Passados mais de trinta anos, promulgada em 5 de outubro de 1988, a Constituição da República Federativa do Brasil, dita como cidadã, repleta de direitos e garantias em seus mais de duzentos artigos (para alguns, excessivas benesses), após um período, mais que vintenário, mais impositivo (para não dizer ditatorial), continua em plena vigência, a despeito de já ter quase cem emendas (uma verdadeira colcha de retalhos), dispõe que a República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito (ainda que tenha as suas jabuticabas), possuindo como princípio fundamental, esculpido em seu art. 1º, a cidadania e o comando de que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente, nos termos da Lei maior[1].
No presente texto, interessa essa emanação de poder que é gerada por meio dos representantes eleitos, mais especificamente a escolha dos representantes. É uma das facetas mais importantes da Democracia, pois não se está diante de príncipes herdeiros vitalícios (apesar de se ter governantes vivendo em palácios e com mordomias nababescas), mas mandatários eleitos para gerir a coisa pública por determinado período (em que pese alguns políticos alcançarem décadas no poder, nos mais diversos cargos, o prazo mais comum é um mandato de quatro anos[2]). E é por meio das eleições, com regra de voto obrigatório para os maiores de dezoito anos de idade[3], que exerce-se a soberania popular e se escolhe quem comandará, em sentido amplo, e definir os rumos do Brasil em assuntos que afetam diretamente toda a população, como economia, direitos e deveres, gastos com infraestrutura, tamanho da estrutura estatal, relacionamento internacional etc.
Por ser um elemento importante, quiçá elementar, da Democracia e da Cidadania (afinal, somente é cidadão brasileiro na sua plenitude quem pode votar e ser votado), é de causar espanto o número de eleitores que não compareceram às urnas, independentemente dos motivos, tais como doença, residência em outro Estado ou país, voto facultativo, problemas no cadastramento da biometria etc. nas eleições de 2018. Mais de vinte por cento (!) dos eleitores não compareceram para exercer a sua cidadania no primeiro turno e mais de vinte e um por cento (!) no segundo turno, um viés, como dito, relevante da Democracia e consolidação da soberania popular[4]. A cada cinco eleitores, em resumo, um deixou de exercer o seu direito de votar.
Tal número é, deveras, elevado, além do número de votos nulos e brancos, que totalizaram, no primeiro e segundo turno das eleições de 2018, cerca de nove por cento[5]. No total, entre ausentes, brancos e nulos, chega-se ao número aproximado de vinte e nove por cento de eleitores que, por diversos motivos, não participaram ativamente da escolha dos políticos que gerirão a sociedade brasileira por quatro anos (os senadores, dois terços do senado federal neste escrutínio, têm um mandato maior, de oito anos, o que aumenta a responsabilidade, e porque não dizer culpa, do eleitor que não participou ativamente da Democracia[6]).
Esse número significativo, se participasse ativamente, poderia alterar substancialmente a definição dos políticos do Brasil, seja para eleger ou afastar do mandato eleitoral, para os próximos quatro anos. A abstenção é, portanto, uma falta grave que poderá afetar, positivamente ou negativamente, os rumos da política brasileira. Tal cidadão que não exerceu o seu direito de escolher seus representantes, ou, ao menos, de tentar eleger aqueles que mais estariam em sintonia com as suas pretensões para o futuro, não poderá, depois, reclamar que a economia está em recessão ou hiperinflação, tampouco que perdeu direitos trabalhistas ou previdenciários por conta da estratégia adotada pelo governo, este entendido aqui como o Poder Legislativo e Executivo, com apoio, ou resistência, do Poder Judiciário.
A abstenção de eleitores no primeiro turno das eleições foi de tal magnitude que ocasionou, para o bem ou para o mal, a necessidade de se realizar um segundo turno para definir quem será o Presidente do Brasil pelos próximos quatro anos (em alguns Estados, também será necessário segundo turno para definir o Governador), se não houver um impeachment antes. Qualquer um dos candidatos que se enfrentaram no segundo turno, caso tivesse havido uma votação ativa dos faltantes (ausentes, brancos e nulos) poderia ter sido eleito em primeiro turno sem a necessidade de novo escrutínio. De igual forma, se todos participassem ativamente das eleições, no primeiro e segundo turno, o resultado final poderia ter sido diferente.
