INTRODUÇÃO
Notório é que, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988, o dano moral foi formalmente reconhecido no ordenamento jurídico brasileiro, sendo consagrado no artigo 5º, incisos V e X da Carta Magna. Tal reconhecimento explícito, aliado ao princípio do livre acesso à justiça, fez com que houvesse um grande aumento no número de ações judiciais visando à reparação de danos de dada natureza.
Apesar de existir entendimento do STJ a respeito do assunto, firmado por intermédio do Recurso Especial sob o nº. 1.258.389 (REsp. 1.258.389 – PB), de que as Pessoas Jurídicas de Direito Público não são titulares de ação de indenização por danos morais, o presente estudo buscará demonstrar que tais entes estatais são titulares de direitos da personalidade, com enfoque na honra subjetiva, contrariando assim tal entendimento.
Corriqueiras são as notícias sobre políticos e funcionários corruptos no país, sendo necessária uma ampliação nos meios de sancionar, ou seja, o ordenamento jurídico brasileiro deve passar a entender e coadunar com a ideia de indenização por danos morais aos entes públicos. As atuais reparações materiais e políticas atualmente previstas pelo ordenamento jurídico brasileiro demonstram-se insuficientes, contribuindo mais para a desmoralização e banalização do setor público.
Cumpre mencionar, brevemente, que fazem parte do rol de Pessoas Jurídicas de Direito Público a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal. Todos estes entes citados, integrantes da Administração Pública Direta, quando estão em juízo podem ser denominados de Fazenda Pública. Ademais, têm-se os entes da Administração Pública Indireta, que também fazem parte do rol das Pessoas Jurídicas de Direito Público, quais sejam: as Autarquias e as Fundações Públicas de Direito Público.
Diante disto, o presente estudo terá como foco responder de forma clara e objetiva o seguinte questionamento: É possível afirmar que em face das Pessoas Jurídicas de Direito Público, quais seja União, Estados, Municípios, Distrito Federal, Autarquias e Fundações Públicas, é cabível o Ressarcimento por Danos Morais?
Em verdade, não se pode consentir que a corrupção, injustiça social e a impunidade se tornem parte da cultura brasileira e isto é o que será buscado e que se pretende com o resultado do estudo. E, de forma a não se tornar uma simples argumentação acerca do tema, adotará na presente pesquisa uma vasta análise bibliográfica, documental, bem como interpretações legais e jurisprudenciais. Posto isto, como norte, serão utilizados materiais como: livros, revistas, jornais, bem como sites que tratam de forma lúcida a temática a ser abordada. Não obstante, far-se-á de extrema utilidade no presente projeto o estudo do direito comparado, de forma a analisar como outros países abordam, de forma diversa, a temática.
Indubitável que o tema se mostra de grande relevância no momento atual, tendo em vista os inúmeros casos de corrupção que assolam o país, atingindo, assim, a todos os três poderes do Estado: Executivo, Legislativo e Judiciário.
Ocorre que, apesar de serem corriqueiros os debates acerca do alcance da reparação pelo dano moral, seja pela completude ou abrangência do tema, na maioria das vezes, a discussão do assunto pauta-se nas pessoas físicas, esquecendo-se que tanto as pessoas naturais quanto as pessoas jurídicas podem ser titulares de indenização por danos morais.
1 DAS PESSOAS JURÍDICAS
Em virtude da limitação e individualidade dos seres humanos, nem sempre seus anseios e necessidades podem ser supridos sem que haja a intervenção de outras pessoas. Não obstante o ser humano, pessoa física, seja dotado de capacidade jurídica, a realização de grandes empreendimentos requer a conjugação de esforços. Desta forma, o direito procurou disciplinar tais unidades coletivas, dotando-as de personalidade jurídica próprias, tal como as pessoas naturais.
Nos ensinamentos de Carlos Roberto Gonçalves (2012, pg X) as pessoas jurídicas são provenientes de um fenômeno histórico e cultural, consistindo num conjunto de pessoas ou de bens, dotados de personalidade jurídica própria e constituídos na forma da lei, para a consecução de fins comuns. Assevera-se, portanto, que a lei confere personalidade a tais entidades, capacitando-as a serem sujeitos de direitos e obrigações.
