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A teoria dos precedentes judiciais à luz dos princípios da segurança jurídica e da igualdade

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27/07/2019 às 15:10
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JURISDIÇÃO. A CLÁSSICA DISTINÇÃO ENTRE DECLARAR A LEI E CONSTRUÇÃO DA NORMA NO CASO CONCRETO.

A ideologia do positivismo jurídico foi a causa das teorias acerca da natureza do ato jurisdicional. Giuseppe Chiovenda afirmou que Jurisdição é a atividade voltada à vontade concreta da lei. O mesmo autor chegou a afirmar que a jurisdição consiste na substituição definitiva e obrigatória da atividade intelectual das partes pela atividade intelectual do juiz, ao afirmar existente ou não a vontade concreta da lei para quem alega o direito.

Carnelutti afirma que a jurisdição tem por escopo a justa composição da lide, esta compreendida como o conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida. Para o autor, a sentença produzia o que ele denominava de norma jurídica individual, esta entendida como aquela que é confeccionada com base na norma geral criada pelo legislador.

Observe que as tradicionais teorias da jurisdição entendiam a atividade jurisdicional como ato subordinado ao direito legislado pelo parlamento. Tanto a atuação da vontade concreta da lei, quanto a criação da norma individual com escopo na norma geral limitam a atividade jurisdicional a mera atividade mecânica de aplicação da lei suprema.

É evidente que um sistema de respeito aos precedentes obrigatórios não se coadunavam com uma atividade jurisdicional meramente declaratória e subordinativa. Se a lei é o Direito supremo, o sistema não deve se preocupar com a decisão judicial, pois não é neste “locus” que se pretende gerar coerência e certeza do Direito. Ao contrário, a lei era o instrumento que detinha a legitimidade de regular as relações sociais com perfeição. A utopia da completude da lei tornava cega a doutrina ao ponto de não enxergar a clarividência da importância da decisão judicial no objetivo de buscar expectativa do Direito.

Não obstante tais argumentos, no meu ver mais do que convincentes para uma mudança de paradigma, a aplicabilidade direta da Constituição, notadamente a aplicação direta dos direitos fundamentais, retirou a lei do trono do absolutismo. A jurisdição, que antes tinha como moldura de aplicação somente a lei, passou a ter uma moldura mais extensa e mais complexa. A Constituição alterou a legitimidade para produzir a certeza do Direito, elegendo a atividade jurisdicional a função de conformar a lei aos ditames constitucionais e aos direitos fundamentais. Declarar a lei não mais seria suficiente para conferir efetividade às exigências da Carta Magna, havendo necessidade de ir além e produzir uma norma jurídica mediante a análise da Constituição, lei e do caso concreto. É o que a doutrina moderna denomina de norma jurídica do caso concreto.

Levada essa nova realidade como premissa verdadeira, a decisão judicial passou a ser vista com olhar mais cuidadoso. Decidir é construir algo que ainda está inacabado. Explico-me. A moldura para a aplicação do Direito passou a ser a Constituição, e, como cediço, a Carta Magna não tem pretensão de completude como tinham as Codificações de priscas eras. Uma Constituição, além de prescrever a organização do Estado e dos Poderes, tem por pretensão ditar os valores aceitos pela determinada comunidade, listando, mesmo que de forma exemplificativa, os direitos mais importantes, sem o qual a convivência social não seria possível. São estes os direitos fundamentais.

Direitos fundamentais, com escopo no jurista alemão Robert Alexy, tem como fundamento a teoria dos princípios. Este, como sabemos, é espécie normativa que se caracteriza pela sua textura aberta, cumprindo inúmeras funções, como por exemplo, a função normogenética na criação de uma regra jurídica.

O juiz, ao conformar a lei com os direitos fundamentais, pode se ver diante de uma colisão de direitos fundamentais. Esta colisão, explica com louvor Alexy, deve ser resolvida mediante a técnica da ponderação, não havendo falar em invalidade de um princípio em detrimento do outro no caso concreto, já que esta espécie de norma jurídica se qualifica como mandado de otimização, ou seja, será aplicado na medida possível das possibilidades fáticas e jurídicas.

