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Redução da maioridade penal: o discurso punitivo contra adolescentes em conflito com a lei

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22/12/2018 às 15:10
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Confronta-se a participação concreta dos adolescentes na criminalidade com os discursos punitivistas e o desejo social em favor da redução da maioridade penal.

RESUMO: Neste artigo discutiremos sobre o tema da redução da maioridade penal. Para realizar o estudo tomaremos os dados empíricos sobre a participação de adolescentes em práticas criminais no Brasil. O objetivo é confrontar a participação concreta dos adolescentes com os discursos punitivos e o desejo social apoiados por políticos em favor da redução da maioridade. Observa-se que há uma forte discrepância entre os discursos que apontam o potencial criminal dos adolescentes e os reais indicadores de violência. Por fim, será analisada a relação entre a redução da maioridade penal e a seletividade do sistema penal. 

Palavras-chave: Redução da maioridade penal, adolescente, discursos punitivos, seletividade do sistema penal.


INTRODUÇÃO

Neste estudo, analisaremos o percentual de participação dos jovens e adolescentes em indicadores criminais, confrontando-os aos principais argumentos que tentam justificar a diminuição da idade penal. Assim, cabe questionar se as propostas efetivamente se baseiam numa realidade vivenciada pela população brasileira ou se elas apenas refletem maior anseio por controle e punição. Ao longo do texto, notaremos que a realidade evidenciada pelos dados não condiz com os discursos que defendem a RMP e o aumento de punições para adolescentes que praticaram atos infracionais.

No que se refere aos dados empíricos sobre a participação de adolescentes em práticas criminais, foram coletados do Mapa da Violência (Waiselfisz, 2015), Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2013 e 2014 (Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2013 e 2014) e do IHA - Índice de Homicídio de Adolescentes (Mello, Cano, 2011, 2012 e 2014). Esses dados analisados juntamente aos estudos do fenômeno da cultura do controle (Garland 2008), o processo de sujeição criminal (Misse, 2010) e a seletividade do sistema penal (Baratta, 2004) contribuirão para o melhor discernimento da realidade vivenciada por adolescentes no Brasil.

Diante do atual cenário, observamos a ampliação dos discursos repressivos no Brasil, que enfatizam o sentimento de impunidade e associam a ocorrência de crimes à população mais jovem. Reproduzem-se nos meios de comunicação e em falas institucionais a ideia de que a legislação penal brasileira é inócua e deve passar por mudanças que reforcem aspectos sancionatórios. Geralmente, são argumentos que relativizam a eficiência de políticas de reinserção social e defendem a intensificação de medidas restritamente punitivas. Por isso, a necessidade de pesquisas que confrontam esses discursos punitivos.


1 A CRIMINALIZAÇÃO DA JUVENTUDE: UM DESEJO SOCIAL

Os vários projetos que propoem a Redução da Maioridade Penal possuem alguns pontos em comum: a) afirmam que os crimes cometidos pelos adolescentes ficam impunes; b) que os adolescentes são aliciados pela criminalidade organizada; c) que a Redução da Maioridade Penal é um desejo social; d) a taxa de reincidência é alta e que, e) implementada a Redução da Maioridade Penal, a sociedade será mais segura. Tratam-se de linhas argumentativas que formam o discurso punitivo disseminado atualmente no Brasil. (Torres, 2007)

Em tese, podemos destacar nesse processo pelo menos dois fenômenos sociais tratados teoricamente. Primeiro, esses pontos comuns sinalizam uma mudança de percepção na sociedade brasileira que se enquadra no que Garland (2008) chamou de cultura do controle. Segundo, as ideias norteadoras desses projetos de lei elegem os mais jovens como responsáveis principais pela criminalidade, num mecanismo de assujeitamento social, que Misse (2010) conceitua como sujeição criminal.

Quanto a cultura do controle (Garland, 2008), nota-se uma mudança social na maneira como a sociedade brasileira passou a conceber as formas de tratamento que devem ser dadas a crianças e adolescentes. As evidências expostas nos projetos de lei são expressões de uma mudança na sensibilidade, em que os mais jovens deixaram de ser vistos como sujeitos de direito, que devem ter asseguradas amplas garantias legais.

