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Violência sexual relacionada a situações de conflito: violações de direitos humanos praticadas pelo Estado Islâmico contra mulheres e crianças da comunidade Yezidi

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02/12/2018 às 16:10
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3. Práticas tribais e religiosas relacionadas à violência sexual contra mulheres

A Província de Níneve, localizada na parte noroeste do Iraque, a cerca de 400 quilômetros de Bagdá, abriga a antiga cidade assíria de Nineveh e a grande cidade de Mosul, a qual foi tomada em meados de 2014 pelo EIIL, onde o grupo proclamou seu “califado”. Em julho de 2017, com o apoio aéreo dos Estados Unidos e de seus aliados, tropas iraquianas conseguiram libertar a cidade.

Neste ínterim, em março de 2016, representantes das principais tribos da Província de Níneve assinaram um “Acordo Tribal”, endossado por seu Conselho Provincial, que tem por objetivo aplicar “mecanismos e costumes de justiça tradicionais”.

Uma das disposições do Acordo Tribal prevê o despejo forçado de famílias ligadas ao EIIL e transferência de sua propriedade para vítimas, como forma de reparação. Os representantes afirmaram que a apreensão das propriedades também ajudaria a mitigar outras formas de retaliação contra famílias que dão suporte ao grupo terrorista, ao mesmo tempo em que a redistribuição serviria como “terapia mental” para as vítimas e facilitaria o retorno de pessoas uma vez deslocadas de Níneve[58].

A UNAMI, junto ao Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (OHCHR - Office of The High Commissioner for Human Rights), manifestou discordância com o método adotado pelas Tribos, visto que o despejo forçado de famílias supostamente apoiadoras do EIIL é uma forma de punição coletiva, o que vai contra a Lei Iraquiana e Internacional[59].

Outrossim, o Acordo Tribal também comina pena de morte em caso de "crimes graves", e prevê que crimes cometidos contra mulheres não devem ser passíveis de anistia, além de exigir que aqueles que cometeram crimes “menos graves” sejam detidos, inclusive os relativos às formas de apoio financeiro ou angariação de fundos para subsidiar as atividades do EIIL, ou à destruição de lugares culturais e religiosos. Finalmente, o Acordo Tribal especifica que eventuais iniciativas de reconciliação em Níneve devem ocorrer mediante consulta com líderes tribais[60].

Nessa toada, em fevereiro de 2017, um grupo de Sheikhs e líderes tribais do Iraque emitiu o intitulado “Documento das Tribos Iraquianas para a Paz Comunitária”, que incentiva a adoção de um “remédio para a injustiça social imposta às mulheres vítimas de estupro”, aduzindo que as mulheres que foram estupradas ou que foram submetidas a outras formas de violência sexual são “vítimas que merecem apoio (psicológico e moral) das organizações humanitárias e da comunidade, além de empatia, porque suas vontades foram roubadas”[61].

Na mesma data, o Ministério Sunita de Doações do Iraque (Iraq’s Diwan of Sunni Endowments), uma organização sem fins lucrativos, responsável por doações muçulmanas e supervisão de templos, voltados também para o culto de outras doutrinas e religiões no país, como a Yezidi[62], junto com o Conselho Supremo do Iraque (Iraqi Supreme Council of Fatwa), emitiu um pronunciamento sobre “a posição do Islã sobre mulheres violentadas", que oferece uma visão religiosa sobre os papéis dos homens (aqueles que cometem estupro), mulheres (que foram estupradas) e a relação da sociedade com ambos.

Sob esta ótica, um homem que comete estupro sem acreditar que sua conduta é "religiosamente permissível", deve ser considerado um “fornicador que pratica atos de violência e incute danos à sociedade”, e ser submetido às punições previstas no Alcorão (texto religioso islâmico).

Ainda, um homem que comete estupro acreditando que sua conduta é “permitida religiosamente”, deve ser considerado um "incrédulo infiel cuja morte é autorizada".

No tocante às mulheres que foram violadas, o pronunciamento atesta que uma mulher que tenha sido forçada em qualquer circunstância, não pode ser considerada uma "pecadora", nem deve ser punida de qualquer forma, mas deve ser “compreendida”[63].

Finalmente, o documento assevera que a sociedade e as famílias das vítimas devem protegê-las e adotar medidas para mitigar os efeitos do ataque sofrido, tais como cuidados psicológicos e médicos, não culpar a vítima, e parar de tratá-la com reprovação ou como pessoas “desonradas”[64].