Se direitos fundamentais tem natureza de princípio, e estes, em caso de colisão, se resolvem pela técnica da ponderação conforme as possibilidades fáticas e jurídicas, é uma obviedade a afirmação de que a jurisdição cria uma nova norma jurídica, tendo o juiz como instrumento de trabalho a Constituição, a lei e o caso concreto, pois, como dito supra, o Direito criado pela lei e pela Carta Magna ainda está inacabado.

Alguns poderiam afirmar que a jurisdição ainda declara o direito, todavia esta atividade seria a declaração não mais da lei, e sim da Constituição. Em que pese não concorde com essa afirmativa, o que importa é que se o Direito precisa ser confeccionado pelo magistrado no caso concreto, já que ainda está inacabada, a decisão judicial passa a ser o “locus” onde se procura dar coerência e certeza ao Direito. Em sendo assim, respeito ao precedente judicial é uma exigência constitucional, com escopo de respeitar o conteúdo igualitário das decisões judiciais para casos análogos.


O PRECEDENTE E SUA ESTRUTURA

O estudo do conceito e a estrutura do precedente é assaz importante para o entendimento de que o mesmo não tem a pretensão de eternidade no ordenamento jurídico, tornando-se imprescindível compreender os conceitos de distinguish, overruling, ratio decidendi e obter dictum.

Ab initio, precedente é a decisão judicial tomada à luz de um caso concreto, cujo núcleo essencial pode servir como diretriz para o julgamento posterior de casos análogos. Observe que o precedente pode ser entendido como a decisão judicial ou como a porção da decisão judicial que pode ser utilizado para o julgamento de casos análogos.

Contudo, precedente não é a mesma coisa que jurisprudência. Com esteio no professor Luiz Henrique Volpi Camargo:

Assim, a distinção básica entre precedente e jurisprudência reside na circunstancia de que enquanto um precedente é substantivo singular, a jurisprudência é substantivo coletivo, e, para ser corretamente denominada como tal, deve se constituir de decisões ou acórdãos uniformes, que reflitam o pensamento dominante de um determinado Tribunal ou, se possível, do Poder Judiciário por inteiro (LUIZ HENRIQUE VOLPI CAMARGO, A força dos precedentes no moderno Processo Civil brasileiro, p. 05).

A decisão judicial é composta por relatório, fundamentação e dispositivo, elementos estes que prescindem de maiores aprofundamentos. No que concerne ao dispositivo, é neste “locus” da decisão que se insere a norma jurídica do caso concreto ou a norma jurídica individual, como queria Carnelutti. Esta norma jurídica é aquela norma que é produzida em conformação com lei, a Constituição e o caso concreto, cuja principal característica é regular o caso sob julgamento e sofrer a incidência da imutabilidade da coisa julgada.

... ao decidir uma demanda judicial, o magistrado cria, necessariamente, duas normas jurídicas. A primeira, de caráter geral, é fruto da sua interpretação/compreensão dos fatos envolvidos na causa e da sua conformação ao Direito positivo: Constituição, leis etc. A segunda, de caráter individual, constitui a sua decisão para aquela situação específica que se lhe põe para a análise (FREDIE DIDIER JUNIOR, Curso de Direito Processual Civil, p. 382, ed. 9).

Ocorre que o núcleo central de uma decisão judicial não é a norma jurídica individualizada. A fundamentação é um elemento da decisão onde o juiz deve expor as suas razões de decidir e demais argumentos laterais. O precedente judicial está inserido na fundamentação e consiste na parte desta que determina qual o sentido da norma jurídica individualizada, ou seja, precedente é o fundamento determinante para que o dispositivo da decisão fosse confeccionado em determinado sentido. É o que se denomina de “ratio decidendi”.

A ratio decidendi – ou, para os norte-americanos, a holding – são os fundamentos jurídicos que sustentam a decisão; a opção hermenêutica adotada na sentença, sem a qual a decisão não teria sido proferida como foi (FREDIE DIDIER JUNIOR, Curso de Direito Processual Civil, p. 381, ed. 9).

