Em decisão recente, histórica no Brasil, o Egrégio Supremo Tribunal Federal conheceu do Habeas Corpus Coletivo nº 143.641-SP, para conceder prisão domiciliar a mulheres condenadas por tráfico de drogas, que sejam mães de crianças ou que estejam na condição de gestante.
Segundo levantamentos do Departamento Penitenciário Nacional - DEPEN, a decisão deve beneficiar perto de 14.750 mulheres em todo o país.
Sabe-se que a Lei de Execução Penal, em seu artigo 82, § 1º, com nova redação determinada pela Lei nº 9.460, de 1997, determinada cogentemente que a mulher e o maior de sessenta anos, separadamente, serão recolhidos a estabelecimento próprio e adequado à sua condição pessoal.
Por sua vez, a Lei nº 11.942, de 2009, modificou a Lei de Execução Penal, e em no artigo 83, definiu que os estabelecimentos penais destinados a mulheres serão dotados de berçário, onde as condenadas possam cuidar de seus filhos, inclusive amamentá-los, no mínimo, até 6 (seis) meses de idade.
Em seguida, foi publicada a Lei nº 12.121, de 2009, que previu a necessidade de os estabelecimentos penais de assistência a mulheres deverão possuir, exclusivamente, agentes do sexo feminino na segurança de suas dependências internas.
DA PRISÃO DOMICILIAR NO BRASIL
A Lei de Execução Penal, nº 7.210/84, sempre tratou a prisão domiciliar, em seu artigo 117, em sede de execução penal, segundo o qual somente se admitirá o recolhimento do beneficiário de regime aberto em residência particular quando se tratar de:
I - condenado maior de 70 (setenta) anos;
II - condenado acometido de doença grave;
III - condenada com filho menor ou deficiente físico ou mental;
IV - condenada gestante.
Todavia, a Lei nº 9.605, de 1998, que trata dos crimes ambientais, em seu artigo 8º, definiu o recolhimento domiciliar como modalidade de penas restritivas de direito.
O PROCESSO PENAL E A PRISÃO DOMICILIAR
A reforma processual introduzida pela Lei nº 12.403, de 2011, em seu artigo 317 conceituou prisão domiciliar como sendo aquela consistente no recolhimento do indiciado ou acusado em sua residência, só podendo dela ausentar-se com autorização judicial. O mesmo comando normativo, agora no artigo 318, previu que poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for:
I - maior de 80 (oitenta) anos;
II - extremamente debilitado por motivo de doença grave;
III - imprescindível aos cuidados especiais de pessoa menor de 6 (seis) anos de idade ou com deficiência.
Por meio da Lei nº 13.257, de 2016, o Código de Processo Penal, artigo 318, ampliou o rol de direitos à concessão de substituição da prisão preventiva para domiciliar a gestante, mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos e homem, caso seja o único responsável pelos cuidados do filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos, sendo necessário para a substituição, que o juiz exija prova idônea dos requisitos estabelecidos no artigo em apreço.
Ainda na referida reforma processual, o artigo 319 do CPP elenca nove medidas cautelares diversas da prisão, dentre elas o recolhimento domiciliar no período noturno e nos dias de folga quando o investigado ou acusado tenha residência e trabalho fixos.
A SÚMULA VINCULANTE Nº 56 E A PRISÃO DOMICILIAR
Segundo dicção da Súmula Vinculante nº 56, "A falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso, devendo-se observar, nessa hipótese, os parâmetros fixados no RE 641.320/RS".
Assim, importante ressaltar em síntese os dizeres do citado Recurso Extraordinário:
"(...) Cumprimento de pena em regime fechado, na hipótese de inexistir vaga em estabelecimento adequado a seu regime. Violação aos princípios da individualização da pena (art. 5º, XLVI) e da legalidade (art. 5º, XXXIX). A falta de estabelecimento penal adequado não autoriza a manutenção do condenado em regime prisional mais gravoso. 3. Os juízes da execução penal poderão avaliar os estabelecimentos destinados aos regimes semiaberto e aberto, para qualificação como adequados a tais regimes. São aceitáveis estabelecimentos que não se qualifiquem como “colônia agrícola, industrial” (regime semiaberto) ou “casa de albergado ou estabelecimento adequado” (regime aberto) (art. 33, § 1º, b e c). No entanto, não deverá haver alojamento conjunto de presos dos regimes semiaberto e aberto com presos do regime fechado. 4. Havendo déficit de vagas, deverão ser determinados: (i) a saída antecipada de sentenciado no regime com falta de vagas; (ii) a liberdade eletronicamente monitorada ao sentenciado que sai antecipadamente ou é posto em prisão domiciliar por falta de vagas; (iii) o cumprimento de penas restritivas de direito e/ou estudo ao sentenciado que progride ao regime aberto. Até que sejam estruturadas as medidas alternativas propostas, poderá ser deferida a prisão domiciliar ao sentenciado(...)".
