3. INELEGIBILIDADES E DIREITOS POLÍTICOS
O conceito de inelegibilidade é intrínseco ao direito eleitoral, razão pela qual abordaremos os dois temas concomitantemente neste estudo. De plano, inevitável o mergulho na seara constitucional, pois nossa Carta Magna é a principal fonte normativa do Direito Eleitoral. No estado democrático de direito vigente, a cidadania é um dos sustentáculos do nosso sistema e essencial para o deslinde do problema deste trabalho.
O conceito de cidadania se confunde com o de direitos políticos. Ambos estão relacionados ao conjunto de prerrogativasinerentes ao cidadão para permitir o exercício de cargos públicos, votar e ser votado, ter efetiva participação nos governos em suas três esferas, municipal, estadual e federal, se valendo de instrumentos legais e constitucionais[20], como a ação popular e a iniciativa popular. São meios quer garantem o exercício da soberania popular.
São características do voto no Brasil, o fato de ser direto, secreto, universal, periódico, livre, personalíssimo e com valor igual para todos[21]. É obrigatório para os maiores de 18 anos (artigo 14, § 1º, I da CFRB) e menores de 70 anos, sendo facultativo aos maiores de 16 e menores de 18 anos (artigo 14, § 1º, II, “c” da CFRB), analfabetos (artigo 14, § 1º, II, “a” da CFRB) e maiores de 70 anos (artigo 14, § 1º, II, “b” da CFRB)[22]. Entre as condições de elegibilidade estão a nacionalidade brasileira, pleno exercício dos direitos políticos, alistamento eleitoral, domicílio eleitoral na circunscrição, filiação partidária e idade mínima de acordo com o cargo ao qual se pleiteia a candidatura, todos listados no artigo 14, § 3º, I a V, da Constituição.
Importante distinguir também as inelegibilidades em absolutas e relativas. Naquelas, o impedimento é total em relação a qualquer cargo eletivo e encaixam nesta situação os estrangeiros, os conscritos (durante o período militar obrigatório) e os analfabetos (que podem se alistar e votar, mas não possuem capacidade eleitoral passiva), enquanto nestas, o impedimento ocorre para determinados cargos, restringindo em determinadas situações, seja em decorrência da função, idade mínima, parentesco, militar ou outras previstas em lei complementar[23]. A Constituição prevê ainda no § 9º do artigo 14, que outros casos de inelegibilidade serão definidos por lei complementar, tendo como base o primado da moralidade no exercício de cargo público e valoração da probidade administrativa. E assim surgiu a Lei Complementar 64/90, de 18 de maio de 1990, estabelecendo várias hipóteses de inelegibilidades, ou seja, a perda da capacidade eleitoral passiva.
3.1 INELEGIBILIDADES CONSTITUCIONAIS E INFRACONSTITUCIONAIS
Já vimos neste estudo que a Carta Magna estabeleceu, em seu artigo 14, os requisitos a serem preenchidos pelos brasileiros que pretendem figurar como sujeitos passivos numa eleição, como cumprimento de idade mínima para determinados cargos, filiação partidária, alistamento eleitoral, pleno exercício dos direitos políticos e domicílio eleitoral na circunscrição, entre outros. Não se trata de rol exauriente, conforme a previsão do § 9º:
Lei Complementar estabelecerá outros casos de inelegibilidade e os prazos de sua cessação, a fim de proteger a probidade administrativa, a moralidade para o exercício do mandato, considerada a vida pregressa do candidato, e a normalidade e legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico ou o abuso do exercício de função, cargo ou emprego na administração direta ou indireta.
Diferenciação deve ser feita entre elegibilidade e condições de elegibilidade. Naquela, verifica-se o direito potestativo de postular um cargo eletivo, a vontade subjetiva do agente, enquanto nesta verifica-se o requisito positivo exigido pela ordem jurídica e que deve ser preenchido para que o cidadão possa exercer o seu direito de candidatar para concorrer a um cargo eletivo[24].
A LC Complementar 135/2010, apelidada de Lei da Ficha Limpa, foi fruto de forte anseio popular e mobilização, tendo como primado a moralidade administrativa e do comportamento ético dos responsáveis pelos bens e dinheiros públicos. O Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) mobilizou a sociedade brasileira e angariou 1.604.815 apoiadores, que subscreveram o projeto de iniciativa popular encaminhado ao Congresso Nacional, nos termos do art. 61 da CFRB/88. Após a tramitação nas duas Casas Legislativas, foi sancionada em 04 de junho de 2010[25]. A nova legislação alterou várias disposições da LC 64/90, principalmente no tocante a rejeição de contas, ampliando o prazo de inelegibilidadede cinco para oito anos.