Não obstante, outros acordos tribais também entraram em vigência, incluindo a “Aliança Anbar” (Anbar Covenant), em Julho de 2016, aprovado por representantes das tribos ocidentais da Província de Anbar, o “Pacto de Heet” (Heet Covenant), em Novembro de 2016, endossado por líderes tribais em Heet, subdistrito de Anbar, e o denominado “al-Sabaawi”, acordo endossado por representantes tribais de al-Sabaawi, subdistrito de al-Qayyarah, da cidade de Mosul. Esses acordos incluem disposições de natureza tradicional e tribal, conhecidas historicamente no Iraque por afastar os assuntos criminais de qualquer supervisão judicial[65].


4. Violações de Direitos Humanos e Ações Concretas de Repressão

4.1 Mulheres e Crianças vítimas de estupro e escravidão sexual

Uma das maiores preocupações em relação às mulheres e crianças raptadas pelo EIIL, submetidas à escravidão sexual, estupro e outras formas de violência sexual, é assegurar acesso à assistência médica, psicossocial e financeira, deveres incumbidos ao Iraque, de acordo com leis domésticas e tratados internacionais, dos quais é signatário.

Além disso, o país deve garantir que as vítimas tenham pleno acesso à justiça e à reparação, através do julgamento dos supostos ofensores, conduzidos por tribunais independentes e imparciais, estabelecidos legalmente, sob o crivo do devido processo legal e dentro dos parâmetros de um julgamento justo.

Acima de tudo, todo procedimento deve ser conduzido de uma maneira sensível no que se refere às questões de gênero, a fim de evitar o fenômeno da revitimização das mulheres e crianças.

Isso porque a perpetuação da vitimização configura-se tão séria quanto o próprio trauma infligido pela conduta delitiva, e se dá em razão da forma como são conduzidos os procedimentos pelos quais as vítimas passam durante a tramitação do processo judicial desde a revelação do abuso, que muitas vezes contribuem para que elas revivam aspectos do trauma sofrido, causando-lhes grande sofrimento psicológico. Isso se dá em razão da repetição do seu relato para diferentes profissionais das instituições por onde passa, uma vez que nem todos adotam procedimentos dotados de práticas não revitimizantes.

Estudos apontam que fatores como a fragilidade da rede de garantia de direitos, bem como a questão cultural que envolve a situação de violência, em que a vítima muitas vezes é culpabilizada pelo desfecho acarretado com a revelação do abuso, e desqualificada enquanto ofendida, tendo sua fala desvalorizada inclusive pela família, contribuem para a ocorrência da revitimização[66].

Desse modo, quando submetidas a um modelo tradicional de tomada de depoimento, vítimas sob frágil condição emocional tendem a omitir fatos para evitar contato com a situação traumática[67].

Assim, as autoridades responsáveis pela persecução do crime devem garantir a implementação de mecanismos que facilitem o acesso das vítimas à justiça; a tomada de depoimentos por oficiais de polícia do sexo feminino, devidamente capacitadas; além da implementação de políticas que assegurem que mulheres e crianças sejam respeitadas e protegidas durante os procedimentos[68].

No que se refere aos Acordos Tribais, a UNAMI manifestou séria preocupação com as disposições que versam sobre punições coletivas, exílio e penas de morte. Entretanto, outros aspectos como a impossibilidade de concessão de anistia em crimes sexuais cometidos contra mulheres e crianças são bem recepcionados, devendo-se evitar a todo custo o fenômeno da revitimização[69].

Por outro lado, a UNAMI constatou que a violência doméstica aumentou em famílias que pagaram resgate por parentes mulheres escravizadas pelo EIIL, em função do alto nível de estresse instaurado pelos altíssimos encargos econômicos advindos desta decisão. Destarte, é necessário que o Governo do Iraque considere desenvolver outras políticas que assegurem às vítimas o direito de pleitear indenizações do Estado, incluindo o reembolso de quantias pagas para suas solturas, tendo em vista que é dever precípuo do Estado prover segurança e proteção à população[70].

A repatriação e a reunificação das vítimas com suas famílias e comunidades também devem ser facilitadas pelo governo, por meio de assistência para reemissão de documentos legais que podem ter sido destruídos ou perdidos durante os sequestros, bem como para despesas de viagem[71].