( RE nº 641.320, rel. min. Gilmar Mendes, P, j. 11-5-2016, DJE 159 de 1º-8-2016, Tema 423)
A DECISÃO DO STF NO HABEAS CORPUS COLETIVO Nº 143.641-SP
O referido Habeas Corpus coletivo foi impetrado por membros do Coletivo de Advogados em Direitos Humanos, com pedido de medida liminar, em favor de todas as mulheres presas preventivamente que ostentem a condição de gestantes, de puérperas ou de mães de crianças sob sua responsabilidade, bem como em nome das próprias crianças.
Em síntese, afirmaram que a prisão preventiva, ao confinar mulheres grávidas em estabelecimentos prisionais precários, subtraindo-lhes o acesso a programas de saúde pré-natal, assistência regular na gestação e no pós-parto, e ainda privando as crianças de condições adequadas ao seu desenvolvimento, constitui tratamento desumano, cruel e degradante, que infringe os postulados constitucionais relacionados à individualização da pena, à vedação de penas cruéis e, ainda, ao respeito à integridade física e moral da presa.
Enfatizaram o cabimento de habeas corpus coletivo na defesa da liberdade de locomoção de determinados grupos de pessoas, com fulcro na garantia de acesso à Justiça, e considerado o caráter sistemático de práticas que resultam em violação maciça de direitos.
Invocaram ainda a dicção do art. 25, I, da Convenção Americana de Direitos Humanos, que garante o direito a um instrumento processual simples, rápido e efetivo, apto a tutelar direitos fundamentais lesionados ou ameaçados.
Artigo 25 - Proteção judicial
1. Toda pessoa tem direito a um recurso simples e rápido ou a qualquer outro recurso efetivo, perante os juízes ou tribunais competentes, que a proteja contra atos que violem seus direitos fundamentais reconhecidos pela Constituição, pela lei ou pela presente Convenção, mesmo quando tal violação seja cometida por pessoas que estejam atuando no exercício de suas funções oficiais.
2. Os Estados-partes comprometem-se:
a) a assegurar que a autoridade competente prevista pelo sistema legal do Estado decida sobre os direitos de toda pessoa que interpuser tal recurso;
b) a desenvolver as possibilidades de recurso judicial; e
c) a assegurar o cumprimento, pelas autoridades competentes, de toda decisão em que se tenha considerado procedente o recurso.
Salientaram o caráter sistemático das violações, no âmbito da prisão cautelar a que estão sujeitas gestantes e mães de crianças, em razão de falhas estruturais de acesso à Justiça, consubstanciadas em obstáculos econômicos, sociais e culturais.
Aduziram que a competência para julgamento do feito é do Supremo Tribunal Federal, tanto pela abrangência do pedido quanto pelo fato de o Superior Tribunal de Justiça figurar entre as autoridades coatoras.
Frisaram que os estabelecimentos prisionais não são preparados de forma adequada para atender à mulher presa, especialmente a gestante e a que é mãe.
Relataram que, com a entrada em vigor da Lei nº 13.257/2016, a qual alterou o Código de Processo Penal para possibilitar a substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar para gestantes e mães de crianças, o Poder Judiciário vem sendo provocado a decidir sobre a substituição daquela prisão por esta outra, nos casos especificados pela Lei, porém, em aproximadamente metade dos casos, o pedido foi indeferido.
Informaram que as razões para o indeferimento estariam relacionados à gravidade do delito supostamente praticado pelas detidas e também à necessidade de prova da inadequação do ambiente carcerário no caso concreto.
