividade empresarial segundo os preceitos da dignidade da pessoa humana e da valorização do trabalho humano (MOTA, 2013, f. 142).

O trabalho desempenha papel preponderante no processo de geração de lucro para a atividade empresarial, e, na qualidade de direito fundamental, é um dos pilares da ordem econômica, ao lado do princípio da livre iniciativa, na expressa dicção do art. 170 da CR/88. Por sua vez, o objetivo hegemônico da ordem econômica é o desenvolvimento socioeconômico, o qual deve ser um instrumento para levar à dignidade da pessoa humana (MOTA, 2013, f. 11).

Nesse diapasão a empresa no Estado Democrático de Direito inaugurado no Brasil a partir da Constituição de 1988 deve ser o resultado de “[...] um exercício legítimo da livre iniciativa cujas ações produzem reflexos diretos e indiretos perante todo o ambiente com que se relaciona, de forma mais direta com o trabalho, com o mercado de consumo, com a tecnologia e com a natureza” (MOTA, 2013, f. 11-12).

Assim, em contraposição com o modelo de empresa anterior que imperava de modo absoluto, a atividade empresarial pós-Constituição de 1988 “[...] passou a ser submetida a uma análise crítica, conclamando-se a observância de um dever de praticar suas ações em consonância com sua função socioambiental” (MOTA, 2013, f. 12).

Nesse sentido, é precisa a síntese de Mota (2013, f. 12) ao afirmar que

[...] a empresa detentora de poder sobre os bens de produção mostra-se, também, como atividade dotada de um dever para com a coletividade, uma vez que o seu funcionamento, por si só, não se sustenta como argumento plausível o bastante que venha demonstrar o cumprimento de sua função social.

O elo entre a atividade empresarial e o desenvolvimento econômico fortaleceu-se de tal forma que não se pode pensar mais em sua dissociabilidade. No entanto, ao se interpretar a função social da empresa como um princípio que está inserido na Constituição da República de 1988 verifica-se sua relação direta com os demais princípios que direcionam a ordem econômica. Com efeito, suas ações devem [sic] também passam a ter o dever de assegurar a promoção da dignidade da pessoa humana com vistas à prática da justiça social.

Com base no que vai acima exposto, no cumprimento de sua função social a empresa possui diversos poderes-deveres a orientar sua conduta no âmbito das relações de trabalho; a geração e manutenção de postos de trabalho constitui-se um dos principais desses poderes-deveres, uma vez que é pela oferta de oportunidades de trabalho que é possível ao trabalhador “[...] garantir o sustento próprio e o de sua família, proporcionando-lhe uma melhor condição perante o meio social e um desenvolvimento econômico no âmbito de sua participação” (MOTA, 2013, f. 70-71).

Outro importante poder-dever da empresa no exercício de sua função social consiste no pagamento de salário justo ao trabalhador; com efeito, o estrito pagamento de piso salarial mínimo com o objetivo de minimizar a massa salarial e maximizar os lucros da empresa é estratégia que restringe  “[...] o poder de crescimento socioeconômico do empregado [...] precarizando por vias indiretas o valor social do trabalho” (MOTA, 2013, f. 75). O pagamento de salário justo é, portanto “[...] condição imprescindível para a valorização do trabalho humano, promoção de sua dignidade e redução das desigualdades sociais” (MOTA, 2013, f. 75).

Destaca-se ainda um outro poder-dever relevante da empresa no cumprimento de sua função social, o qual guarda uma relação direta com o tema central deste estudo; refere-se ao poder-dever da empresa em fazer “[...] investimentos na melhoria de seu processo produtivo, com vistas à redução dos riscos inerentes ao trabalho, e, por conseguinte, objetivando preservar a saúde e segurança do trabalhador, conforme disposto no artigo 7º, inciso XXII, da CF/88” (MOTA, 2013, f. 76). É precisamente isso que devem fazer aquelas empresas instaladas antes do advento da NR 10, para adequar suas instalações elétricas às determinações dessa NR.

Em todo caso, a empresa estará sempre obrigada a “[...] eliminar ou reduzir os efeitos maléficos ocasionados à vida e a saúde do trabalhador”, atentando para o que dispõe o art. 157 da CLT, o qual estabelece “[...] os deveres que a empresa possui no que concerne à preservação da saúde e segurança de seus empregados” (MOTA, 2013, f. 77).

