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Notas sobre o sistema jurídico do Reino Unido

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V – Minhas impressões sobre o sistema jurídico britânico

Conhecer o sistema jurídico do Reino Unido (Inglaterra e Escócia) foi uma experiência fascinante para juízes brasileiros. Visitamos universidades e tribunais, desde a Suprema Corte do Reino Unido até as Sheriff Courts. Assistimos a inúmeras palestras e participamos de várias atividades práticas.

Os britânicos possuem sólido e milenar sistema jurídico. Legaram ao mundo civilizado a Magna Carta de 1215, que submeteu o rei à lei, rechaçou prisões arbitrárias e assegurou aos cidadãos acesso à Justiça, a fim de obter um julgamento justo. No ano passado, comemoramos os 800 anos desse primoroso patrimônio da humanidade.

Mais tarde, os direitos fundamentais da pessoa humana foram reafirmados e ampliados, na Grã-Bretanha, pela Revolução Gloriosa (1688), sem derramamento de sangue. Editou-se o Bill of Rights (Declaração de Direitos), documento que influenciou decisivamente a independência das 13 colônias inglesas na América (Estados Unidos).

Para além da clássica dicotomia civil law (direito predominante legislado) e common law (direito predominante jurisprudencial, oriundo de precedentes), não se pode olvidar o filósofo inglês John Locke (1632-1704). Foi um ícone do liberalismo político e inspirou filósofos iluministas franceses, como Voltaire e Montesquieu. A Revolução Francesa, portanto, tem raízes na Inglaterra.

Os britânicos se orgulham da monarquia constitucional e da supremacia do Parlamento.

Vangloriam-se também do seu sistema jurídico. Consideram-no um dos pilares da expansão política e econômica do Império Britânico, ao propiciar segurança jurídica e previsibilidade.

Prestigiam historicamente o princípio the rule of law (a regra do Direito ou o império da lei). Todos se submetem à lei, inclusive o monarca.

Pari passu, todos têm direito de acesso à Justiça e ao devido processo legal (due process of law).

Os britânicos não adotam Constituição escrita, mas seguem esses princípios fundamentais milenares, agora reforçados pela Convenção Europeia de Direitos Humanos (1950). Muitos doutrinadores apontam a interpenetração contemporânea entre os sistemas civil law e common law.

Os juízes britânicos – recrutados entre advogados mais experientes - são imparciais e incorruptíveis. Valorizam os precedentes dos tribunais, adotados em julgamentos anteriores (jurisprudência). Não inovam aleatoriamente as decisões, para respeitar a autoridade desses precedentes e preservar a segurança jurídica.

Enfim, sintetizou Lord Faulks, Ministro da Justiça da Inglaterra: os países têm de zelar pelo cumprimento das leis e pela atuação independente do Poder Judiciário.


VI – Tradições filosóficas e políticas inglesas

O filósofo inglês John Locke (1632-1704) desenvolveu o contratualismo em bases liberais, opondo-se ao absolutismo de Thomas Hobbes:

“Foi Locke o vanguardeiro do liberalismo da Inglaterra. Em sua obra Ensaio sobre o governo civil (1690), em que faz a justificação doutrinária da revolução inglesa de 1688, desenvolve os seguintes princípios: o homem não delegou ao Estado senão os poderes de regulamentação das relações externas na vida social, pois reservou para si uma parte de direitos que são indelegáveis. As liberdades fundamentais, o direito à vida, como todos os direitos inerentes à personalidade humana, são anteriores e superiores ao Estado.

“Locke encara o governo como troca de serviços: os súditos obedecem e são protegidos: a autoridade dirige e promove justiça; o contrato é utilitário e sua moral é o bem comum.

“No tocante à propriedade privada, afirma Locke que ela tem sua base no direito natural: o Estado não cria a propriedade, mas a reconhece e protege.

“Pregou Locke a liberdade religiosa, sem dependência do Estado, embora tivesse recusado tolerância para com os ateus e combatido os católicos porque estes não toleravam as outras religiões.

“Locke foi ainda o precursor da teoria dos três poderes fundamentais, desenvolvida posteriormente por Montesquieu.

“Dentre as obras de John Locke, destacam-se, pela sua importância e larga influencia no pensamento filosófico moderno, Cartas de Tolerância, Ensaios sobre o entendimento humano, A racionabilidade do Cristianismo, Tratado sobre o governo e Algumas reflexões sobre a educação(MALUF, 2008:77).