Nesse mesmo sentido, importante destacar o conceito de pessoa jurídica apontado por Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, como “o grupo humano, criado na forma da lei, e dotado de personalidade jurídica própria, para a realização de fins comuns” (2003, v. I, p. 191).
Embora ainda existam teorias que insistem em negar a existência da pessoa jurídica, denominadas teorias negativistas, defendidas por Brinz, Planiol e Duguit, em contrapartida, existem teorias afirmativistas que almejam esclarecer e justificar a existência e a capacidade de direito das pessoas jurídicas, podendo ser divididas em dois grupos: o das teorias da ficção e os das teorias da realidade.
Para a teoria da ficção jurídica, desenvolvida por Savigny, nos dizeres de Carlos Roberto Gonçalves (2012, pg X): “a pessoa jurídica constitui uma criação artificial da lei, um ente fictício, pois somente a pessoa natural pode ser sujeito da relação jurídica e titular de direitos subjetivos. Desse modo, só entendida como uma ficção pode essa capacidade jurídica ser estendida às pessoas jurídicas, para fins patrimoniais”. Note-se que o fundamento da teoria é dotado de alto grau de abstração, tornando a pessoa jurídica uma criação intelectual.
Já a teoria da realidade, seguindo a linha de pensamento do renomado escritor citado acima, considera a pessoa jurídica uma realidade viva e não mera abstração, ou seja, a pessoa jurídica é considerada um “organismo social vivo”. Cumpre mencionar que através desta teoria surgem novas concepções, como exemplo: a teoria da realidade objetiva ou orgânica, teoria da realidade jurídica ou institucionalista e teoria da realidade técnica.
Merece destaque a teoria da realidade técnica, devendo ser analisada conjuntamente com o artigo 45 do Código Civil Brasileiro de 2002, transcrito abaixo, in verbis:
Começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, precedida, quando necessário, de autorização ou aprovação do Poder executivo, averbando-se no registro todas as alterações por que passar o ato constitutivo.
A teoria da realidade técnica vem sendo considerada pela doutrina majoritária como a teoria vigente no ordenamento jurídico brasileiro, haja vista que afirma de forma equilibrada que a personificação é atribuída a grupos em que a lei reconhece vontades e objetivos próprios.
Com base nisto, conclui Carlos Roberto Gonçalves (2012, pg X) que a teoria da realidade técnica é a que melhor elucida o fenômeno pelo qual um grupo de pessoas, com objetivos comuns, pode ter personalidade própria, que não se confunde com a de cada um de seus membros e, portanto, a que melhor segurança oferece.
1.1 A Pessoa Jurídica e seus direitos
Na lição de Alexandre Rodrigues de Albuquerque (2007, p. 60), no momento em que foi concedida a personalidade às pessoas jurídicas, foi também concedido a elas capacidade jurídica para contrair obrigações e para exercer direitos que não fossem incompatíveis com a sua natureza.
Não obstante os direitos fundamentais terem, no início, as pessoas físicas como destinatárias finais de sua proteção, com o passar do tempo, a proteção se ampliou e estendeu de forma significativa as pessoas jurídicas, conforme demonstra o trecho abaixo de Gilmar Mendes, Inocêncio Mártires Coelho e Paulo Gustavo Gonet Branco (Ob. cit. pg. 271), in verbis:
Não há, em princípio, impedimento insuperável a que pessoas jurídicas venham, também, a ser consideradas titulares de direitos fundamentais, não obstante estes, originalmente, terem por referência a pessoa física. Acha-se superada a doutrina de que os direitos fundamentais se dirigem apenas às pessoas humanas. Os direitos fundamentais suscetíveis, por sua natureza, de serem exercidos por pessoas jurídicas podem tê-las por titular. (…) Garantias, porém, que dizem respeito à prisão (e.g., art. 5.º, LXI) têm as pessoas físicas como destinatárias exclusivas.
Por óbvio, conforme exposto acima, as pessoas jurídicas não são titulares de todo e qualquer direito fundamental, tendo em vista que deve haver uma relação de adequação à realidade destas. Desta forma, sempre que existir uma relação/vínculo entre o direito pleiteado e a atividade desempenhada pela pessoa jurídica caberá a proteção.