Conforme já exaustivamente reiterado ao longo deste trabalho, o livre exercício da atividade econômica é um direito assegurado constitucionalmente e um dos fundamentos da ordem econômica. A fruição desse direito deve observar a função social da empresa, cuja extensão e conteúdo são ditados pela base principiológica elencada pelo art. 170 da CR/88; decorre daí que a atividade econômica deve ser exercida respeitando-se os preceitos da livre concorrência, da defesa do consumidor, da defesa do meio ambiente, contribuindo para a redução das desigualdades regionais e sociais e para a busca do pleno emprego (MOTA, 2013, f. 142).

Usando novamente as palavras de Mota (2013, f. 77-78) para concluir a abordagem,

[...] não se coaduna com a função social da empresa a produção de riqueza de um lado e, de outro, o alijamento da saúde e segurança do trabalhador, ferindo diretamente a dignidade da pessoa humana e o valor social do trabalho como princípios da República, de suas ordens econômica e social.

Portanto, [...] a empresa estará cumprindo com sua função social no âmbito das relações de trabalho quando exercitar o seu poder-dever com vistas à geração e manutenção de empregos, primando pela saúde e segurança do trabalhador, contribuindo para a redução da desigualdade social, cujo corolário é a valorização do trabalho humano.

O tom repetitivo destes parágrafos finais é proposital; busca-se aqui sedimentar o liame que deve existir entre a necessidade de proteção ao meio ambiente do trabalho equilibrado (um dos afluentes que desagua na valorização do trabalho humano) e a necessidade de se criarem as condições para a sobrevivência e perpetuação da atividade empresarial (e que deflui do princípio da livre iniciativa). Uma não deve sobrepujar a outra, devendo as mesmas coexistirem harmonicamente, uma vez que parte da essência de cada uma reside na observância e respeito à outra, numa dinâmica que se assemelha (mantidas as devidas proporções) ao sistema de freios e contrapesos concebido por Montesquieu em sua Teoria da Divisão de Poderes; aqui, nas relações estabelecidas no ambiente de trabalho entre empresa e empregado, os efeitos de um tal sistema são os decorrentes da função social da empresa, como “[...] princípio que busca o desejável equilíbrio entre os pilares da livre iniciativa e da valorização do trabalho humano” (MOTA, 2013, f. 143).

Assim é que, não pode o empresário/empregador, na busca por maior desempenho e lucratividade de sua atividade, descuidar da saúde e segurança dos trabalhadores que lhe proporcionam tais ganhos, relegando a um segundo plano a preocupação em assegurar um meio ambiente do trabalho equilibrado, e, em decorrência, a persecução de uma vida digna para seus empregados. Quando procede dessa forma, esquece-se o empregador de que o lucro e produtividade de seu negócio dependem fundamentalmente da saúde, da segurança, da higidez, numa palavra, do bem estar de seus colaboradores. Deve haver por parte do empresário o comprometimento sincero e o tratamento prioritário para com as iniciativas e investimentos que se destinem a assegurar a qualidade de vida do trabalhador no ambiente de trabalho.

Na outra via, os instrumentos utilizados para assegurar um meio ambiente do trabalho equilibrado (sejam eles por intermédio do Poder Público, na forma de leis, normas e regulamentos etc, ou decorrentes de conquistas da classe trabalhadora em acordos e/ou convenções coletivas) devem trazer em si a preocupação com a capacidade e viabilidade da empresa para implementar as ações por eles definidas; prazos irreais, parâmetros ou índices operacionais inatingíveis, medidas de implantação extremamente complexa e/ou que alterem radicalmente o processo produtivo da empresa, soluções com tecnologias ainda não consolidadas e/ou de eficácia duvidosa etc, podem impactar a estabilidade lato sensu da empresa, comprometendo a sua capacidade e continuidade operacional.

Deve haver bom senso na formulação daqueles instrumentos; em outra volta, devem eles ser concebidos à luz dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, evitando-se rigores desnecessários e exigências descabidas que deponham contra a sua efetividade, transformando-os em letra morta, que acabam se prestando apenas para aplicação de sanções às empresas e que em nada contribuem para o atingimento do objetivo maior, o de valorizar o trabalho humano propiciando aos trabalhadores uma vida digna através da proteção do meio ambiente de trabalho equilibrado.

A adoção de instrumentos que contemplem determinações fora do razoável ou desproporcionais coloca em risco a sobrevivência/perpetuação da empresa, e, em última análise, acaba por contribuir para o fechamento de postos de trabalho o que se constitui em “[...] porta aberta para a marginalização do homem, para a precarização das condições sociais e para a retração do desenvolvimento econômico” (MOTA, 2013, f. 71). Em outras palavras, depõe contra a busca do pleno emprego do inciso VIII do mutireferenciado art. 170 da CR/88, representando verdadeira afronta à valorização do trabalho humano, e afastando o trabalhador do ideal de uma vida digna.