Em relação à sujeição criminal (Misse, 2008), entendemos que o conjunto de propostas de Redução da Maioridade Penal sugerem a aplicação de dispositivos que legitimariam o assujeitamento dos adolescentes, especificamente aqueles que são negros, pertencentes às classes sociais de baixa renda e residentes nas periferias das grandes cidades. Isso porque a atuação dos agentes policiais, promotores e juízes se baliza num pré-julgamento a partir de características sociais dos indivíduos acusados, em detrimento da jurisprudência que deve considerar fatos processuais em observância ao regimento legal. Essas propostas ampliam poderes judiciais sem contrapartida para garantias fundamentais, o que agravaria o quadro de sujeição criminal vivenciado por jovens negros e pobres do Brasil.

O dispositivo que define a maioridade penal está estabelecido no artigo 228 da Constituição Brasileira. Até o ano de 2012 as propostas se concentravam na propositura de simples alteração da redação do artigo e propondo abaixar a idade, reduzindo dos atuais 18 anos para 16. Mas a partir de 2012 surge uma nova estratégia do movimento punitivista. Nota-se que os conteúdos das propostas não se limitaram mais a modificar a idade penal e passaram a propor alterações no conjunto de direitos que protegem adolescentes sob tutela do Estado. As diversas modificações legais, em distintas propostas, seguem o sentido comum de intensificar o caráter punitivo das medidas socioeducativas. Tratam-se de medidas que alteram direitos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescentes, que dispõe sobre garantias fundamentais dos mais jovens no Brasil.

A afirmativa de que os jovens não são punidos foi desmontada por meio da evidência de que os adolescentes respondem, concretamente, por até seis medidas socioeducativas. Além disso, podem ficar até nove anos em cumprimento de medidas, sendo ainda possível, ficarem mantidos nos centros de internação, em restrição de liberdade, por até três anos. Além disso, não gozam de benefícios jurídicos como progressão de pena, visita íntima, entre outros. Alguns pesquisadores e gestores indicam que os adolescentes recebem punições tão ou mais sistemáticas de que os próprios adultos (Bocchini, 2015).

Os argumentos de que os adolescentes são utilizados pelo crime organizado são frágeis. Se for aliciado com 16 ou 17 pelo crime organizado, com uma eventual Redução da Maioridade Penal, o tráfico poderia atrair jovens de 14 ou 15. Portanto, impedir o aliciamento via procedimento de redução seria inócuo. Da mesma forma, partir da afirmação de que os legisladores devem acompanhar o desejo social, apenas demonstra má fé do legislador. Como destacou Echegaray (2001) a opinião pública é um termômetro importante, contudo, chama a atenção de que não podemos fazer uma leitura ingênua de como os interesses se entranham. A opinião pública pode assinalar até mesmo contra a existência das instituições do sistema democrático como, por exemplo, defender o fechamento do Congresso.

Além disso, não há como assegurar que a sociedade será mais segura e menos violenta. Ao contrário, visualizando a possibilidade de que o consumo de álcool pode ser facilitado legalmente para as faixas etárias de 16 e 17 anos, e conhecendo o histórico das pesquisas que correlacionam consumo de álcool e práticas violentas, a tendência, seguramente seria de aumento da violência.

Assim, as propostas atuais se contrapõem a dois estatutos legais: à Constituição do Brasil e ao ECA. Em relação à Constituição porque pretende alterar cláusula pétrea que estabelece a idade penal em 18 anos; e, em relação ao ECA porque prevê ampliação de medidas punitivas no sistema socioeducativo, que atende adolescentes que praticaram algum tipo de infração.