Continuando na linha de abrangência dos direitos fundamentais a pessoa jurídica, importante destacar o trecho da obra de Roberto Senise Lisboa (2003, pág. 251):
[...] às pessoas jurídicas podem ser atribuídas apenas os direitos psíquicos e morais, e não os físicos, partindo da sua classificação de direitos da personalidade em: a) direitos físicos: integridade física, corpo e partes separadas, cadáver e partes separadas, imagem, voz e alimentos:
b) direitos psíquicos: integridade psíquica, liberdade, intimidade, sigilo, convivência social; c) direitos morais: identidade, honra, educação, emprego, habitação, criações intelectuais.
Ademais, cumpre destacar que embora o Código Civil traga no seu Título I a denominação “Das Pessoas Naturais”, nada impede a sua aplicação às Pessoas Jurídicas, haja vista a abstração e amplitude dos conceitos lá expostos, que coadunam, inclusive, com o artigo 52 do mesmo diploma, que afirma ser aplicável as pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade.
1.2 Considerações acerca da Pessoa Jurídica de Direito Público e Pessoa Jurídica de Direito Privado
Segundo Maria Helena Diniz (2012, pg. 266) as pessoas jurídicas podem ser classificadas quanto à nacionalidade, quanto à estrutura interna e quanto às funções e capacidades.
Para a presente pesquisa, convém focar na classificação das pessoas jurídicas quanto às funções e capacidades, ou como alguns autores denominam “órbita de atuação”, onde ocorre a divisão das pessoas jurídicas em pessoa jurídica de direito público e pessoa jurídica de direito privado.
Esta primeira é considerada como sendo um conjunto de pessoas ou bens que visa atender a interesses públicos, sejam internos ou externos. De acordo com o art. 41 do CC/2002 são pessoas jurídicas de direito público interno a União, os Estados, o Distrito Federal, os Territórios, os Municípios, as autarquias e as demais entidades de caráter público criadas pela lei(TARTUCE, 2012, pg. X).
Ressalte-se que as pessoas jurídicas de direito público externo são os Estados da comunidade internacional, ou seja, o conjunto de pessoas regidas pelo direito internacional público, como por exemplo, as diversas nações e organismos internacionais como a ONU, OEA, FAO, UNESCO, etc. Nesta esteira dispõe o artigo 42 do Código Civil de 2002, in verbis:
São pessoas jurídicas de direito publico externo os Estados estrangeiros e todas as pessoas que forem regidas pelo direito internacional público.
Já as pessoas jurídicas de direito público interno se classificam em: administração direta e indireta. A primeira engloba a União, Estados, Distrito Federal, Territórios e Municípios e a segunda as autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista. A administração indireta consiste em um conjunto de pessoas administrativas que, vinculadas à respectiva administração direta, têm o objetivo de desempenhar as atividades administrativas de forma descentralizada (CARVALHO FILHO, 2014, pg. 479). Importante se ter em mente que tais entes se vinculam às pessoas da federação (administração direta), não ficando soltas no universo administrativo.
Em contrapartida, a pessoa jurídica de direito privado é instituída pela vontade de particulares, buscando o atendimento de interesses intrinsecamente privados. Encontra previsão no artigo 44 do Código Civil de 2002, atentando-se ainda pelas novas redações dadas pela Lei 10.825/2003 e pela Lei 12.441/2011, sendo dividida em: fundações, associações, sociedades simples ou empresarias, partidos políticos, entidades religiosas e empresas individuais de sociedade limitada.
2 RESPONSABILIDADE
Nas palavras do grande escritor e professor San Tiago Dantas o principal objetivo da ordem jurídica é proteger o lícito e reprimir o ilícito. Vale dizer: ao mesmo tempo em que ela se empenha em tutelar a atividade do homem que se comporta de acordo com o ordenamento jurídico, reprime a conduta daquele que o contraria (Programa de Direito Civil, v.I, pg. 341).
O ilícito surge quando há uma violação do dever jurídico, que, na maioria das vezes, acarreta dano para outrem, gerando um novo dever jurídico, qual seja o de reparar o dano. E é neste ponto que entra a noção ampla de responsabilidade civil.