Na redação original, do inciso I do art. 1º, alínea “g” da LC 64/90:
Art. 1º São inelegíveis:
I – para qualquer cargo:
g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se a questão houver sido ou estiver sendo submetida à apreciação do Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 5 (cinco) anos seguintes, contados a partir da data da decisão;
E agora a modificação introduzida pela LC 135/2010:
Art. 1º São inelegíveis:
I – para qualquer cargo:
g) os que tiverem suas contas relativas ao exercício de cargos ou funções públicas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa, e por decisão irrecorrível do órgão competente, salvo se esta houver sido suspensa ou anulada pelo Poder Judiciário, para as eleições que se realizarem nos 8 (oito) anos seguintes, contados a partir da data da decisão, aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesa, sem exclusão de mandatários que houverem agido nessa condição;
Além da ampliação do lapso temporal, conforme verificado acima, a Lei da Ficha Limpa introduziu uma série de inelegibilidades, trazendo um elenco com 14 hipóteses que podem afastar um candidato do sufrágio popular.Nesse prisma, a alínea “g” é apontada como de maior incidência para regramento da inelegibilidade por rejeição de contas. Entre as alterações, passou-se a exigir que a irregularidade que motivou a rejeição das contas configure ato doloso de improbidade administrativa. Nessa interpretação, os atos que causem lesão ao erário praticados, de forma culposa, não terão o condão de gerar a inelegibilidade prevista[26], incluindo aqueles que importem em enriquecimento ilícito, lesão ao erário ou que atentem contra os princípios da administração pública. Será observado aqui o caráter subjetivo do agente, se este agiu com intenção (dolo) de praticar a conduta improba.
3.2 O ADVENTO DA LEI DA FICHA LIMPA
A entrada em vigência da Lei Complementar 135/2010, a Lei da Ficha Limpa, que desconstruiu toda a interpretação constitucional consolidada nos tribunais, para reconhecer autoridade nas decisões dos tribunais de contas que julgam as contas de chefes do Poder Executivo[27]. Como já exposto, a parte final da alínea “g” do inciso I do art. 1º da LC 135/2010 traz o seguinte comando: “Aplicando-se o disposto no inciso II do art. 71 da Constituição Federal, a todos os ordenadores de despesas, sem exclusão de mandatários que houverem agido nesta condição.”
Em suma, a nova legislação deu competência aos Tribunais de Contas para confirmar a inelegibilidade dos chefes de executivo que tiveram suas contas rejeitadas por irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa. A medida foi alvo de vários questionamentos acerca de sua constitucionalidade no STF, pois como se trata de lei complementar, logo é de natureza infraconstitucional e, portanto, em conflito direto hierárquico com a previsão da CFRB/88, em seu artigo 31, que trata da competência da fiscalização do município pelo Poder Legislativo, com auxílio dos Tribunais de Contas.
4. O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL E A INELEGIBILIDADE DOS GESTORES PÚBLICOS PELA REPROVAÇÃO NA PRESTAÇÃO DE CONTAS
Passaremos agora ao enfrentamento e deslinde do problema que motivou este estudo: a natureza das decisões proferidas pelos Tribunais de Contas e primazia para julgamento das contas de prefeitos municipais, mormente àqueles que tenham atuado como ordenadores de despesas, ou seja, relativos às contas de governo e contas de gestão. Como norte, analisaremos os recentes julgados da Suprema Corte Federal sobre o tema em baila.
4.1 LEADING CASE - RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 848.826/DF
Em 10 de agosto de 2016, o plenário do STF julgou o Recurso Extraordinário nº 848.826, do Distrito Federal. Em síntese, o que se extrai do relatório é que José Rocha Neto, ex-prefeito da cidade cearense de Horizonte, no ano 2000, teve suas contas desaprovadas pelo Tribunal de Contas dos Municípios (TCM-CE), conforme processo nº 2000.HRZ.TCS.03842/05 - Autos de Conta de Gestão nº 3842/05, por ter deixado de fazer a remessa da prestação de contas previstas e de efetuar repasses ao sistema previdenciário federal (INSS). Ao fazer o registro para concorrer às eleições de 2014 ao cargo de deputado estadual, José da Rocha teve o pedido impugnado pelo Ministério Público Eleitoral (MPE) daquele Estado, entendendo que a rejeição das contas pelo TCM-CE à época em que foi chefe do Executivo em Horizonte, o enquadraria nos termos do art. 1º, I, g, da Lei Complementar nº 64/90.