A seguir, apresentaremos alguns indicadores empíricos que evidenciam a fragilidade dos argumentos que tentam sustentar as mudanças legais descritas acima. Utilizaremos, basicamente, informações sobre os índices de vitimização e de incidência de atos infracionais praticados por adolescentes. Os resultados de pesquisas mostram que esse grupo social tem participação quase inexpressiva, comparados aos adultos, na composição das taxas de homicídio, roubos, furtos e outros crimes. Ao mesmo, diferente das faixas populacionais adultas, os mais jovens são vitimados em proporções significativamente maiores. Nesse sentido, ficará mais claro que as iniciativas políticas de reduzir a idade penal no Brasil são elementos que caracterizam o fenômeno da cultura do controle (Garland 2008) e o processo de sujeição criminal (Misse, 2010).


2 VITIMIZAÇÃO DE ADOLESCENTES NO BRASIL 

Nesse momento, faremos uma análise sobre punição tendo como base o processo de vitimização dos adolescentes no Brasil. O objetivo é trazer dados que demonstram que os discursos que apontam para uma expressiva participação dos adolescentes nos atos não se sustentam.  

De acordo com dados do Relatório Homicídio de Adolescentes no Brasil (IHA, 2008: 10), o homicídio foi a principal causa de morte de pessoas entre 12 e 18 anos no Brasil, correspondendo a 44% dos óbitos, quase a metade. Este número está acima da porcentagem considerada para a população total, em que os homicídios representam 6% do total de mortes.

Segundo o mesmo relatório, adolescentes negros têm risco quatro vezes maior de serem vítimas, comparados aos jovens brancos. Em sua edição de 2010, o respectivo relatório apontou que adolescentes têm 5,6 vezes mais chances de serem mortos por arma de fogo do que o restante da população. Neste mesmo ano, o homicídio subiu para 45,2% da causa de morte na faixa etária de 12 a 18 anos; enquanto se registrou queda ao se considerar a população total, em que os homicídios representaram 5,1% das causas de morte. Se tomarmos os dados do IHA de 2005 a 2012 percebemos que a vitimização de adolescentes saiu de uma taxa de 2,75 por mil para 3.32. Isto representa um crescimento de mais de 20% dos homicídios de adolescentes no Brasil. 

Segundo o Mapa de Violência (2015)  é possível observar que a tendência ascendente de vitimização de adolescentes se concretizou no ano de 2012, em que se registrou a taxa de homicídios para cada grupo de cem mil. Percebe-se que adolescentes de 16 e 17 anos são numericamente mais vitimados.

Ao considerar todo o grupo de adolescentes, a taxa foi de 31,3; enquanto a mesma taxa, considerando a população geral, foi de 25,9. Em números absolutos, no ano de 2012, foram 7.592 adolescentes vitimados letalmente, o que corresponde a 17,2% do total de homicídios ocorridos no Brasil.

Se tomarmos a “faixa impune” que pretende ser alcançada pelos projetos de Redução da Maioridade Penal, observamos que os adolescentes de 16 anos possuem uma taxa de vitimização de 37,1, isto é, 43% maior que a média da população geral. E se tomarmos os adolescentes de 17 anos a variação sobe para 114,67%. Esse dado é uma clara demonstração de que os adolescentes pagam um preço muito mais caro que o conjunto das outras faixas etárias que compõem a sociedade.


3 VIOLÊNCIA, CRIMINALIDADE E ADOLESCÊNCIA

Os dados quantitativos que indicam os atos infracionais praticados por adolescentes revelam uma realidade que coloca sob questionamento a visão comum de que os mais jovens são os principais autores de crimes violentos. A leitura dos indicadores das infrações cometidas deixa clara a disparidade entre as percepções sobre adolescentes e a real incidência de criminalidade que os envolvem. Ao contrário do que se pode observar nos dircursos punitivos, os crimes mais violentos são os menos praticados pelos adolescentes em conflito com a lei. Para isso, basta verificar que a maioria dos atos infracionais praticados são contra patrimônio e não contra a vida.

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No Brasil, os atos infracionais contra patrimônio representam a maioria das infrações praticadas por adolescentes. De acordo com os dados do Mapeamento Nacional da Situação das Unidades de Execução de Medida de Privação de Liberdade (set-out/2002) roubo e furto correspondiam a 52,7% do total, enquanto os crimes contra a vida chegaram a 22,9%. O tráfico de drogas correspondia a 7,5%.