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A “ratio decidendi”, ou razão de decidir, é que servirá como modelo de julgamento para os casos análogos. Se é assim, “ratio decidendi” é mais uma norma jurídica que o juiz confecciona ao proferir uma decisão. Todavia, tal norma se difere da norma jurídica individualiza, pois aquela tem pretensão de generalidade, ou seja, é uma norma jurídica geral que será utilizada como paradigma para a atividade jurisdicional para os casos semelhantes o caso originariamente julgado. Só se pode considerar como “ratio decidendi” a opção hermenêutica que, a despeito de ser feita para um caso concreto, tenha aptidão para ser universalizada. Assim, o precedente é a norma jurídica geral, construída a partir de um caso concreto, e que serve de modelo para casos futuros.

A identificação do que é “ratio decidendi” é deveras importante, pois numa fundamentação encontra-se, além das razões de decidir, argumentos de relevância secundária, que, caso não inseridos na fundamentação, o conteúdo da norma jurídica individualiza permanece o mesmo. Estes argumentos laterais são denominados pela doutrina de “obter dictum”, ou melhor, argumentos ditos de passagem. Observe que o que configura norma jurídica geral é a razão de decidir, portanto, argumentos ditos de passagem não podem ser tidos como paradigma de julgamento para casos análogos.

O obter dictum, ou simplesmente dictum, consiste nos argumentos jurídicos que são expostos apenas de passagem na motivação da decisão, consubstanciando juízos normativos acessórios, provisórios, secundários... (FREDIE DIDIER JUNIOR, Curso de Direito Processual Civil, p. 383, ed. 9).

Embora o “obter dictum” não seja o precedente, aquele ainda pode se mostrar de vasta utilidade, pois pode indicar um novo posicionamento do Tribunal. Veja: o precedente judicial pode ser revogado. Este é o instituto do overruling. O overruling é a possibilidade, mediante uma fundamentação robusta, de revogação de um precedente. A causa geradora para a superação do precedente não pode ser simplesmente um novo entendimento jurídico da questão pelo Tribunal, e sim, por exemplo, uma mudança social, científica ou, até mesmo, de alteração da legislação. Este rigor na superação do precedente se justifica pela própria finalidade do instituto, que é permitir a certeza do direito e estabilização das relações jurídicas. Se há necessidade de superação do entendimento, que a razão para isso seja convincente.

Um dos argumentos contrários à utilização dos precedentes judiciais é a possibilidade de obstáculo ao desenvolvimento do Direito. Com a vênia devida aos que pensam nesta linha, o precedente judicial não gera esta estabilização. Se é certo que os casos análogos ao caso em que o precedente se formou merecem o mesmo tratamento jurisdicional, os casos diferentes merecem tratamento diverso. É a simples aplicação da igualdade material. Quando houver distinção entre o caso concreto (em julgamento) e o paradigma, seja porque não há coincidência entre os fatos fundamentais discutidos e aqueles que serviram de base à “ratio decidendi” constante no precedente, seja porque, a despeito de existir uma aproximação entre eles, alguma peculiaridade no caso em julgamento afasta a aplicação do precedente, o precedente não deve ser aplicado ao caso sub judice. Todo sistema jurídico que trabalha com o precedente judicial deve conceder ao jurisdicionado o direito de distinção, ou melhor, o direito ao “distinguishing”.

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Sobre o autor
Renato Nascimento Lessa

Advogado OAB BA n° 40.539. Área de atuação: Cível e Consumidor. Graduado pela Universidade Católica do Salvador. Pós- graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Anhanguera/LFG, coordenação do professor Fredie Didier. Aprovado e empossado nas funções de conciliador e juiz leigo, tendo exercido tais atividades entre 2015 e 2017. Telefone: (71) 992838762 (wapp)

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LESSA, Renato Nascimento. A teoria dos precedentes judiciais à luz dos princípios da segurança jurídica e da igualdade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5869, 27 jul. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69694. Acesso em: 19 abr. 2024.

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