A palavra “responsabilidade” tem sua origem no verbo latino respondere, significando a obrigação que alguém tem de assumir com as conseqüências jurídicas de sua atividade, contendo, ainda a raiz latina de spondeo, fórmula através da qual se vincula no Direito Romano, o devedor nos contratos verbais.
Para Pablo Stolze (2012, pg. 47): “Responsabilidade, para o Direito, nada mais é, portanto, que uma obrigação derivada — um dever jurídico sucessivo — de assumir as consequências jurídicas de um fato, consequências essas que podem variar (reparação dos danos e/ou punição pessoal do agente lesionante) de acordo com os interesses lesados”.
Na mesma linha de raciocínio, nos ensina Carlos Roberto Gonçalves (2012, pg. X) que a responsabilidade exprime a idéia de restauração de equilíbrio, contraprestação, reparação do dano, onde o responsável pelo dano poderá ser compelido a restaurar o statu quo ante, tendo em vista sua conduta danosa.
Notadamente o conceito de Responsabilidade, no campo jurídico, não se restringe tão somente a um diploma normativo, de forma que se aplica a todos os outros campos do Direito, como por exemplo, ao Direito Administrativo, Direito Penal e inclusive, Direito Tributário.
Importante mencionar que não há que se falar em bis in idem no tocante a aplicação da responsabilidade, haja vista que um mesmo fato pode ocasionar duas responsabilizações, pois a acepção e repercussões da violação do bem jurídico tutelado serão distintas.
Nas palavras de Carlos Roberto Gonçalves (2012, pg. X): “Quando ocorre uma colisão de veículos, por exemplo, o fato pode acarretar a responsabilidade civil do culpado, que será obrigado a pagar as despesas com o conserto do outro veículo e todos os danos causados. Mas poderá acarretar, também, a sua responsabilidade penal, se causou ferimentos em alguém e se se configurou o crime do art. 129, § 6º, ou o do art. 121, § 3º, do Código Penal. Isto significa que uma ação, ou uma omissão, pode acarretar a responsabilidade civil do agente, ou apenas a responsabilidade penal, ou ambas as responsabilidades”.
Contudo, independentemente da esfera de incidência da responsabilização, em ambos os casos a responsabilidade, a priori, surge de um fato juridicamente tido como ilícito, ou seja, fato este que ofende a ordem jurídica.
2.1 Responsabilidade Civil: Dano Moral
Estabelece o artigo 186 do Código Civil de 2002 que:
Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência ou imprudência, violar direito e causar dano a outrem, ainda que exclusivamente moral, comete ato ilícito.
Desta forma, extraem-se quatro elementos indispensáveis para a configuração da responsabilidade civil, quais sejam: ação ou omissão voluntária, culpa ou dolo do agente, relação de causalidade (nexo causal) e o dano sofrido pela vítima.
Com ênfase no quarto elemento citado acima, nos ensina Agostinho Alvim (Da inexecução das Obrigações e suas Consequências, pg. 171-172), que a expressão “dano, em sentido amplo, vem a ser a lesão de qualquer bem jurídico, e aí se inclui o dano moral. Mas, em sentido estrito, dano é, para nós, a lesão do patrimônio; e patrimônio é o conjunto das relações jurídicas de uma pessoa, apreciáveis em dinheiro. Aprecia-se o dano tendo em vista a diminuição sofrida no patrimônio. Logo, a matéria do dano prende-se à da indenização, de modo que só interessa o estudo do dano indenizável.”
Frisa-se que se faz necessário que o dano seja certo, fugindo da esfera hipotética, pois caso contrário, a não configuração concreta do dano acarretará a perda do objeto da pretensão a reparação, conforme decidiu o Tribunal de Justiça de São Paulo: (5)
Somente danos diretos e efetivos, por efeito imediato do ato culposo, encontram no Código Civil suporte de ressarcimento. Se dano não houver, falta matéria para a indenização. Incerto e eventual é o dano quando resultaria de hipotético agravamento da lesão.
No tocante a divisão dos danos, estes podem ser divididos em: danos patrimoniais (danos materiais) e danos extrapatrimoniais (danos morais), sendo este último uma lesão ao próprio ser humano, não afetando em nada o seu patrimônio.