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Dentre os instrumentos disponíveis para tutela do meio ambiente do trabalho, merecem destaque as Normas Regulamentadoras (NRs), uma vez que, instituídas a partir da Portaria nº 3.214/78, constituem o maior e mais abrangente conjunto de normas sobre segurança e saúde do trabalhador do ordenamento jurídico brasileiro. Dentre elas, a NR 10, que tem como tema a “Segurança em instalações e serviços em eletricidade”, merece atenção especial quando direcionada para instalações industriais implantadas antes do advento dessa NR. Adequar tais instalações aos requisitos da NR 10 não é tarefa simples; em muitos casos, além de envolver investimentos vultosos as ações necessárias para essa adequação demandam prazos que dificilmente se coadunariam com os exíguos prazos determinados pela NR, e podem ainda se revestir de tamanha complexidade a ponto de fazer com que a tarefa de adequação se revele uma missão extremamente penosa e, em alguns casos, inviável tecnicamente.

Assim sendo, vislumbra-se como imperativo que órgãos fiscalizadores e empresas se aproximem na busca de soluções que garantam a efetividade da NR 10 para casos de instalações anteriores à Norma como descritos acima. O diálogo entre fiscalização e empresários, entabulado à luz das égides da razoabilidade e da proporcionalidade, deve levar à concepção de instrumento que, por um lado, assegure a proteção do meio ambiente do trabalho equilibrado, e, por outro, não comprometa o equilíbrio da atividade empresarial, permitindo a sua continuidade e perpetuação.

Vislumbra-se também ser o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) esse instrumento que mais eficazmente se revela capaz de conciliar a valorização do trabalho humano com o princípio da livre iniciativa, provendo agilidade e efetividade à NR 10 na medida em que busca viabilizar o atendimento aos requisitos dessa Norma de forma consensual, com base na união de vontades do empresário e do fiscal público, que decorre do diálogo e do mútuo entendimento dessas partes (CAMBI; LIMA, 2011, p.138).

O TAC é uma ferramenta que permite implementar as determinações da NR 10 através de procedimento extrajudicial, com maior eficácia preventiva, sem custo para o Estado, com maior celeridade que o correspondente processo judicial, e propiciando maiores proveitos do que aqueles que podem ser alcançados por uma sentença prolatada em um tal processo (CAMBI; LIMA, 2011, p.133-137).

Para finalizar, reiterando novamente o papel da função social da empresa como o fiel na balança que busca harmonizar e manter o equilíbrio entre a livre iniciativa e a valorização do trabalho humano como pilares da ordem econômica (MOTA, 2013, f. 143), comunga-se do mesmo entendimento desse autor que, com muita propriedade e lucidez, afirma que

A consagração do trabalho como direito fundamental no Estado Democrático de Direito evidencia o seu papel na promoção da dignidade da pessoa humana e na construção de uma sociedade desenvolvida e mais justa, corroborando sua razão de encontrar-se inserido entre os direitos e garantias fundamentais.

Entretanto, em que pese seu prestígio constitucional, a constante luta da classe trabalhadora por melhores condições de trabalho tem evidenciado a relação conflituosa entre o capital e o trabalho, o que enseja a uma maior reflexão sobre o papel da empresa nas relações de trabalho, provocando uma investigação sobre a efetividade da função social da empresa através de ações que resultem na valorização do trabalho humano (MOTA, 2013, f. 13).

É mister encaminhar essa investigação da função social da empresa indicada pelo citado autor, como condição que permitirá corrigir rumos e trilhar o longo caminho que leva a uma sociedade mais fraterna, mais igual, mais justa. Afinal, conforme as sabias palavras de Cora Coralina no início deste trabalho, “Antes acreditar que duvidar, o que vale na vida não é o ponto de partida e sim a nossa caminhada”.

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Sobre o autor
José Manuel de Abreu Paulo

Advogado, Bacharel em Direito (2010) pela FDV (Faculdade de Direito de Vitória), e Engenheiro Eletricista (1983) pela UFES (Universidade Federal do Espírito Santo).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

Mais informações

Adequar instalações industriais antigas, implantadas antes do advento da NR 10 não é tarefa simples, que além de invariavelmente envolver investimentos vultosos, demandam prazos que dificilmente se coadunariam com os exíguos prazos determinados a partir da data de publicação da NR 10. Essa situação suscita dúvidas por parte do empresariado que, leigo nas questões jurídicas envolvidas, questiona a efetiva obrigatoriedade de atendimento à NR 10.

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