É certo que a política brasileira não é a ideal (em verdade, está longe de ser e é, infelizmente, vergonhosa), nem os políticos e partidos correlatos que buscam ou representam (deveriam representar) o povo brasileiro. Seria maravilhoso o eleitor poder defender, por exemplo, uma linha mais conservadora ou progressista, ou liberal ou estadista, com a certeza de que os seus representantes estariam empenhados em cumprir um plano de governo bem definido e voltado para o bem-estar da população em geral, sem corrupção ou busca de privilégios particulares. Infelizmente, o voto, na maioria das vezes, é dado com o objetivo de minimizar efeitos colaterais. Nenhum partido ou candidato é perfeito e imaculado.
Tal cenário não é novo no Brasil, lamentavelmente, pois desde 1917 já expunha Ruy Barbosa a diferença entre a política e a politicalha, sendo a primeira tida pelo grande pensador e jurista como “a arte de gerir o Estado, segundo princípios definidos, regras morais, leis escritas, ou tradições respeitáveis”. Já a segunda, a chaga da política, “é a indústria de explorar o benefício de interesses pessoais”. Para o grande jurista baiano “política e politicalha não se confundem, não se parecem, não se relacionam uma com a outra. Antes se negam, se excluem, se repulsam mutuamente”.
Com efeito, o que se vê atualmente no Brasil não é política, mas, sim, como diria Ruy Barbosa, politicalha. Qualquer que seja a sua linha política, a representação democrática atualmente (e desde 1917) não está adequada, perfeita e acabada.
Em todo caso, apesar dos problemas no sistema político brasileiro, a solução já se encontra escrita na Lei maior, que é por meio do exercício legítimo da soberania popular, por meio do voto universal, em escrutínio direto, secreto e com peso igual para todos, nos termos do art. 14, caput, da Constituição Federal.
Por isso, se o povo brasileiro quiser fugir da politicalha e caminhar para a verdadeira política deverá exercer ativamente o seu direito de votar e mudar, doravante, o cenário de abstenção. Ainda que não haja candidatos perfeitos, a cada eleição, a cada mandato, é possível tentar outra vez, como diria o saudoso poeta músico baiano Raul Seixas, pois “basta ser sincero e desejar profundo, você será capaz de sacudir o mundo. Vai! Tente outra vez!”.
Desse modo, cabe ao eleitor deixar de se abster e votar, qualquer que seja a sua convicção política (eis que a Constituição Federal lhe garante esta liberdade[7]), com o objetivo de participar da soberania popular e, quem sabe, viabilizar que o Brasil abandone a politicalha e comece a ser gerido pela política, em prol de um país, sem demagogia, melhor para todos.
Não obstante a tais considerações, fato é que a Democracia e a Cidadania também acolhem a possibilidade de abstenção, a despeito disto ser nocivo para o pleito, seja por meio da falta, do voto nulo ou branco. No final das contas, a Democracia e a Cidadania se fizeram presentes nas eleições 2018, ainda que a sua escolha política não tenha prevalecido, pois todos os cidadãos tiveram a possibilidade de votar e houve a eleição dos políticos que receberam a maioria dos votos válidos.
[1] Art. 1º da CF/88: A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (...) II - a cidadania (...) Parágrafo único. Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.
[2] Art. 82. da CF/88: O mandato do Presidente da República é de quatro anos e terá início em primeiro de janeiro do ano seguinte ao da sua eleição.
[3] Art. 14 da CF/88: Art. 14. A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos (...) § 1º O alistamento eleitoral e o voto são: I - obrigatórios para os maiores de dezoito anos; (...)
[4] Fonte: TSE.
[5] Fonte: TSE.
[6] Art. 46. da CF/88: O Senado Federal compõe-se de representantes dos Estados e do Distrito Federal, eleitos segundo o princípio majoritário. § 1º Cada Estado e o Distrito Federal elegerão três Senadores, com mandato de oito anos. § 2º A representação de cada Estado e do Distrito Federal será renovada de quatro em quatro anos, alternadamente, por um e dois terços. § 3º Cada Senador será eleito com dois suplentes.
[7] Art. 5º da CF/88: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei.