5. Organização das Nações Unidas: Recomendações e Resoluções
Inevitavelmente inseridas neste contexto trágico e caótico, as sobreviventes - quando conseguem escapar do controle do EIIL - ficam completamente desamparadas, pois além de estarem altamente traumatizadas, estão sem casa, seus familiares na maioria das vezes estão mortos ou desaparecidos e, ainda, não podem contar com direcionamento e assistência efetiva do governo. Ou seja, não sabem a quem recorrer e, quando são atendidas pelo serviço público, é quase sempre de modo insatisfatório pela falta de recursos, a título de exemplo, aos próprios hospitais, que se veem limitados a coletar meros exames de sangue para “tratar” vítimas de violência sexual, por não disporem de outras ferramentas extremamente necessárias, como acompanhamento psiquiátrico e medicamentos.
Diante do contexto exposto, reafirmando seu compromisso primário de manutenção da paz e segurança internacional, em observância ao disposto na Carta das Nações Unidas, reiterando absoluta condenação em relação ao Estado Islâmico do Iraque e do Levante, bem como a todo e qualquer indivíduo associado a grupos e entidades que pratiquem atos terroristas e repudiando a associação do terrorismo com qualquer religião, nacionalidade ou civilização, a ONU expediu diversas Recomendações, pautadas em relatórios sólidos, e baixou várias Resoluções, adotadas pelo Conselho de Segurança, a fim de reunir esforços efetivos de seus Estados-membros para a repressão do terrorismo, para a mitigação das consequências experimentadas pelas vítimas, para a conscientização da população como um todo e prevenção da violência sexual relacionada a conflitos.
Sob esta ótica, faz-se importante a menção da Recomendação Geral nº 30 sobre Mulheres em Situações de Prevenção de Conflito, Conflito e Pós-conflito (General Recommendation No. 30 on Women in Conflict prevention, Conflict and Post-conflict Situations), emitida pelo Comitê para Eliminação da Discriminação contra as Mulheres da ONU, em 2010, cujo principal objetivo e propósito é fornecer orientações dotadas de autoridade aos Estados partes, sobre questões legislativas, políticas e outras medidas adequadas, para garantir o pleno cumprimento das suas obrigações assumidas nos termos da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (CEDAW - Convention on the Elimination of All Forms of Discrimination against Women), de acordo com seu artigo 21, a fim de proteger, respeitar e fazer cumprir os direitos humanos das mulheres.
Nestes termos, a ONU recomendou energicamente que todos os Estados partes ratifiquem todos os instrumentos internacionais relevantes com este mesmo intuito, tais como: o Protocolo Facultativo à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres (1999); Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança no envolvimento de crianças em conflitos armados (2000); Protocolo adicional às Convenções de Genebra de 12 de agosto de 1949, e relativo à proteção das vítimas de conflitos armados internacionais (1977); Convenção relativa ao Estatuto dos Refugiados (1951) e seu Protocolo (1967); Convenção relativa ao Estatuto dos Apátridas (1954) e as Convenção sobre a Redução da Apatridia (1961); Protocolo para Prevenir, Suprimir e Punir o Tráfico de Pessoas, Especialmente Mulheres e Crianças, complementando a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (2000); Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional (1998); e o Tratado sobre o Comércio de Armas (2013)[88].
No que se refere às questões específicas de gênero, envolvendo conflitos e ofensas de cunho sexual, a “Nota de Orientação do Secretário Geral sobre Reparações por Violência Sexual Relacionada a Situações de Conflito”[89], da ONU, representou um marco importante frente aos desenvolvimentos normativos até então existentes, pois tratou esta situação de maneira singular, utilizando a definição oficial do termo “Violência Sexual Relacionada a Conflitos” (CRSV – Conflict-related Sexual Violence), desenvolvida pela ONU, sendo suas diretrizes positivadas pela Resolução 1960, de 2010[90].
De acordo com essa definição, a Violência Sexual Relacionada a Conflitos refere-se a incidentes ou padrões de violência sexual contra mulheres, homens, meninas ou meninos, que ocorrem em situações de conflito ou pós-conflito e têm ligações diretas ou indiretas com o próprio conflito, ou que ocorrem em outras situações preocupantes, como no contexto da repressão política[91].
A Violência Sexual Relacionada a Conflitos, no geral, é mais comumente relacionada ao sexo feminino, pois afeta um número muito mais significativo de mulheres e meninas do que de homens e meninos, apesar destes últimos também poderem ser sujeitos passivos da ofensa, a qual pode assumir múltiplas formas, tais como, inter alia, violação, gravidez, esterilização forçada, aborto forçado, prostituição forçada, exploração sexual, tráfico sexual, escravidão sexual, circuncisão forçada, castração, nudez forçada ou qualquer outra forma de violência sexual de gravidade comparável. Dependendo das circunstâncias, pode constituir até crime de guerra, crime contra a humanidade, genocídio, tortura ou outras violações grosseiras de direitos humanos[92].
Em um espectro mais amplo, considerando a necessidade de combate e enfraquecimento das organizações terroristas em si, notáveis perpetradoras de tais violências, convém destaque à Resolução 2368, de julho de 2017, baixada pelo Conselho de Segurança da ONU, sobre o congelamento de recursos financeiros pertencentes grupos terroristas, que em seu preâmbulo, condenou veemente os abusos cometidos contra mulheres e crianças pelo EIIL e grupos associados e impeliu aos Estados partes que rejeitem qualquer negócio, ligação econômica e financeira com estes grupos, incluindo maior rigor quanto as suas políticas de segurança de fronteira[93].
O documento ainda exaltou a cooperação continuada entre o Conselho de Segurança e a INTERPOL, o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime, encorajando fortemente seu envolvimento com a Força Tarefa de Implementação ao Combate ao Terrorismo das Nações Unidas, para assegurar a coordenação geral e coerência nos esforços de combate ao terrorismo do sistema das Nações Unidas.
O Conselho ainda expressou profunda preocupação com o contínuo lucro auferido pelo EIIL, Al-Qaida e indivíduos associados a grupos, empresas e entidades envolvidos na criminalidade organizada transnacional, incluindo o tráfico de armas, pessoas, drogas e artefatos, e do comércio ilícito de recursos naturais, como o ouro e outros metais preciosos, pedras, minerais, animais selvagens, carvão vegetal, petróleo e derivados de petróleo, bem como de resgate por sequestros, extorsão e assalto a bancos.
Desse modo, elencou um rol de medidas que a serem adotadas pelos Estados, tais como o congelamento de ativos financeiros, proibição de viagens, além do dever de obstar a entrada e o trânsito de terroristas em seus territórios e promover embargo de armas, impedindo o abastecimento direto ou indireto e a sua transferência a estes indivíduos, dentre outras.[94]
Ainda, merece relevo outro manuscrito normativo, a Resolução 2388, de novembro de 2017, também adotada pelo Conselho de Segurança da ONU, relativa ao tráfico de pessoas, especialmente de mulheres e crianças, as quais são pessoas ainda mais vulneráveis por estarem inseridas em situação de conflito[95].
A Resolução foca na necessidade de melhorar a coleta, por meio de relevantes sistemas de base de dados geridos por organizações internacionais, como o UNODC e INTERPOL, de dados oportunos, objetivos, precisos e confiáveis sobre o tráfico de pessoas em situações de conflito, separadas por sexo, idade e outros fatores relevantes, bem como de fluxos financeiros associados ao tráfico de pessoas.
Nesse diapasão, insta os Estados membros a considerarem, prioritariamente, ratificar, aderir, ou implementar efetivamente, a Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional e seu Protocolo Complementar para Prevenir, Suprimir e Punir o Tráfico de Pessoas, tal como a fortalecer o cumprimento das normas internacionais de Combate à Lavagem de Dinheiro e Combate ao Financiamento do Terrorismo, além de aumentar a capacidade de realizar investigações financeiras proativas, a fim de rastrear e interromper o tráfico de pessoas, identificando possíveis vínculos com o financiamento do terrorismo[96].
Quanto à necessidade de conscientização sobre o tráfico de pessoas, demanda que os Estados membros abordem o crime não somente em zonas afetadas por conflitos armados, mas a adotarem uma abordagem multidimensional, consistente na inclusão de informação sobre os riscos do tráfico de pessoas nas grades curriculares escolares e em programas de formação.
Ademais, incentiva os Estados - em especial aqueles de trânsito e de destino - que recebam pessoas deslocadas à força em razão de conflitos armados, a desenvolver e utilizar sistemas de alerta e de triagem de risco potencial ou iminente de tráfico de pessoas, com o intuito de detectar de forma proativa e eficaz vítimas e pessoas vulneráveis ao tráfico, com atenção especial às mulheres e crianças, especialmente àquelas desacompanhadas[97].
No âmbito específico do Iraque, levando-se em consideração sobretudo a precária infraestrutura disponibilizada pelo país atualmente, principalmente no que concerne à proteção de seus cidadãos e à prestação da devida assistência quando o governo falha em seu dever de segurança, a ONU, por meio de relatórios da UNAMI, especificamente os intitulados “A Call for Accountability and Protection: Yezidi Survivors of Atrocities Committed by ISIL”(Um pedido de prestação de contas e proteção: Sobreviventes yezidis de atrocidades cometidas pelo EIIL), de agosto de 2016, e “Promotion and Protection of Rights of Victims of Sexual Violence Captured by ISIL/or in Areas Controlled by ISIL in Iraq” (Promoção e Proteção dos Direitos das Vítimas de Violência Sexual Capturadas pelo EIIL/ou em Áreas Controladas pelo EIIL no Iraque), de agosto de 2017, a ONU expediu diversas recomendações ao Governo Iraquiano, tais como: tornar-se parte do Estatuto de Roma, que instituiu o Tribunal Penal Internacional, atribuindo o atual conflito armado no país à jurisdição da Corte; adotar estrutura legislativa que permita que Tribunais domésticos tenham jurisdição sobre crimes internacionais, para poderem processar ofensores de crimes mais sérios, tipificados como crimes de guerra, crimes contra a humanidade e genocídio[98], além de assegurar que as investigações e decisões sejam compartilhadas publicamente[99].