Em sua defesa, o ex-prefeito alegou que a decisão do TCM-CE não foi submetida à apreciação da Câmara Municipal de Horizonte, sendo ineficaz para gerar a inelegibilidade arguida pelo MPE. Na contestação, arguiu violação aos termos do art. 71, I e II, da CF/88 e apresentou documentação de que tais contas foram julgadas e aprovadas pelo Legislativo de Horizonte, bem como afirmou não ter cometido ato doloso de improbidade administrativa. O Tribunal Regional Eleitoral (TRE-CE) reconheceu as causas de inelegibilidade, dando provimento ao pedido do MPE.
Inconformado, José Rocha Neto interpôs recurso ordinário no TSE, mantendo os argumentos anteriores. Nas contrarrazões, a Procuradoria Geral Eleitoral sustentou que se tratava de contas de gestão, às quais o TCM-CE tem competência para julgar e que a ausência de recolhimento de verbas previdenciárias configura de improbidade administrativa e que a inelegibilidade prevista na alínea “g” não exige dolo específico de conduta, bastando o dolo genérico ou eventual já caracterizado. Em decisão monocrática, o ministro do TSE Henrique Neres da Silva negou seguimento ao recurso, sustentando que para efeitos de inelegibilidade é suficiente a existência de decisão irrecorrível do Tribunal de Contas que rejeita contas do ordenador de despesas, reconhecendo ainda irregularidade insanável diante da falta de repasse das contribuições previdenciárias.
Em sede de agravo regimental, o plenário proferiu decisão unânime mantendo os termos do voto do relator. A defesa interpôs embargos de declaração contra o acórdão, que foram rejeitados.Irresignada com o resultado, a defesa de José Rocha Neto manejou Recurso Extraordinário, alegando violação aos arts. 5º, XXXIV, a, XXXV, LIV e LV; 31, § 2º; 71, I; 75; e 93, IX, todos da Constituição. Sustentou ainda as teses de que não houve irregularidade insanável que configure ato doloso de improbidade administrativa e que na qualidade de prefeito, a rejeição de suas contas, ainda que na qualidade de ordenador de despesas, somente poderia ocorrer pela Câmara de Vereadores de Horizonte-CEe não pelo TCM-CE. Por seu turno, o MPE argumentou ausência de repercussão geral, que não houve ofensa à Carta Magna e que a pretensão recursal envolveria o reexame de matéria fática, vedado pela Súmula 279 do próprio STF.
Iniciados os debates, o ministro Luís Roberto Barroso, trouxe como questão principal a definição do órgão competente para julgar as contas do Chefe do Poder Executivo que atua na qualidade de ordenador de despesas. O ministro sustentou que o STF, no julgamento da ADI nº 4.578 e ADC nº 29 e 30, onde confirmou que a Lei da Ficha Limpa é compatível com a Constituição, não resolveu a controvérsia sobre o órgão competente a que se refere em seu art. 1º, I, g, para julgar ordenadores de despesas, incluindo mandatários. Num voto extenso, Barroso delineou acerca do regime constitucional dos Tribunais de Contas, da finalidade da prestação de contas, diferenciação das contas de governo e de gestão e as competências dos TCs. Após apresentar as justificativas e embasamentos, o ministro proferiu voto por reconhecer a competência dos TCs para julgamento das contas dos prefeitos que agirem como ordenadores de despesas, na forma prevista no art. 1º, I, g, da LC 64/90, que foi alterada pela LC 135/2010, de forma a negar o recurso em tela.