Os homens viveriam em perpétuo estado de guerra se não houvessem delegado seus poderes a um governo capaz de salvaguardar sua liberdade e igualdade primitivas:

“Este cambio de estado – henos aquí en el corazón de la doctrina de Locke – no pudo operarse sino por consentimiento. Sólo este consentimiento pudo fundar el cuerpo político:

‘Siendo los hombres naturalmente libres, iguales e independientes, ninguno puede ser sacado de este estado y ser sometido al poder político de otro sin su propio consentimiento, por el cual puede él convenir con otros hombres juntarse y unirse en sociedade para su conservación, para su seguridade mutua, para la tranquilidade de su vida, para gozar pacíficamente de lo que les pertenece en propriedad y para estar más al abrigo de los insultos de quienes pretendiese perjudicales y hacerles daño’” (CHEVALLIER, 1955:85; negritos no original).

Montesquieu, no clássico “Do Espírito das Leis” (1985:148-149), celebrizou a chamada “teoria da separação de poderes”:

“A democracia e a aristocracia, por sua natureza, não são Estados livres. Encontra-se a liberdade política unicamente nos governos moderados. Porém, ela nem sempre existe nos governos moderados: só existe nestes últimos quando não se abusa do poder; mas a experiência eterna mostra que todo homem que tem poder é tentado a abusar dele; vai até onde encontra limites. Quem o diria! A própria virtude tem necessidade de limites.

“Para que não se possa abusar do poder é preciso que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder. Uma constituição pode ser de tal modo, que ninguém será constrangido a fazer coisas que a lei não obriga e a não fazer as que a lei permite. (...)

“Há, em cada Estado, três espécies de poderes: o poder legislativo, poder executivo das coisas que dependem do direito das gentes, e executivo das coisas que dependem do direito civil. (...)

“Quando na mesma pessoa ou no mesmo corpo da magistratura o poder legislativo está reunido ao poder executivo, não existe liberdade, pois pode-se temer que o mesmo monarca ou o mesmo senado apenas estabeleçam leis tirânicas para executá-las tiranicamente.

“Não haverá também liberdade se o poder de julgar não estiver separado do poder legislativo e do executivo. Se estivesse ligado ao poder legislativo, o poder sobre a vida e a liberdade dos cidadão seria arbitrário, pois o juiz seria legislador. Se estivesse ligado ao poder executivo, o juiz passaria a ter a força de um opressor.

“Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes: o de fazer leis, o de executar as resoluções públicas e o de julgar os crimes ou as divergências dos indivíduos”.

No entanto, antes do célebre pensador francês, John Locke já avançara no esboçar a separação de poderes:

“Locke, menos afamado que Montesquieu, é quase tão moderno quanto este, no tocante à separação de poderes. Assinala o pensador inglês a distinção entre os três poderes – executivo, legislativo e judiciário – e reporta-se também a um quarto poder: a prerrogativa. Ao fazê-lo, seu pensamento é mais autenticamente vinculado à Constituição inglesa do que o do autor de Do Espírito das Leis(BONAVIDES, 1983:148).

Perseguido em sua pátria, o filósofo francês Voltaire exilou-se na Inglaterra e expressou grande admiração pelo país vizinho:

“Os pensadores ingleses posteriores à Revolução Gloriosa criam as condições para o iluminismo francês. Ninguém o disse com mais clareza do que Voltaire nas suas Cartas sobre os Ingleses (em Lettres Philosophiques, de 1734).

“Como acontecera em Atenas, o florescimento da ciência e da filosofia em Inglaterra é uma consequência direta da introdução da democracia. ‘A Constituição inglesa’, diz Voltaire, ‘atingiu um grau de perfeição tal que, em consequência dela, os seres humanos gozam do todos os direitos naturais de que se encontram espoliados em quase todas as monarquias’” (SCHWANITZ, 2013:152-153).

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A Magna Carta foi concedida pelo rei João Sem Terra, em junho de 1215, aos homens livres da Inglaterra. É o grande marco civilizatório na história da democracia britânica.

A “Carta das Liberdades” foi outorgada aos membros dissidentes do baronato em Runnymede, às margens do Rio Tâmisa.

Tornou-se símbolo da Europa e documento fundador do mundo ocidental.

No seu tempo histórico, desencadeou o processo que resultou no padrão do governo constitucional, hoje considerado regra da vida política civilizada.

Foi escrito em latim jurídico, idioma formal usado pelos redatores medievais. Entre outras matérias, regulou os mal-afamados privilégios e obrigações; ordenou a abolição das barragens para peixes no Rio Tâmisa; especificou o pagamento de taxas para o serviço militar; estabeleceu medidas padrão para o vinho e a cerveja etc.