De acordo com o Mapeamento Nacional da Situação do Atendimento dos Adolescentes em Cumprimento de Medidas Socioeducativas, do Instituto Latino Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento de Delinquente (Ilanud), publicado em 2007, no ano de 2006, os atos infracionais contra patrimônio atingiram os 62,8%, enquanto os crimes contra pessoa (vida) foram de 13,7%. As infrações ligadas ao envolvimento com drogas somaram 16,1%. Nota-se que houve um aumento no número de casos como roubo e furto (contra patrimônio) e o envolvimento com tráfico e consumo de drogas. Já os crimes como lesão corporal e homicídio (contra a vida) caíram.

Em 2012, o roubo e o furto apresentaram uma redução, caindo para 42,9%; mantendo, apesar da queda, os crimes contra o patrimônio à frente dos demais índices. Os atos infracionais contra pessoa também caíram em relação aos períodos anteriores, destacando-se a diminuição da porcentagem referente a lesão corporal. Entretanto, a porcentagem de homicídios aumentou entre 2006 e 2012; registrando, entretanto, queda ao longo da década, de 12% em 2002 para 9% em 2012, mantendo-se entre os atos infracionais menos praticados. A mudança significativa está no aumento do tráfico, que saltou para 27%. No geral, pode-se verificar que persiste a tendência de queda no percentual de atos infracionais violentos, que atentam à vida.

Do total de homicídios ocorridos em 2012, apenas 4,2% foram de autoria de adolescentes. Neste mesmo ano, ainda de acordo com o Anuário, 1.963 pessoas foram vítimas fatais da ação de adolescentes e 2.332 foram mortas pela polícia. Se considerarmos que o Brasil tem mais de 20 milhões de adolescentes (12 a 17 anos completos, de acordo com o IBGE Banco Sidra/Censo 2010); e pouco mais de 520 mil policiais, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2013, podemos indagar o quanto a atividade policial tem sido violenta e proporcionalmente mais vitimizadora que adolescentes. Esses números indicam, aproximadamente, que brasileiros correm um risco 40 vezes maior de serem mortos por um policial do que por um adolescente. Contudo, as corporações policiais não aparecem nos discursos do medo propagados pela grande mídia e raramente são apresentados projetos de lei para ampliar o controle e a regulação das polícias. Diferente disso, sobram propostas de lei para o endurecimento penal que afetariam diretamente a juventude.

Além disso, devemos reiterar que os mais jovens são as maiores vítimas de homicídio no Brasil. De acordo com o Mapa da Violência 2014 (publicação prévia), de cada quatro jovens assassinados no país, três são negros e pobres; representam também estes, sete de cada 10 jovens mortos pelas polícias. A vitimização de jovens brancos, no período de 2002 a 2011, decresceu de 36,7% para 22,8% do total de homicídios; isso, enquanto a vitimização de jovens negros cresceu de 63% para 76,9%. Além desses elevados índices de homicídios, a juventude negra e pobre é a mais atingida pelo nosso modelo de encarceramento. Atualmente, 38% da população carcerária tem de 18 a 29 anos e 60% é composta por negros. Assim, ao completar a maioridade, adolescentes em conflito com a lei podem ser público-alvo da política de encarceramento e/ou da violência policial.

Além disso, os dados mostram, ainda, um declínio, ao longo da década, de atos infracionais cometidos contra pessoa (homicídio, tentativa de homicídio e lesão corporal). Essa disparidade é que nos leva a questionar sobre como e porque os adolescentes acabam se tornando o foco preferencial do medo e do ódio da sociedade, como pode ser observado nos discursos dos moradores das grandes cidades. É o que pretendemos discutir na parte seguinte.

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Sobre a autora
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Yara Greyck Pereira. Redução da maioridade penal: o discurso punitivo contra adolescentes em conflito com a lei. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5652, 22 dez. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69617. Acesso em: 2 nov. 2024.

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