Capa da publicação O processo inquisitorial da Idade Média: mero maniqueísmo ou visão distorcida?
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O processo inquisitorial da Idade Média:

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5 CONCLUSÃO

Esse artigo torna evidentes os conceitos desenvolvidos por Hespanha em “Cultura Jurídica Européia - Síntese de um milênio”[31], acerca da utilização da história do Direito como problematizadora de pressupostos implícitos e acríticos das disciplinas dogmáticas. Especialmente em se tratando de um período histórico de fontes tão pouco trabalhadas e ainda rodeado por enorme estigma social, como o da atuação do Santo Ofício Inquisitorial, é nítida a necessidade de uma abordagem crítica no sentido de repensar a história - ao caminho de melhor buscar conhecê-la.

Descartamos, assim, as perspectivas legitimadoras do Direito, insuficientes e demasiado anacrônicas, especialmente no estudo de caso do moleiro de Friuli. Nessa categoria encontram-se, infelizmente, ainda, grande parte dos grandes estudiosos da inquisição disponíveis, que caem constantemente em falácias teóricas do senso comum - apontadas no início deste estudo. Especialmente a vertente a qual denominamos de “pessimista”, em relação aos efeitos e conquistas do sistema penal inquisitorial, demonstram tratamento progressista das estruturas e procedimentos de então, numa tentativa de legitimar - pelo contraste - o “apogeu” jurídico no qual estaríamos hoje inseridos.

Por outro lado, a posição “otimista” de Henry Kelly, aqui muito destrinchada, por outros rumos, acaba por pecar na mesma medida. Ao dispensar as torturas, perseguições e abusos dos inquisidores como meros desvirtuamentos práticos do que seria um modelo teórico tão sofisticado que baseou todo o sistema criminal ocidental, o autor também pratica a legitimação - agora pela continuação e pela exaltação científica do Direito.

Dessa forma, a abordagem crítica que se intentou fazer reconhece - diferentemente das posições supracitadas - o artificialismo presente no trato histórico, algo também eximiamente realizado por Ginzburg. Tendo-se em mente as máximas de Marrou[32] e Prost[33] - a história é o passado na medida em que o podemos conhecer e, a escrita da história nunca estará encerrada, respectivamente -, buscou-se realizar uma reconstrução (ou uma história da história), das circunstâncias processuais nas quais realmente estava inserida a Veneza do século XVI.

Ultrapassaram-se, então, os limites do caso de “O Queijo e os Vermes” - sem, no entanto, nos desvincularmos em total - para, com as fontes disponíveis, traçar um novo panorama do processo inquisitorial, a dualidade inerente das perspectivas dos estudiosos em relação a ele; suas estruturas e efeitos. Assim, com base nos “erros” e “acertos” dos autores citados, procuramos estabelecer um caminho “moderado” - mas nunca neutro - em relação ao tema, por meio da elucidação e crítica das possibilidades doutrinárias existentes.


Notas

[1] KELLY, Henry Ansgar. Inquisition and the Prosecution of Heresy: Misconceptions and Abuses. In: Church History, 58, 1989, pp 439-451.

[2] BLACK, Christopher F. The Italian Inquisition. London and New Haven, CT: Yale University Press, 2009.

[3] KRAMER, Heinrich e SPRENGER, Jacobus. Malleus Malleficarum: Manual da Caça às Bruxas. Ed.Três, São Paulo, 1976.

[4] KELLY, 1989, p. 451.

[5] HESPANHA, Antonio Manuel. Cultura jurídica européia; síntese de um milênio. Florianópolis: Boiteux, 2005. pp. 15-34.

[6] GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. Companhia das Letras, São Paulo, 2006.

[7] À factualidade de que os processos registrados por escrivães podiam facilmente ser manipulados frente à imposições clericais ou políticas (a depender da época), pouco podemos fazer a respeito.

[8] https://inquisition.library.nd.edu/collections/RBSC-INQ:COLLECTION (A University of Notre Dame, localizada nos EUA, possui um registro online de Rare Books and Special Collections, onde podem ser encontrados documentos e referências à outros bancos de dados que se fizeram úteis na confecção do presente artigo).