Ato contínuo, divergindo do relator, o ministro Ricardo Lewandowski proferiu seu voto para reconhecer o primado legislativo no julgamento das contas, citando trecho do professor José Afonso da Silva, utilizado neste trabalho. No arremate do voto:
A nova Constituição deu grande relevo ao parecer do Tribunal de Contas. No entanto, sopesando valores, deu ênfase maior ao pronunciamento da Câmara Municipal. Prevalece ao final, destarte, a manifestação de quem detém poder para, de fato, exercer a fiscalização sobre as contas daquele que exerce o Poder Executivo local. Compete, pois, às Câmaras Municipais o direito de julgar todas as contas do prefeito, sem nenhuma distinção. A competência do órgão legislativo para o julgamento não é determinada pela natureza das contas, se de gestão ou de governo, mas pelo cargo de quem as presta, no caso, o de Prefeito Municipal.[28]
Ao final, o julgamento foi encerrado com 6 votos a favor do provimento do recurso (Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Edson Fachin, Cármen Lúcia, Marco Aurélio e Celso de Mello), vencidos os ministros Luís Roberto Barroso, Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux e Dias Toffoli. Abaixo, a ementa e acórdão do Recurso Extraordinário nº 848.826:
10/08/2016 PLENÁRIO, RECURSO EXTRAORDINÁRIO 848.826 DISTRITO FEDERAL, RELATOR : MIN. ROBERTO BARROSO, REDATOR DO ACÓRDÃO: MIN. RICARDO LEWANDOWSKI
Ementa: RECURSO EXTRAORDINÁRIO. PRESTAÇÃO DE CONTAS DO CHEFE DO PODER EXECUTIVO MUNICIPAL. PARECER PRÉVIO DO TRIBUNAL DE CONTAS. EFICÁCIA SUJEITA AO CRIVO PARLAMENTAR. COMPETÊNCIA DA CÂMARA MUNICIPAL PARA O JULGAMENTO DAS CONTAS DE GOVERNO E DE GESTÃO. LEI COMPLEMENTAR 64/1990, ALTERADA PELA LEI COMPLEMENTAR 135/2010. INELEGIBILIDADE. DECISÃO IRRECORRÍVEL. ATRIBUIÇÃO DO LEGISLATIVO LOCAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO CONHECIDO E PROVIDO.
I - Compete à Câmara Municipal o julgamento das contas do chefe do Poder Executivo municipal, com o auxílio dos Tribunais de Contas, que emitirão parecer prévio, cuja eficácia impositiva subsiste e somente deixará de prevalecer por decisão de dois terços dos membros da casa legislativa (CF, art. 31, § 2º).
II - O Constituinte de 1988 optou por atribuir, indistintamente, o julgamento de todas as contas de responsabilidade dos prefeitos municipais aos vereadores, em respeito à relação de equilíbrio que deve existir entre os Poderes da República (“checksand balances”).
III - A Constituição Federal revela que o órgão competente para lavrar a decisão irrecorrível a que faz referência o art. 1°, I, g, da LC 64/1990, dada pela LC 135/ 2010, é a Câmara Municipal, e não o Tribunal de Contas.
IV - Tese adotada pelo Plenário da Corte: “Para fins do art. 1º, inciso I, alínea g, da Lei Complementar 64, de 18 de maio de 1990, alterado pela Lei Complementar 135, de 4 de junho de 2010, a apreciação das contas de prefeito, tanto as de governo quanto as de gestão, será exercida pelas Câmaras Municipais, com o auxílio dos Tribunais de Contas competentes, cujo parecer prévio somente deixará de prevalecer por decisão de 2/3 dos vereadores” .
V - Recurso extraordinário conhecido e provido.
A C Ó R D Ã O
Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal, em Sessão Plenária, sob a Presidência do Senhor Ministro Ricardo Lewandowski, na conformidade da ata de julgamentos e das notas taquigráficas, por maioria, apreciando o tema 835 da repercussão geral, dar provimento ao recurso extraordinário, ao entendimento de que, para os fins do art. 1º, inciso I, alínea g, da Lei Complementar 64/90, a apreciação das contas dos prefeitos, tanto as de governo quanto as de gestão, será feita pelas Câmaras municipais com o auxílio dos Tribunais de Contas competentes, cujo parecer prévio somente deixará de prevalecer por decisão de 2/3 dos vereadores, vencidos os Ministros Roberto Barroso (Relator), Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux e Dias Toffoli.
Brasília, 10 de agosto de 2016.