Exemplifica o doutrinador Carlos Alberto Bittar (BITTAR, 2ª edição, pg. 31) que há dano moral na ruptura injusta e alardeada de noivado; no defloramento de moça honesta; no ceifamento da vida de pessoa amada, dentre inúmeros outros; há dano material no não pagamento de prestação em dinheiro; no abalroamento de veículo estacionado; na não prestação de serviço pago e assim por diante.
De maneira a sintetizar o estudo, iremos nos ater ao dano moral, onde a vítima é abalada moralmente, atingindo bens jurídicos atrelados a sua personalidade, tais como: a honra, dignidade, intimidade, imagem, nome. (arts. 1º, III e 5º V e X da Constituição Federal de 88). Nesta linha de idéias, quando estes elementos constitutivos da personalidade são lesados, surge a pretensão da devida reparação de tais componentes, impondo-se assim, o império da justiça.
Segundo indica Sérgio Cavalieri somente poderá ser considerado efetivamente um dano moral condutas que interfiram intensamente no comportamento psicológico da vítima, ou seja, situações que rompam o equilíbrio psicológico do sujeito. Diferenciando-se de meros aborrecimentos e situações dentro da normalidade do cotidiano.
Destaque que certas situações fazem parte do cotidiano ou inclusive, se mostram extremamente necessárias a realização de atividades, como por exemplo: a espera razoável na fila de atendimento bancário, o uso de detector de metais, exame de bagagens e mercadorias na alfândega, etc.
Atualmente o dano moral tem um alcance surpreendentemente amplo, contribuindo inclusive, para a sua banalização. São conferidos aos magistrados amplos poderes para a definição e aplicação da extensão do dano, de forma que as leis atuais evitam fixar parâmetros e preceitos para a extensão e quantificação do dano moral, de forma que o magistrado tenha um livre arbítrio sobre o parecer da matéria.
A principal forma de reparação, comumente utilizada, é a fixação de um valor pecuniário indenizatório que irá servir de desestímulo para a repetição do ato ilícito, forma esta que não exclui a existência de outras, como exemplo, a prestação de serviços comunitários.
2.2 Honra Objetiva e Honra Subjetiva: Existe uma distinção clara?
Conforme fora mencionado acima, para a configuração do dano moral faz-se necessário a presença dos seguintes elementos: o ato, o dano, o nexo de causalidade entre o ato e o dano e o dolo ou culpa do agente causador.
No entanto, muitas vezes, para que se possa a falar a respeito da existência do dano moral, é imprescindível analisar com maior cuidado um dos grandes fundamentos de sua existência que é a honra.
Nos ensinamentos de Carlos Alberto Bittar (BITTAR, 2003, p. 8) a honra se constitui no elemento imprescindível à composição da personalidade. Da mesma forma, Nelson Rosenvald e Cristiano Farias (FARIAS; ROSENVALD, 2008, pg. 149) definem a honra como sendo “a soma dos conceitos positivos que cada pessoa goza na vida em sociedade
A honra encontra-se amparada no artigo 5º, inciso X da Constituição Federal de 1988, bem como no artigo 11 do Pacto de São José da Costa Rica transcritos abaixo.
Art. 5º CF/88: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação;
Art. 11º Proteção da honra e da dignidade
Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade.
No entanto, após a leitura dos enunciados normativos, é possível classificar a honra em dois sentidos: honra objetiva e honra subjetiva, de forma que ambas as vertentes irão incidir na reparação pelos danos morais causados.
Importante destacar os ensinamentos de Maria Helena Diniz (1998, pg. 738):
Honra. Bem jurídico que apresenta dois aspectos: a) um subjetivo, o qual designa o sentimento da própria dignidade moral, nascido da consciência de nossas virtudes ou de nosso valor moral, isto é, a honra em sentido estrito; b) um objetivo, representado pela estimação que outrem faz de nossas qualidades morais e de nosso valor social, indicando a boa reputação moral e profissional que pode ser afetada pela injúria, calúnia ou difamação.
Nas lições de Carlos Alberto Bittar (2008, pg. 133) a honra subjetiva é o sentimento pessoal de estima ou a consciência da própria dignidade, enquanto a honra objetiva compreende o bom nome e a fama de que desfruta no seio da coletividade, enfim, a estima que a cerca nos seus ambientes familiar, comercial e outros.