[9] VOSE, Robin. “Introduction to inquisition trial transcripts and records.” Hesburgh Libraries of Notre Dame, Department of Rare Books and Special Collections. University of Notre Dame, 2010.

[10] BLACK, 2009, p. 152.

[11] KELLY, 1989, p. 446.

[12] HOVE, Father Brian Van, S.J. Beyond the Myth of The Inquisition: Ours Is The Golden Age. Faith and Reason. Winter, 1992.

[13] KELLY, loc. cit.

[14] KELLY, loc. cit.

[15] HOVE, 1992.

[16] MARROU, Henri-Irenée. Sobre o conhecimento histórico. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978, pp. 45-59.

[17] FOUCAULT, 2002, p. 73.

[18] VOSE, Robin. “Introduction to inquisitorial manuals.” Hesburgh Libraries of Notre Dame, Department of Rare Books and Special Collections. University of Notre Dame, 2010.

[19] À época e lugar de Menocchio – Friuli, Vêneto do Século XVI (segunda metade, principalmente).

[20] VOSE, Robin. “Introduction to Inquisition and autos de fe records.” Hesburgh Libraries of Notre Dame, Department of Rare Books and Special Collections. University of Notre Dame, 2010.

[21] Sobre este aspecto, é imperativa a observância da existência do livro Malleus Maleficarum, produzido pelos inquisidores católicos Heinrich Kraemer e James Sprenger. Embora o livro nunca tenha sido reconhecido pela Igreja, sendo inserido, inclusive, no Index Librorum Prohibitorum, e seus autores excomungados, a obra continuou possuindo influência nos tribunais, acabando por extrapolar a esfera católica e influindo na Inquisição Protestante norte-americana.

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[22] Cf. https://www.britannica.com/topic/Spanish-Inquisition

[23] VOSE, Robin. loc. cit.

[24] Aliás, o próprio esforço empregado pelos inquisidores em bem fundamentar sua sentença, dispondo-se a escutar na íntegra as afirmações do moleiro, pode reforçar o ponto inicial desenvolvido sobre o conflito do poder secular e do poder eclesiástico. Fazendo-se obrigatório esse comportamento diante da necessidade de legitimar a sentença emitida.

[25] Não é, em nenhuma medida, nossa preocupação desmerecer o trabalho teórico de Kelly, mas apenas problematizá-lo. É mister observar, até mesmo, a sua importância, na configuração do panorama teórico da História, visto que destaca e elucida a importância do período medieval para além – e contra – das correntes vigentes, motivadas pela metáfora do “período das Trevas” e predominantes no ideário popular e até mesmo de alguns pesquisadores, clarificando sua real relevância.

[26] GINZBURG, 2006, p. 46.

[27] É exemplar o caso do mercador Nicholas Burton, assim como dos períodos que o Santo Ofício espanhol dedicava-se aos judeus e muçulmanos (Inquisição Medieval).

[28] KELLY, 1989, pp 439-451. (Henry desenvolve que a presença dos advogados era bastante efetiva, nos processos inquisitoriais).

[29] GINZBURG, 2006, p. 148.

[30] GINZBURG, 2006, p. 139.

[31] HESPANHA, Antonio Manuel. Cultura jurídica européia; síntese de um milênio. Florianópolis: Boiteux, 2005. pp. 15-34.

[32] MARROU, Henri-Irenée. Sobre o conhecimento histórico. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978, pp. 45-59.

[33] PROST, Antoine. Doze lições sobre a história. Belo Horizonte: Autêntica, 2008, pp. 75-93.

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Sobre os autores
Gustavo Henrique A. P. de Oliveira

Graduando em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de Brasília.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

MIRANDA, Mariana Alvares ; OLIVEIRA, Gustavo Henrique A. P.. O processo inquisitorial da Idade Média:: transpondo uma perspectiva dualista. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5636, 6 dez. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69004. Acesso em: 29 mar. 2024.

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