RICARDO LEWANDOWSKI – PRESIDENTE E REDATOR P/ O ACÓRDÃO
Oportuna ainda a observação de que se José Rocha Neto escapou de se tornar inelegível por conta de irregularidades no período em que foi prefeito, entre 1997/2000, afastando a inelegibilidade imposta pelo controle externo do Tribunal de Contas dos Municípios (TCM-CE), não teve a mesma sorte em relação aocontrole social. Candidato novamente à Prefeitura de Horizonte em 2016, o político recebeu apenas 26,06% dos votos, perdendo a disputa para Chico César (PSDB), preferido por 70,88% dos eleitores horizontinos, conforme dados do TSE. Se o controle técnico não foi suficiente para impedir que o mau gestor pleiteasse novas funções públicas, neste caso, foi o crivo das urnas que o alijou do processo eleitoral. Ou seja, de forma direta, a maioria dos eleitores de Horizonte rejeitou a conduta ímproba de José Rocha Neto, que teve abreviada sua carreira política no Estado do Ceará.
4.2 RECURSO EXTRAORDINÁRIO Nº 729.744/MG
Com o entendimento pelo STF de que é competência exclusiva do Legislativo o julgamento das contas dos prefeitos, conforme exposto no tópico anterior, passaremos agora a enfrentar outro julgamento da Suprema Corte, cujo problema é desdobramento corolário do primeiro: se na hipótese do parecer do Tribunal de Contas não ser apreciado pelo Legislativo, ocorreria a inelegibilidade por julgamento ficto por decurso do prazo, ante a omissão legislativa. Vamos à análise do RE nº 729.744/MG.
O caso concreto apreciado pela Corte, sob a relatoria do Ministro Gilmar Mendes, trata de recurso extraordinário, substitutivo do RE-RG 597.362, no qual o Ministério Público Eleitoral interpôs recurso contra acórdão proferido pelo Tribunal Superior Eleitoral, nos autos do Recurso Especial Eleitoral nº 604-76 (19.203/2012)/MG, que manteve o deferimento do pedido de registro de candidatura de Jordão Viana ao cargo de prefeito do município de Bugre/MG, nas eleições de 2012, na qual se sagrou vencedor.
A coligação adversária impugnou o deferimento do registro da candidatura, argumentando que o TCE-MG no ano de 2008 emitiu parecer pela rejeição das contas de Jordão Viana, relativas ao ano de 2001, quando era Chefe do Executivo de Bugre.A decisão do TSE, atacada no Recurso Extraordinário, informa na ementa que a desaprovação das contas de Jordão Viana não é apta para configurar a inelegibilidade do art. 1º, I, g, da LC 64/90, haja vista a ausência de decisão irrecorrível proferida pela Câmara Municipal, mantendo assim o registro da candidatura.
Lado outro,o MPE sustentou que diante do silêncio da Câmara Municipal de Bugre, que não julgou o parecer do TCE/MG, deve prevalecer o julgamento do Tribunal de Contas, o qual reprovou as contas de Jordão Viana, imputando-lhe a inelegibilidade prevista na alínea g da LC 64/90. Argumentou que o decurso do prazo regimental ou legal previsto para que o Legislativo de Bugre julgasse o parecer do TCE-MG tinha o condão de convalidar tacitamente o parecer técnico, impondo a inelegibilidade e a suspensão do registro da candidatura. Em contrarrazões, a Procuradoria Geral da República manifestou pelo não provimento do recurso, entendendo que o legislador constituinte conferiu ao Legislativo a função de julgar as contas do Poder Executivo, com auxílio técnico dos TCs. O recurso teve provimento negado por maioria dos votos. Em seguida, a Corte fixou o acórdão:
10/08/2016 PLENÁRIO, RECURSO EXTRAORDINÁRIO 729.744 MINAS GERAIS, RELATOR: MIN. GILMAR MENDES
Repercussão Geral. Recurso extraordinário representativo da controvérsia. Competência da Câmara Municipal para julgamento dascontas anuais de prefeito. 2. Parecer técnico emitido pelo Tribunal deContas. Natureza jurídica opinativa. 3. Cabe exclusivamente ao PoderLegislativo o julgamento das contas anuais do chefe do Poder Executivomunicipal. 4. Julgamento ficto das contas por decurso de prazo.Impossibilidade. 5. Aprovação das contas pela Câmara Municipal.Afastamento apenas da inelegibilidade do prefeito. Possibilidade deresponsabilização na via civil, criminal ou administrativa. 6. Recursoextraordinário não provido.