Desta forma, a honra subjetiva irá atingir o intrínseco do ser humano, ao contrário da honra objetiva, que se manifestará externamente. A honra objetiva nada mais é do que a idéia que a sociedade possui acerca do individuo, ou seja, os valores de dignidade, enquanto a honra subjetiva é a própria consciência da dignidade, causando abalos na própria alma humana, como dor, insônia, tristeza, angústia e sofrimento.
No entanto, conforme mencionado anteriormente no Capítulo 1.1, por mais que os direitos da personalidade sejam estendidos as pessoas jurídicas, aqueles danos que são causados exclusivamente pela vertente subjetiva não são experimentados por esta, sendo este o assunto do próximo tópico.
2.3 A Configuração do Dano Moral frente às Pessoas Jurídicas de Direito Privado
Inicialmente, importante mencionar que o ordenamento jurídico brasileiro e a jurisprudência atual reconhecem a reparação moral destinada às pessoas jurídicas, conforme Súmula 227 do Superior Tribunal de Justiça.
No entanto, por mais que grande parte da doutrina considere como possível a aplicação do dano moral, o tema está longe de ser pacífico e irrefutável, tendo em vista o enunciado 286 da IV Jornada de Direito Civil, que dispõe que: “os direitos da personalidade são direitos inerentes e essenciais à pessoa humana, decorrentes de sua dignidade, não sendo as pessoas jurídicas titulares de tais direitos.”
Segundo assevera Sergio Cavalieri (2008, pg. 96) a reparabilidade do dano moral causado à pessoa jurídica ainda apresenta alguma perplexidade e sofre forte resistência de parte da doutrina e jurisprudência apegadas à noção de que a honra é bem personalíssimo, exclusivo do ser humano, não sendo possível reconhecê-la na pessoa jurídica, bem como ainda persiste a idéia de que o dano moral é sinônimo de dor, sofrimento, tristeza e angústia.
A oposição, corrente minoritária, defendida por Pablo Malheiros da Cunha Frota (2008, pg. 244) sustentaque a equiparação das pessoas jurídicas para fins de danos morais não materiais comprometeria a efetividade do princípio da dignidade da pessoa humana previsto na Constituição Federal de 1988, o que acarretaria a redução e o descompromisso do discurso do direito com os valores e princípios constitucionais, a ceder às tentações neoliberais de “flexibilidade e desregulamentação”.
Ainda nesta linha de raciocínio, segundo Arruda Alvim (2004. p. 284-285), as pessoas jurídicas não possuem essência comum como os homens. São criações humanas, profundamente diferentes entre si e desprovidas de traços comuns, sendo inviável, portanto, essa padronização ínsita à idéia do dano moral.
Por outro lado, tem-se a doutrina amplamente majoritária se posicionando favorável a existência do dano moral frente às pessoas jurídicas e sua reparabilidade, repercutindo neste ponto a questão da honra objetiva e subjetiva tratada no tópico anterior.
Nos dizeres de Sergio Cavalieri Filho (2012, p. 109), autor este que admite a concessão de danos morais à pessoa jurídica, a Carta Magna de 1988 funciona como um instrumento de ampliação da incidência do dano moral, de forma que este abrangerá qualquer ataque ao nome ou imagem da pessoa física ou jurídica:
Ademais, após a Constituição de 1988 a noção de dano moral não mais se restringe à dor, sofrimento, tristeza etc., como se depreende do seu art. 5º, X, ao estender a sua abrangência a qualquer ataque ao nome ou imagem da pessoa física ou jurídica, com vistas a resguardar a sua credibilidade e respeitabilidade. Pode, então, dizer que, em sua concepção atual, honra é o conjunto de predicados ou condições de uma pessoa, física ou jurídica, que lhe conferem consideração e credibilidade social; é o valor moral e social da pessoa que a lei protege ameaçando de sanção penal e civil a quem a ofende por palavras ou atos. Fala-se, modernamente, em honra profissional como uma variante de honra objetiva, entendida como valor social da pessoa perante o meio onde exerce sua atividade.
Importante destacar que o reconhecimento pacífico deste direito apenas ocorreu com a edição do enunciado da Súmula 227 do Superior Tribunal de Justiça, que dispõe ser possível a concessão de danos morais em face da pessoa jurídica, sendo posteriormente, incluído no Código Civil o artigo 52, in verbis:
Aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade.
