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O abate de criminosos portando fuzis e a legítima defesa

05/11/2018 às 13:30
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O autor, profissional de segurança pública, faz uma análise sobre o tiro de comprometimento em criminosos portando fuzis em ambientes urbanos considerados hostis.

Recentemente repercutiu na imprensa brasileira uma matéria jornalística em que o governador eleito do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, afirmou que pretende treinar atiradores de elite para abater criminosos ostensivamente armados nas favelas cariocas.

Obviamente o respeitado ex-militar, defensor público e magistrado federal, foi alvo de um sem número de críticas, pois muitos jornalistas e ditos especialistas passaram a defender que tal atitude, pouco ortodoxa em nosso meio, equivaleria a um homicídio injustificado. Em sua defesa, Witzel alegou que tal cenário relevaria uma ameaça constante, haja vista que o criminoso armado com um fuzil representaria perigo iminente a sociedade, pois o artefato o faz apto a injustamente atacar, a qualquer momento, o Estado e seus representantes.

Os críticos da medida propalam que ela seria incompatível com a lei brasileira, por ferir normas constitucionais individuais, o princípio da proporcionalidade e estar apartada do espírito previsto no art. 25 do Código Penal, o qual considera legítima defesa o uso moderado dos meios necessários para repelir uma injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem. Mas para o novo governador a lei foi feita para ser interpretada e, num julgamento, a tese esposada tenderia a beneficiar o policial, o qual seria investigado, mas, a rigor, não condenado.

A questão é deveras polêmica e, no mundo do Direito, entendemos existir campo para o debate, a fim de chegarmos a uma solução razoável e juridicamente aceitável que proteja, acima de tudo, o conglomerado social em detrimento de quem é nocivo ao meio.

Vejamos, pois, o cenário em si. Um criminoso é flagrado pela Polícia, pela luneta de um rifle de precisão, portando um fuzil na via pública. Pela vertente defendida, isso por si só já configuraria uma ameaça, legitimando o chamado tiro de comprometimento[1], o qual se constitui, a rigor, num único disparo que objetiva a incapacitação imediata do elemento, e que corresponde, na prática, com a sua morte instantânea. Embora comumente letal, o tiro também pode ser seletivo[2], i.e., quando dado não no agressor, mas no instrumento que o mesmo usa para causar a ameaça. E se for de contenção[3], consistiria no ataque a pontos em princípio não vitais, mas que visam impedir a continuidade do intento. Esse tiro busca a denominada incapacitação mecânica (de deslocamento), e que são dados em áreas do corpo onde o risco de morte é menor. Embora teoricamente possíveis, estes dois últimos tiros são de pouca aplicabilidade operacional, dada a imprevisibilidade dos seus resultados, ao contrário do primeiro, que é cirúrgico.

A questão é, diante desse quadro, o atirador poderia efetuar o disparo? Se sim, ele seria criminalmente responsabilizado?

Num primeiro momento, cumpre analisarmos o contexto. Quando a lei fala em agressão iminente, ela está se referindo aquela ação que pode acontecer num momento muito próximo; que está prestes a ocorrer ou que pode se realizar a qualquer instante. Num raciocínio rápido, a equação seria a seguinte: um sujeito carregando ostensivamente um fuzil de assalto o faz para simplesmente exibir-se ou para dar mostras de que, a qualquer momento, está apto a executar uma agressão grave e injusta? Se o executor optar pela segunda hipótese, que não é ilógica, o tiro poderá ser dado. O meio necessário será legítimo (“fuzil do policial” versus “fuzil do marginal”), e a moderação residirá no único disparo, suficiente para a incapacitação imediata. Teríamos, assim, um tipo híbrido de legítima defesa preventiva (ou assemelhada a antecipada), a qual se fundamenta no fato do operador se antecipar a um ataque vindouro e sabidamente possível e concreto do agressor. A iminência da agressão, nesse caso, encontra-se numa linha de tempo certa e, diante do princípio da defesa social, legitimada estaria a cessação do estado potencialmente agressivo do criminoso, dada a inexigibilidade de conduta diversa por parte do operador. Assim, se considerarmos um oponente com uma arma de guerra num terreno hostil (área dominada pelo tráfico) como uma ameaça iminente ou existente, a tese da legítima defesa, na sua modalidade preventiva, poderia, sim, ser abarcada e discutida em sede de investigação/juízo.