Mulheres e crianças devem ser totalmente respeitadas por suas famílias, comunidades e pelo Governo Iraquiano, o qual deve prover imediata proteção através de relocação e acomodação em abrigos, caso esta diretriz seja desrespeitada, principalmente em casos dos denominados “crimes de honra”[72].

4.2 Represálias e Atos de Punição Coletiva contra Mulheres forçadas a se casar com membros do EIIL

As mulheres casadas com membros do EIIL, com ou sem o seu consentimento, além de terem sido submetidas às mais cruéis formas de violência, podem ainda estar sujeitas à discriminação e a formas de punição coletiva, baseadas na suspeita de terem cooperado com o EIIL. A este respeito, é de fundamental importância o fornecimento de assistência a nível local, com engajamento de líderes tribais, para garantir que as mulheres casadas com membros do EIIL não sejam automaticamente tratadas como cúmplices, e que todas as mulheres eventualmente acusadas de apoiar o EIIL sejam tratadas de forma justa e com base no estabelecimento da responsabilidade criminal individual.

Sob este ponto de vista, a UNAMI novamente expressou preocupação com os costumes tribais observados em todo o Iraque, relacionados ao despejo forçado de famílias de pessoas suspeitas de colaborar com o EIIL[73], institucionalizados por meio da celebração dos ditos Acordos Tribais, pois considera ilegais suas disposições concernentes ao exílio de pessoas suspeitas de assistência ao grupo terrorista, e a apreensão e distribuição de seus bens, na medida em que isso equivale à punição coletiva.

Nesse sentido, pertinente se mostra a correlação entre as práticas tribais e a antiga Lei de Talião - cujos primeiros indícios foram encontrados no Código de Hamurábi, em 1780 a.C., no Reino da Babilônia - que consiste na rigorosa reciprocidade entre crime e pena, a alcunhada retaliação, frequentemente expressa pela máxima “olho por olho, dente por dente”[74]. A própria palavra Talião, que vem do latim talio, significa “tal” ou “igual”, e reforça a tese, ao menos teórica, de equilíbrio. O problema é que na prática não se observa a mesma clareza teórica e, por isso, a Lei de Talião assumiu posições extremistas e perigosas ao Estado Democrático de Direito.

Desse modo, configuram-se demasiadamente preocupantes as práticas tribais recorrentes no Iraque, pois quando há compensação de condutas, o dano torna-se inexistente, pois não se deve responder ao ato que se acoima de ilícito com outro que também possa merecer essa classificação, visto que a vida em sociedade não se coaduna com a aplicação da Lei de Talião, não podendo alcançar reparação de qualquer natureza, o ofendido que também se converte em ofensor[75].

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Ademais, as disposições destes Acordos Tribais constituem interpretações vagas de "acusações" e "punições", interpostas contra "suspeitos", o que poderia levar a graves violações dos direitos constitucionais dos cidadãos iraquianos, bem como das obrigações internacionais de direitos humanos assumidas pelo país em relação à condução de julgamentos justos e à igualdade perante a lei.

Alguns acordos instituem ainda, comitês compostos por peritos jurídicos, encarregados de avaliar os casos que lhes são apresentados, emitindo posteriormente decisão sobre o destino das pessoas “acusadas”. Esses comitês constituem entidades paralelas aos mecanismos judiciais e extrajudiciais do Estado, e promulgam “decisões” contra pessoas “acusadas”, em meio à falta de qualquer encaminhamento a um órgão judiciário iraquiano oficial.

Assim, da forma como são implementados e conduzidos, esses Acordos Tribais minam o Estado de Direito, já tão fragilizado em uma fase pós Estado Islâmico, ao cominarem a retaliação equivalente à punição coletiva contra milhares de pessoas, alimentado cada vez mais um ciclo de violência e ódio, que diminui as chances de tentativas de uma reconciliação genuína e sustentável[76].

Destarte, manifestando-se acerca do exposto, o Primeiro Ministro do Iraque, al-Abadi, asseverou em uma coletiva de imprensa, em Março de 2017, que as famílias de alguma forma ligadas ao EIIL estão protegidas e que os perpetrantes de crimes serão tratados sob a letra da lei Iraquiana[77].