Para os Autores que se manifestam favoráveis a incidência do dano moral, é plenamente possível a pessoa jurídica ser passiva de dano moral, bem como compensá-los pelos meios legais cabíveis, ainda que esta não seja detentora de honra subjetiva e sim de honra objetiva.
Para Maurício Gonçalves Pereira (2010, pg. 2983) as pessoas jurídicas são passíveis de sofrer lesão do direito à honra somente no tocante a sua honra objetiva, como por exemplo,quando a reputação for atingida por algum ato ilícito, não sendo possível a reparação pela honra subjetiva, caracterizada pela dignidade e pelo decoro, uma vez que esta continua sendo tutelada e resguardada unicamente e exclusivamente para o indivíduo.
Nesse mesmo sentido, nas palavras de Flávio Tartuce (2010, p.188):
Não são somente as pessoas naturais – expressão mais adequada do que pessoas físicas – possuem direitos da personalidade. A pessoa jurídica possui bens patrimoniais corpóreos e incorpóreos, além de bens extrapatrimoniais. E são justamente esses bens extrapatrimoniais os direitos da personalidade da pessoa jurídica. Essa visão baseia-se no fato de que, para a ciência do direito, a noção de pessoa é, sobretudo, uma noção jurídica e não filosófica ou biológica. Ademais, o art. 52 do CC dispõe que “aplica-se às pessoas jurídicas, no que couber, a proteção dos direitos da personalidade”, confirmando o entendimento consubstanciado na Súmula 227 do Superior Tribunal de Justiça pelo qual a pessoa jurídica pode sofrer dano moral. Por razões óbvias, esse dano moral somente pode atingir a honra objetiva da pessoa jurídica, a sua reputação. Não há que se falar em lesão à honra subjetiva, pois a pessoa jurídica não tem sentimentos. Apesar do entendimento sumulado de que a pessoa jurídica pode sofrer dano moral, Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barboza e Maria Celina Bodin de Moraes entendem ser melhor utilizar a expressão danos institucionais, ”conceituados como aqueles que, diferentemente dos danos patrimoniais ou morais, atingem a pessoa jurídica em sua credibilidade ou reputação” (Código Civil interpretado, 2004, v. I, p. 135). Por isso é que na IV Jornada de Direito Civil foi aprovado o Enunciado n. 268 quanto ao art. 52 do CC, prevendo que “Os direitos da personalidade são direitos inerentes e essenciais à pessoa humana, decorrentes da sua dignidade, não sendo as pessoas jurídicas titulares de tais direitos”. O enunciado aprovado acaba contrariando o entendimento sumulado do Superior Tribunal de Justiça, pelo qual, expressamente, a pessoa jurídica pode sofrer dano moral. O teor da Súmula e não do enunciado do Conselho da Justiça Federal, é que deve ser considerado como majoritário pela comunidade jurídica internacional.
Como forma de exemplificar, podemos citar o caso concreto que envolveu a CEDAE, Companhia Estadual de Águas e Esgotos e a Empresa JS Quality Safety LTDA, sendo a Companhia condenada ao pagamento de indenização a título de danos morais a Empresa JS, tendo em vista o corte de água, sem aviso prévio, realizado em conseqüência da inadimplência.
O julgador entendeu como devido o corte de energia dada à inadimplência, porém tendo em vista a ausência da comunicação prévia o corte do serviço se tornou ilegítimo.