4.3 RETROATIVIDADE DA LEI DA FICHA LIMPA
Outro julgamento controverso e de placar apertado no STF foi o do Recurso Extraordinário nº 929.670/DF. Por maioria mínima de votos, o plenário assentou a tese de repercussão geral para julgar válida a aplicação do prazo de oito anos de elegibilidade aos condenados pela Justiça Eleitoral antes da Lei Complementar 135/2010. A decisão permitirá a retroatividade da Lei da Ficha Limpa, atingindo fatos pretéritos à sua edição. A tese que prevaleceu ao final do julgamento é a seguinte:
A condenação por abuso de poder econômico ou político em ação de investigação judicial eleitoral, transitada em julgado, ex vi do artigo 22, inciso XIV da Lei Complementar 64/90, em sua redação primitiva, é apta a atrair a incidência da inelegibilidade do artigo 1º, inciso I, alínea “d”, na redação dada pela Lei Complementar 135/2010, aplicando-se a todos os processos de registros de candidatura em trâmite.
Assim, o agente político que foi condenado pela justiça eleitoral por abuso de poder econômico ou político, ainda que anterior à mudança trazida pela LC 135/2010, ficará inelegível pelo prazo de oito anos. No caso concreto, um vereador do município baiano de Nova Soure foi condenado por abuso de poder econômico e compra de votos ocorridos nas eleições de 2004. Na sentença, o magistrado tornou-o inelegível por três anos. Em 2008, foi novamente eleito e ao buscar a reeleição quatro anos depois, teve registro indeferido porque a Lei da Ficha Limpa aumentou de três para oito anos o prazo de inelegibilidade previsto no artigo 1º, I, “d”. A mudança, vale lembrar, foi introduzida em 2010, mas aplica pela primeira vez nas eleições de 2012.
A celeuma girou em torno da discussão de dois princípios norteadores do direito, com previsão constitucional: a coisa julgada e a irretroatividade de lei mais gravosa. Na CF/88, em seu artigo 5º, XXXVI, há previsão expressa que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Disposição semelhante é encontrada na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB), que prescreve em seu artigo 6º: “A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitando o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada.”
O que se extrai dos dois mandamentos expostos acima, é que em regra, não há que se falar em retroatividade da lei, de forma a garantir a segurança jurídica, para evitar que uma lei superveniente projete seus efeitos sobre fatos ocorridos antes de sua vigência. Prevaleceu, majoritariamente, o entendimento de que a ampliação da inelegibilidade para oito anos poderá ser aplicada para todos os processos em trâmite na justiça eleitoral que tiverem como premissa a condenação por abuso de poder econômico ou político em razão de ação de investigação judicial eleitoral, transitada em julgada. Sacramentado, pois, o princípio da retroatividade da Lei da Ficha Limpa.
4.4 A MITIGAÇÃO DA ATUAÇÃO DOS TRIBUNAIS DE CONTAS
Cabe agora analisar a reação das entidades representativas dos membros dos Tribunais de Contas, do Ministério Público de Contas, dos Auditores e Servidores dos Tribunais de Contas às decisões proferidas pela Suprema Corte. Em nota pública, assinada conjuntamente pela Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil (Atricon), Associação Brasileira dos Tribunais de Contas dos Municípios (Abracom), Associação Nacional dos Ministros e Conselheiros Substitutos dos Tribunais de Contas (Audicon), Associação Nacional do Ministério Público de Contas (Ampcon), Federação Nacional das Entidades dos Servidores dos Tribunais de Contas do Brasil (Fenastc) e Associação Nacional dos Auditores de Controle Externo (Antc), manifestaram pesar pela perda da efetividade da Lei da Ficha Limpa.
A rejeição das contas pelos Tribunais de Contas é a principal causa de impugnação de candidaturas por parte do Ministério Público Eleitoral e segundo a nota, o julgamento do STF pode tornar inócua a Lei da Ficha Limpa, perdendo sua efetividade. Outro questionamento é que a partir de agora, prefeitos, governadores e até o presidente sentirão estimulados a avocar a ordenação de despesas, para escapar do julgamento técnico dos Tribunais de Contas, optando pelo julgamento político nas respectivas Casas Legislativas, confirmando um dos maiores retrocessos do período republicano e democrático, ferindo de morte a Lei da Ficha Limpa[29].