Com relação a responsabilização do policial, é certo que qualquer morte em confronto será objeto de inquérito policial pela Polícia Civil. Entretanto, se a excludente em estudo for reconhecida, será ele sumariamente absolvido nos termos do art. 397 do Código de Processo Penal. Não há que se falar em “prisão” de agentes públicos que cumprem ordem superior não manifestamente ilegal, posto ser ela produto de exegese da norma e, portanto, a princípio legítima e isenta de elemento subjetivo negativo (sem a intenção de defesa social).

Em referência a possível alegação do abate de inocentes com “guarda-chuvas” ou “furadeiras”, é certo que o tiro de comprometimento é dado por um policial previamente habilitado para tanto – o chamado “atirador de elite” –, usando uma arma apropriada ao cenário – um fuzil de precisão customizado com luneta de aumento e bipé – o qual permite a perfeita visualização do cenário e a consequente identificação do objeto agressor, fulminando, assim, quaisquer riscos de erros. Casos pretéritos relatados pela crônica policial – e também pela mídia – não foram levados a efeito por atiradores de precisão habilitados, cuja possibilidade de erro numa área corporal pré-escolhida é, asseguramos, praticamente nula.

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Importante ressaltarmos que, conquanto a lei brasileira não vede expressamente a interpretação sob estudo, tramita no Senado o projeto de lei n° 352/17, o qual passa a prever, agora de forma clara, a chamada “legítima defesa presumida” quando o agente de segurança pública mata ou lesiona quem porta ilegal e ostensivamente arma de fogo de uso restrito.

Enfim, o tema é polêmico e aberto a discussões e, se levado a estudo livre de paixões, pode gerar debates sadios em prol do interesse da sociedade e, principalmente, da segurança pública brasileira.


Notas

[1] https://jus.com.br/artigos/62640/o-tiro-defensivo-e-o-tiro-de-advertencia-no-contexto-do-uso-progressivo-da-forca-e-da-preservacao-da-vida.

[2] https://jus.com.br/artigos/62640/o-tiro-defensivo-e-o-tiro-de-advertencia-no-contexto-do-uso-progressivo-da-forca-e-da-preservacao-da-vida.

[3] https://jus.com.br/artigos/62640/o-tiro-defensivo-e-o-tiro-de-advertencia-no-contexto-do-uso-progressivo-da-forca-e-da-preservacao-da-vida.

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Sobre o autor
Marcelo de Lima Lessa

Formado em Direito pela Faculdade Católica de Direito de Santos (1994). Delegado de Polícia no Estado de São Paulo (1996), professor concursado de “Gerenciamento de Crises” da Academia de Polícia “Dr. Coriolano Nogueira Cobra”. Ex-Escrivão de Polícia. Articulista nas áreas jurídica e de segurança pública. Graduado em "Criminal Intelligence" pelo corpo de instrução do Miami Dade Police Department, em "High Risk Police Patrol", pela Tactical Explosive Entry School, em "Controle e Resolução de Conflitos e Situações de Crise com Reféns" pelo Ministério da Justiça, em "Gerenciamento de Crises e Negociação de Reféns" pelo grupo de respostas a incidentes críticos do FBI - Federal Bureau of Investigation e em "Gerenciamento de Crises", "Uso Diferenciado da Força", "Técnicas e Tecnologias Não Letais de Atuação Policial" e "Aspectos Jurídicos da Abordagem Policial", pela Secretaria Nacional de Segurança Pública. Atuou no Grupo de Operações Especiais - GOE, no Grupo Especial de Resgate - GER e no Grupo Armado de Repressão a Roubos - GARRA, todos da Polícia Civil do Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LESSA, Marcelo Lima. O abate de criminosos portando fuzis e a legítima defesa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5605, 5 nov. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/70036. Acesso em: 19 mar. 2024.

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