O dano moral restou configurado a partir do momento em que a Empresa teve sua imagem prejudicada perante os fornecedores e clientes. Vejamos a ementa:
PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. ART. 535 DO CPC. ALEGAÇÕES GENÉRICAS. SÚMULA 284/STF. FORNECIMENTO DE ÁGUA. INADIMPLÊNCIA. SUSPENSÃO SEM PRÉVIO AVISO. IMPOSSIBILIDADE. DANOS MORAIS. PESSOA JURÍDICA. POSSIBILIDADE. SÚMULA 227/STJ. ANÁLISE DE MATÉRIA PROBATÓRIA. SÚMULA 7/STJ. 1. Não se conhece da violação ao art. 535 do CPC, pois as alegações que fundamentaram a pretensa ofensa são genéricas, sem discriminação dos pontos efetivamente omissos, contraditórios ou obscuros. Incide, no caso, a Súmula 284/STF, por analogia. 2. A jurisprudência desta Corte é pacífica no sentido de ser devido o corte no fornecimento de água, após prévio aviso, ante a inadimplência de conta atual do usuário. Entretanto, na espécie, não houve o prévio aviso, segundo consignado no acórdão recorrido, motivo pelo qual o corte se deu de forma ilegal. Registre-se que para averiguar a existência de prévia comunicação feita pela concessionária, há necessidade de revolvimento de matéria probatória, o que é vedado nesta seara recursal, ante o óbice da Súmula 7/STJ. 3. Segundo entendimento desta Corte, a pessoa jurídica pode sofrer dano moral, nos termos da Súmula 227/STJ, desde que haja ofensa à sua honra objetiva. In casu, o Tribunal de origem concluiu, com base nas provas dos autos, que houve ofensa à honra objetiva da recorrida, uma vez que a credibilidade da empresa ficou "arranhada" diante de seus parceiros comerciais. Assim, para alterar tal entendimento, necessário o revolvimento do suporte fático-probatório dos autos, providência essa vedada em razão do disposto na Súmula 7/STJ. 4. Agravo regimental não provido.(STJ - AgRg no AREsp: 412822 RJ 2013/0349326-0, Relator: Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, Data de Julgamento: 19/11/2013, T2 - SEGUNDA TURMA, Data de Publicação: DJe 25/11/2013).
Vejamos outro julgado que admite a configuração de danos morais no caso de ofensas à honra objetiva:
INDENIZAÇÃO - DANOS MORAIS - CDC - PESSOA JURÍDICA - INSCRIÇÃO NEGATIVA - ÔNUS DA PROVA - VALOR - HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. Embora esteja prevista a possibilidade de uma pessoa jurídica figurar em determinada relação como consumidora, conforme prevê o art. 2º do CDC, é necessário que ela seja destinatária final do produto ou serviço adquirido, que não o tenha adquirido para o desenvolvimento de sua atividade negocial. Para a configuração dos danos morais é necessário que se verifique a presença simultânea de três elementos essenciais, quais sejam: a ocorrência induvidosa do dano; a culpa, o dolo ou má-fé do ofensor; e o nexo causal entre a conduta ofensiva e o prejuízo da vítima. O dano moral referente à pessoa jurídica é o prejuízo decorrente da prática de atos que, indevidamente, ofendem sua honra objetiva, causando-lhe prejuízos que, por vezes, são patrimonialmente imensuráveis, já que denigrem o bom nome e a imagem construída ao longo de anos de atividade. Os índices de correção monetária devem incidir a partir da data da sentença. Os honorários advocatícios devem ser fixados em percentual sobre o valor da condenação. (TJ-RS - AC: 70050829100 RS, Relator: Túlio de Oliveira Martins, Data de Julgamento: 29/11/2012, Décima Câmara Cível, Data de Publicação: Diário da Justiça do dia 24/01/2013).
Nos dizeres de Pablo Stolze e Pamplona Filho (2004, pg. 80) a legislação buscou proteger o patrimônio imaterial das pessoas jurídicas. Apesar de ser evidente que uma pessoa jurídica jamais terá uma vida provada, é certo que ela pode e deve zelar pelo seu nome e imagem diante do seu público-alvo, sob pena de perder largos espaços na acirrada concorrência do mercado.
De fato, considerar que a pessoa jurídica não pode ser passível de indenização por danos morais, deixando de punir o agente causador, é um equívoco tão grave quanto aquele que se cometia ao tempo em que não se admitia a reparação por dano moral nem mesmo a pessoa física, o que estimula a irresponsabilidade e a impunidade (CAVALIERI, 2008, p. 98).
A proteção dos direitos da personalidade da pessoa jurídica se mostra necessária para conseguir atingir suas metas e objetivos, pois caso contrário teria um fenômeno de instabilidade no decorrer de suas atividades. Sendo assim, é imprescindível ser a pessoa jurídica titular de direitos da personalidade para que possa cumprir com a sua finalidade social.