4.3 Ratificação e anulação de casamentos

Através de consultas com líderes da comunidade local para entender o tratamento despendido às mulheres e meninas que se casaram com membros do EIIL, foi constatado pela UNAMI que se a mulher consentiu com o casamento, o contrato matrimonial pode ser ratificado posteriormente por Tribunal Federal, se necessário.

 A ratificação é importante, não para reconhecer o grupo terrorista como uma entidade competente para endossar o contrato, mas sim para reconhecer o contrato de casamento entre dois adultos que, na presença de duas testemunhas, consentiram com sua celebração, sob o crivo da lei iraquiana.

Embora tal confirmação possa ser controversa tanto em termos da lei, como da Shari’a (a chamada “Lei de Deus” islâmica), os líderes religiosos notaram que a sua não realização poderia levar a acusações de adultério contra pessoas que eram "casadas" em áreas sob a chamada "autoridade" do Estado Islâmico, considerando que esses casamentos não seriam reconhecidos pela lei iraquiana, e isso potencialmente levaria a um problema de legitimidade dos filhos deles advindos.

De modo contrário, se a mulher não consentiu com o casamento, ou seja, foi obrigada a se casar contra a sua vontade - ainda que haja um contrato matrimonial assinado - este contrato não será considerado válido, a menos que tenha sido sexualmente consumado.

Contudo, ainda que o casamento tenha sido consumado pela ocorrência de relação sexual, o contrato pode ser anulado por Tribunal Federal, com base no artigo 16, do Estatuto de Direito Pessoal (Personal Status of Law), de 1917. Neste caso, a mulher pode registrar qualquer criança nascida durante a vigência do contrato matrimonial - evitando que seja classificada como “ilegítima” - mediante prévia confirmação do documento e, seguidamente, obter sua anulação por meio de instauração de um segundo processo judicial[78].

4.4 Assistência Médica e Gravidez

Na qualidade de Estado Parte da CEDAW - Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination Against Women (Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra as Mulheres), bem como de outros tratados internacionais, e em observância ao que dispõe a Constituição do Iraque, em seus artigos 30 e 31, o Governo Iraquiano possui obrigações irrenunciáveis em matéria de saúde pública destinada a mulheres e meninas.

Como parte dessas obrigações, o Governo do Iraque deve, portanto, fornecer acesso a toda a gama de apoio médico e psicológico, além de informações sobre saúde sexual e reprodutiva para mulheres e meninas, garantir acesso livre a estes serviços, informação e assistência sem discriminação e assegurar que terceiros não obstruam, de qualquer forma, a fruição do direito à saúde de mulheres e meninas.

Sob todos os aspectos, o Governo do Iraque deve se concentrar em prover apoio psicossocial, médico e financeiro apropriados, ou seja, cuidados comunitários, que têm o condão de empoderar mulheres e meninas e conferir-lhes segurança para alcançarem seu potencial máximo[79].

O Iraque também deve respeitar, proteger e fazer cumprir o direito das mulheres de acessar informações educacionais específicas, a fim de garantir a saúde e o bem-estar de suas famílias, incluindo informações e conselhos sobre planejamento familiar.

Do mesmo modo, assistência e apoio devem ser oferecidos às mulheres grávidas e meninas em toda a extensão de seus direitos reprodutivos e disponibilizar serviços para auxiliá-las em relação a quaisquer escolhas que façam[80].

Neste viés, o Governo do Iraque necessita esclarecer qual lei é aplicável à interrupção de gravidez indesejada, em casos de mulheres e meninas que foram submetidas à violência sexual, assegurando que a lei e sua implementação estejam de acordo com os direitos das mulheres e meninas, em consonância com as normas nacionais e internacionais.

4.5 Crianças nascidas de mulheres mantidas em áreas controladas pelo EIIL

O governo iraquiano deve assegurar que as crianças nascidas de mulheres casadas com afiliados ao EIIL não estejam sujeitas à discriminação, marginalização ou outras formas de violência e abuso.