Aduziram que esses argumentos não têm consistência, uma vez que a gravidade do crime não pode ser, por si só, motivo para manutenção da prisão, e que, além disso, o Supremo Tribunal Federal já reconheceu o estado de coisas inconstitucional do sistema prisional brasileiro.
Estes foram praticados os fundamentos de fato e de direito invocados pelos impetrantes do Habeas Corpus coletivo.
DA DECISÃO
O Ministro Ricardo Lewandowski logo analisou o cabimento do habeas corpus coletivo, aduzindo:
" Com maior razão, penso eu, deve-se autorizar o emprego do presente writ coletivo, dado o fato de que se trata de um instrumento que se presta a salvaguardar um dos bens mais preciosos do homem, que é a liberdade. Com isso, ademais, estar-se-á honrando a venerável tradição jurídica pátria, consubstanciada na doutrina brasileira do habeas corpus, a qual confere a maior amplitude possível ao remédio heroico, e que encontrou em Ruy Barbosa quiçá o seu maior defensor. Segundo essa doutrina, se existe um direito fundamental violado, há de existir no ordenamento jurídico um remédio processual à altura da lesão. À toda a evidência, quando o bem jurídico ofendido é o direto de ir e vir, quer pessoal, quer de um grupo pessoas determinado, o instrumento processual para resgatá-lo é o habeas corpus individual ou coletivo. É que, na sociedade contemporânea, burocratizada e massificada, as lesões a direitos, cada vez mais, assumem um caráter coletivo, sendo conveniente, inclusive por razões de política judiciária, disponibilizar-se um remédio expedito e efetivo para a proteção dos segmentos por elas atingidos, usualmente desprovidos de mecanismos de defesa céleres e adequados".
Finalmente, o Ministro Ricardo Lewandowski assim concluiu:
" Em face de todo o exposto, concedo a ordem para determinar a substituição da prisão preventiva pela domiciliar - sem prejuízo da aplicação concomitante das medidas alternativas previstas no art. 319 do CPP - de todas as mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e deficientes, nos termos do art. 2º do ECA e da Convenção sobre Direitos das Pessoas com Deficiências (Decreto Legislativo 186/2008 e Lei 13.146/2015), relacionadas neste processo pelo DEPEN e outras autoridades estaduais, enquanto perdurar tal condição, excetuados os casos de crimes praticados por elas mediante violência ou grave ameaça, contra seus descendentes ou, ainda, em situações excepcionalíssimas, as quais deverão ser devidamente fundamentadas pelo juízes que denegarem o benefício. Estendo a ordem, de ofício, às demais as mulheres presas, gestantes, puérperas ou mães de crianças e de pessoas com deficiência, bem assim às adolescentes sujeitas a medidas socioeducativas em idêntica situação no território nacional, observadas as restrições previstas no parágrafo acima. Quando a detida for tecnicamente reincidente, o juiz deverá proceder em atenção às circunstâncias do caso concreto, mas sempre tendo por norte os princípios e as regras acima enunciadas, observando, ademais, a diretriz de excepcionalidade da prisão. Se o juiz entender que a prisão domiciliar se mostra inviável ou inadequada em determinadas situações, poderá substituí-la por medidas alternativas arroladas no já mencionado art. 319 do CPP".
DA FISCALIZAÇÃO DA PRISÃO DOMICILIAR
A medida de recolhimento domiciliar é bastante criticada na doutrina por questão de quem faria a fiscalização. O Código de Processo Penal apenas se limitou a conceituar prisão domiciliar no artigo 317 como sendo aquela consistente no recolhimento do indiciado ou acusado em sua residência, só podendo dela ausentar-se com autorização judicial.
Mas de quem seria a atribuição de fazer a fiscalização? Quem visitaria o preso numa atividade de fiscalização na residência dele? Seriam servidores da justiça, da polícia ou do sistema prisional?
Primeiro a lei não determina quais seriam as condições objetivas para concessão da prisão domiciliar. Há quem determine que o horário de recolhimento domiciliar seria entre as 21 horas e 05 horas, que o preso deve trabalhar durante o dia e comprovar suas ocupações lícitas habituais. Acontece que o beneficiário da medida, por exemplo acima de 80 anos de idade, talvez não tivesse condições de trabalho e a mãe com filho menor de 12 anos também não teria condições de trabalhar fora de casa.