Rever e revogar leis penais e políticas existentes, de vigência nacional, que permitem a “honra” como uma excludente de ilicitude em crimes cometidos contra mulheres, crianças e outros membros familiares; instituir júri para julgar acusações de crimes devidamente documentados e graves violações de direitos humanos, perpetrados em conexão com conflitos armados existentes, a fim de dar suporte a persecuções de ofensores que possam vir a ser identificados, para que sejam submetidos à jurisdição do Estado; instituir programas de treinamento especializados para qualificar juízes, promotores e oficiais judiciários no que se refere à investigação de crimes cometidos com violência sexual e de gênero, à metodologia forense, ao entendimento pleno do direito internacional dos direitos humanos, do direito internacional humanitário, da lei penal, dos princípios do devido processo legal, do julgamento justo, das condições de detenção, bem como aos aspectos de gênero relacionados a procedimentos especializados ao lidar com vítimas crianças, a fim de evitar o fenômeno da revitimização[100].
Além disso, deve ser assegurado às mulheres suspeitas ou condenadas por colaborar com o EIIL, abrigamento e detenção de maneira consistente com seus direitos, evitando que suas famílias sejam estigmatizadas por suas condutas e punidas coletivamente.
O estabelecimento de uma rede de advogados e estudantes de direito, treinados para fornecer serviços jurídicos voluntários às vítimas de violência sexual e de gênero, além de uma rede de mulheres submetidas de alguma forma a abusos desta natureza, como uma forma de divulgar e facilitar o acesso de outras mulheres a serviços de assistência, também é de fundamental importância.
Providenciar treinamento para profissionais da medicina e da psicologia, professores, parteiras e voluntários no tocante aos direitos humanos e às necessidades especiais de mulheres e crianças vítimas de violência sexual, principalmente aquelas concebidas em razão de relações sexuais praticadas com militantes do EIIL[101].
Difundir campanhas públicas informativas a fim de aumentar a conscientização dos cidadãos sobre a disponibilidade e acessibilidade a serviços especializados para mulheres e crianças sobreviventes, incluindo de maneira inovadora, o estabelecimento de linhas telefônicas para consulta e suporte de serviços[102].
No tocante às crianças nascidas de mulheres em cativeiro, o governo deve unificar leis sobre adoção, interrupção segura de gravidez indesejada, registro de casamentos e nascimentos, de acordo com os padrões internacionais, assim como aumentar o número de cartórios de registro, principalmente em regiões em que não existem.
Ainda neste sentido, é de suma relevância que seja assegurado às crianças seus registros de nascimento de acordo com as qualificações de suas genitoras, a fim de evitar marginalização social, discriminação, independentemente do consentimento ou não da mulher quanto ao casamento. Ademais, deve ser terminantemente proibido registrar a religião de uma criança com base em suposições quanto à religião de seu genitor, bem como qualificar o genitor no documento de modo pejorativo, para evitar prejuízos à criança.
Quanto às valas comuns de Yezidis, o Estado deve mantê-las sob seu controle, para que seja possível a escavação, a devida exumação e identificação dos restos mortais e para preservar eventuais evidências de crimes, incluindo qualquer uma que possa identificar seus perpetrantes, e para fornecer às famílias informações mais precisas sobre seus familiares desaparecidos[103].
No âmbito internacional, a UNAMI recomendou que o Conselho de Segurança e o Conselho de Direitos Humanos continuem acompanhando de perto a situação no Iraque, exercendo pressão sobre o governo iraquiano, com o fito de responsabilizar perpetrantes de violações graves de direitos humanos e da lei internacional[104].
Dessa maneira, recomendou ainda que seus Estados membros, devem assegurar que os sujeitos autores de crimes internacionais cometidos no Iraque que estejam porventura em trânsito em seus territórios, sejam recolhidos pela competente autoridade judiciária criminal[105].
Não obstante, a comunidade internacional deve empreender todos os esforços para assegurar que sejam providenciados níveis apropriados de assistência médica e psicossocial às vítimas de violações de direitos humanos, considerando suas necessidades específicas, mediante consulta prévia às autoridades locais[106].
No tocante às pessoas deslocadas internamente, devem fornecer materiais e qualquer outro suporte necessário ao Governo do Iraque, a fim de que seja possível promover segurança e suprimentos humanitários de que os deslocados pelo conflito armado precisam, garantindo que esses indivíduos possam retornar aos seus locais de origem, em plena observância aos princípios humanitários[107].
Concernente às investigações de crimes e abusos de direitos humanos, a comunidade internacional junto aos Conselhos da ONU, deve garantir sua instauração de modo independente, rígido e imparcial, além de providenciar reparação às vítimas, na medida do possível, através de mecanismos de justiça alternativos e reconciliação comunitária[108].
Por fim, deve fornecer ao Governo do Iraque toda assistência técnica e financeira, para fomentar o esforço das autoridades nacionais a fim de identificar, escavar e investigar valas comuns de Yezidis e lugares onde tenham sido cometidos crimes[109].