Finalmente, numa disposição que verdadeiramente marcou época e atravessou os séculos, afirmou o princípio revolucionário de que o governo é exercido conforme a lei e se responsabiliza perante os governados (HINDLEY, 2015:prefácio).

Historiador de formação marxista, A. L. Morton (1970:70) ressalva:

“Conquanto sua mais famosa cláusula estipulasse que ‘Nenhum homem livre será detido ou encarcerado ou esbulhado ou exilado ou de qualquer forma destruído, nem o perseguiremos ou mandaremos persegui-lo, a não ser pelo julgamento legal dos seus pares e segundo a lei do país’, a expressão ‘homem livre’ (a Magna Carta) excluía de qualquer possível benefício a grande maioria do povo que ainda se achava na condição de servo da gleba. Mais tarde, com o declínio dessa condição, a cláusula adquiriu novo significado e importância”.

Quatro séculos depois, a Revolução Gloriosa de 1688 destituiu o rei católico Jaime II, da dinastia Stuart. Assumiu o trono da Inglaterra, Escócia e País de Gales sua filha, a protestante Maria.

As principais consequências da revolução foram o fim do absolutismo monárquico britânico, aumento do poder do parlamento, estabilidade política e econômica e surgimento das condições necessárias para que, mais tarde, ocorresse a Revolução Industrial.

A Revolução Gloriosa foi uma reforma pragmática e sem derramamento de sangue, em contraste com outras convulsões dos países europeus, contemporâneas ou futuras. No entanto, estava limpa de sangue somente porque Jaime II capitulou.

Na verdade, a Guerra Civil e a Restauração não haviam conseguido livrar a Inglaterra da autocracia religiosa e tampouco fortalecer o consentimento parlamentar.

O rei preferiu fugir a lutar, embora considerável parcela da opinião pública o considerasse soberano legítimo da Inglaterra (JENKINS, 2012:160-161).

Surge o Bill of Rights:

“A nova estrutura foi explicitada em 1689 com o Bill of Rights. Nele, entre outras coisas, declarava-se ilegal (‘illegal’) qualquer ordem do rei que suspendesse, sem autorização do parlamento, a aplicação de uma lei; qualquer imposição estável de tributos não votada pelo parlamento; a manutenção de um exército em tempo de paz sem a autorização do parlamento. Além disso, estabelecia-se o principio da eleição livre dos membros do parlamento, sua liberdade incondicional de palavra, a necessidade de convocações regulares das sessões parlamentares” (SCHIOPPA, 2014:271).

Enfim, a monarquia britânica é modelar. Segundo a definição clássica de Max Weber, constitui óbvio exemplo de “autoridade tradicional”. A sobrevivência da monarquia no Reino Unido, ainda que de forma constitucional, ajuda a moldar a cultura política e vivifica valores como deferência, respeito e dever (HEYWOOD, 2013:81-82).

Os britânicos, conforme Sir Ivor Jennings (1981:9-10), não necessitam de Constituição escrita para manter o regime tradicional de liberdades:

“A Constituição britânica não estipula nenhum obstáculo a um governo conservador que verdadeiramente pretenda ser ‘autoritário’, porque um governo que teve maioria em ambas as Casas poderia fazer o que lhe aprouvesse através de seu controle da total autoridade do Parlamento. É possível que a rainha possa intervir, e exercer algum de seus poderes legais inativos. Sujeito a isto, sempre corremos um risco, por não termos Constituição escrita limitando o poder do Parlamento. Mesmo uma Constituição escrita, porém, não é mais que leve obstáculo – como muitos detratores têm mostrado -, e a base de nosso sistema democrático reside não tanto nas leis como na intenção do povo britânico de resistir, de todos os meios possíveis, aos ataques às liberdades que conseguiram”.

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Sobre o autor
Rogério Medeiros Garcia de Lima

Desembargador da 14ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, Doutor em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais, professor da Escola Judicial "Desembargador Edésio Fernandes"-TJMG e de cursos de gradução e pós-graduação em Direito, autor dos livros O Direito Administrativo e o Poder Judiciário. Belo Horizonte: Del Rey, 1ª ed., 2002, e 2ª ed., 2005; Aplicação do Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003; e Refletindo o Direito e a Justiça. Belo Horizonte: Tribunal de Justiça de Minas Gerais, 2010, bem como de diversos artigos jurídicos

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Rogério Medeiros Garcia. Notas sobre o sistema jurídico do Reino Unido. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5754, 3 abr. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69499. Acesso em: 21 nov. 2024.

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