Isto porque, atualmente no Iraque, muitos registros de nascimento ostentam cunho discriminatório, como a qualificação do genitor da criança como “terrorista do Estado Islâmico” ou do próprio infante como “muçulmano”, baseada exclusivamente em suposições quanto à religião do genitor, quando a mãe é, na verdade, descendente de uma comunidade não-muçulmana, como é o caso da Yezidi.[81]

Desta feita, o Estado deve assegurar o uso apropriado do registro de nascimento, a fim de garantir que estas crianças tenham todos os direitos e proteções legais, inerentes a qualquer cidadão, afastando outros riscos, tais como a apatridia, estado relativo aos apátridas, ou seja, pessoas que não têm sua nacionalidade reconhecida por nenhum país, o que decorre de diversas razões, dentre elas, a discriminação contra minorias no âmbito de legislações domésticas, a falha em reconhecer todos os residentes do país como cidadãos quando este país se torna independente, e a existência de conflitos de leis entre países, ou entes autônomos[82], o que os coloca frequentemente em situações precárias, à margem da sociedade, não sendo capazes de ir à escola, consultar um médico, conseguir um emprego, abrir uma conta bancária, comprar uma casa ou até se casar[83].

De mais a mais, o abuso, a marginalização, a exploração e o tráfico de pessoas também devem ser evitados a todo custo, sendo essencial que o governo elabore políticas de apoio aos chamados cuidadores, possibilitando a implementação e manutenção de orfanatos, especialmente àqueles destinados a cuidar de crianças com necessidades especiais.

Em dezembro de 2016, o ACNUR - Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, identificou cerca de 800 crianças cujos nascimentos haviam sido registrados pelo EIIL em áreas sob seu controle. Ocorre que, a documentação emitida pelo grupo jihadista geralmente não é aceita pelo Governo do Iraque ou pelo Governo Regional do Curdistão.

Neste contexto, estima-se que um número muito maior de crianças - nascidas de mulheres em áreas que estavam sob o controle do EIIL - não tenham nenhuma documentação. O imbróglio reside no fato de que, para obter uma nova certidão de nascimento, é necessário que os pais constituam prova de seu estado civil, além do testemunho de duas pessoas aptas a confirmar o nascimento da criança[84].

À vista disso, este procedimento torna extremamente difícil o registro de nascimento de crianças concebidas nestas circunstâncias, especialmente: 1) nos casos em que os documentos foram emitidos pelo EIIL, ou perdidos, ou destruídos; 2) quando um dos pais está morto ou ausente; 3) quando a identidade do pai é desconhecida, como em casos de estupro ou outras formas de violência sexual; 4) quando uma criança foi abandonada devido a algum estigma; 5) quando a mobilidade é restrita (como nos acampamentos de deslocados internos ou onde não há cartórios de registro e tribunais civis); ou 6) quando as famílias não têm recursos financeiros suficientes para pagar pelas taxas legais requeridas[85].

Por fim, foi igualmente observado que alguns requisitos adicionais para registro, como recolhimento de amostras de sangue, não são compatíveis com todas as localidades do Iraque, o que obstaculiza ainda mais a realização de registros de nascimento.

4.6 Valas Comuns

Na medida em que territórios foram sendo recuperados do EIIL, ao norte da província de Níneve, foram descobertos vários locais de abate em toda a cidade de Sinjar, bem como nas localidades de Tel Afar e Mosul, referidos como valas comuns por testemunhas. Uma ONG local documentou que até 35 supostas valas comuns contendo restos mortais de vítimas Yezidis, existem na área de Sinjar[86].

Devido ao vasto número de locais e à falta de recursos e conhecimentos especializados, o Governo Regional do Curdistão tem enfrentado dificuldades para proteger, preservar e escavar adequadamente esses locais. Assim, até que a escavação adequada seja realizada, configura-se impossível determinar a quantidade de cadáveres, suas identidades e possíveis evidências que possam ajudar a identificar os autores de suas mortes.

Ainda, há relatos que noticiaram que familiares têm frequentemente revirado as valas comuns, na esperança de encontrar restos mortais de seus entes queridos. Isto posto, esforços para proteger e exumar estes locais estão sendo adotados por atores especializados, em cooperação com as autoridades da região do Curdistão. Porém, para que se alcance um resultado satisfatório, será necessária a disponibilização de mais recursos[87].

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Sobre a autora
Vittoria Bruschi Sperandio

Advogada. Graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Pós-graduanda em Direito Processual Penal pela Faculdade Damásio. Aluna especial do Mestrado em Direito Negocial da Universidade Estadual de Londrina. Membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB - Londrina.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SPERANDIO, Vittoria Bruschi. Violência sexual relacionada a situações de conflito: violações de direitos humanos praticadas pelo Estado Islâmico contra mulheres e crianças da comunidade Yezidi. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5632, 2 dez. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/69856. Acesso em: 24 abr. 2024.

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