E a prisão domiciliar, na maioria das vezes acontece justamente em face de uma necessidade maior do beneficiário de cuidar ou de uma criança ou com pessoa que requer também cuidados especiais.
A PRISÃO EM FLAGRANTE E O PRINCÍPIO DA HOMOGENEIDADE DA PRISÃO CAUTELAR
Estando de plantão numa Unidade Policial, a autoridade policial recebe presa por tráfico de drogas uma mulher grávida e ainda mãe de uma criança de 05 anos.
Autuada em flagrante, nos termos do artigo 33 da Lei nº 11.343/2006, considera-se, uma medida extrema de conversão da prisão em flagrante em prisão preventiva na audiência de custódia.
Diante da decisão do STF, HC nº 143.641-SP, sabe-se que a prisão preventiva inevitavelmente será substituída por prisão domiciliar, em especial, por conta dos requisitos objetivos cumulativos - mulher grávida e mãe de uma criança de 05 anos de idade. A decisão do STF alcança inclusive a condenação em 2ª Instância.
Sabe-se que a Lei nº 12.830, de 20 de junho de 2013, em seu artigo 2º, prevê que as funções de polícia judiciária e a apuração de infrações penais exercidas pelo delegado de polícia são de natureza jurídica, essenciais e exclusivas de Estado.
Ao delegado de polícia, na qualidade de autoridade policial, cabe a condução da investigação criminal por meio de inquérito policial ou outro procedimento previsto em lei, que tem como objetivo a apuração das circunstâncias, da materialidade e da autoria das infrações penais.
Em Minas Gerais, Terra da liberdade e dos ideais republicanos, a Lei Complementar nº 129, de 08 de novembro de 20013, em seu artigo 10, inciso I, compreende que cabe a polícia judiciária, dentre outras funções, o exame preliminar a respeito da tipicidade penal, ilicitude, culpabilidade, punibilidade e demais circunstâncias relacionadas à infração penal.
Como se percebe, o delegado de polícia não é um mero instrumento de realização do direito, estático, frio e insensível, sendo corpo e alma da Justiça na promoção dos direitos sociais e preservação do Estado Democrático de Direito. O Delegado de polícia está para a Justiça como o oxigênio para vida.
É sabido que a desproporção de se decretar a prisão preventiva nos casos em que, segundo a pena a ser provavelmente aplicada, o acusado não será punido com pena privativa de liberdade deve ser objeto de exame desde a fase persecutória, sendo que de forma bem simplista poderia afirmar que se não se vai prender ao final, ou se este final pode demorar décadas, não se pode prender durante o processo.
Neste caso hipotético, a mulher lactante, grávida ou mãe de uma criança de 05 anos, presa por tráfico de drogas, primária, podendo ser sua medida cautelar substituída por recolhimento domiciliar, até a sentença de 2º grau, inevitavelmente, será beneficiada com a prisão domiciliar, e a meu sentir, poderá o Delegado de Polícia, a teor do artigo 318, parágrafo único do Código de Processo Penal, imediatamente colocar a mulher em liberdade, após a sua autuação, deixando de ratificar a voz de prisão, fazendo a comunicação ao juiz de direito e prosseguindo com as investigações em sede de Inquérito Policial, considerando que deve haver todos os instrumentos legais para proteger e salvaguardar um dos bens mais preciosos do homem, que é a sua liberdade, neste caso, dupla liberdade, a da mãe e da criança prestes a nascer ou do filho menor de 12 anos de idade.
A prisão preventiva, do ponto de vista teleológico, não é vista e nem compreendida como pena antecipada, mas o mal real causado por ela deve guardar homogeneidade com a decisão final, portanto, parecido ou semelhante, quanto aos efeitos realmente produzidos, aos da pena.
A prisão preventiva, aqui neste caso hipotético, de uma acusada lactante, gestante, ou mãe de um filho de 05 anos, após o entendimento do HC nº 143.641-SP, não pode extrapolar os limites da proporcionalidade, sendo certo que a acusada não deve pagar um preço que ela provavelmente somente seria chamada a pagar décadas depois do fato, em função de uma Justiça morosa e imprevisível, podendo, neste caso, salvo melhor juízo, o delegado de polícia, primeiro defensor das liberdades públicas, fazer valer a tutela dos interesses transcendentais das mulheres.