A judicialização da saúde suplementar no Brasil

16/11/2018 às 13:41
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É preciso implementar mecanismos alternativos à intervenção judicial para reduzir impactos negativos envolvendo o direito à saúde.

Um dos grandes desafios atuais do Poder Judiciário é definir o espaço do referido exercício excepcional de poder, notadamente quando esse limite é estabelecido pelo próprio judiciário. Sabe-se que a Constituição confere ao Judiciário a tarefa de averiguar a compatibilidade dessas atribuições com as normas constitucionais, ao dispor em seu art. 102, que o Supremo Tribunal Federal é o guardião da Constituição.

A Constituição de 1988 provocou transformações muito relevantes para o país, o que permitiu a redefinição do papel e das funções tradicionais do Judiciário. Tais mudanças contribuíram muito para o seu crescente protagonismo. Concomitantemente, ocorreu uma “explosão de litigiosidade” (PONCIANO, 2014).

Para Scaff (2010), há no Brasil uma avalanche de decisões de todas as instâncias implementando diretamente o direito à saúde previsto no art. 196 da Constituição, através de um sistema de Justiça Constitucional difuso, fazendo de forma individual o que deveria ser implementado através de políticas públicas, o que tem abalado financeiramente os programas e as políticas de saúde, comprometendo, no Rio Grande do Sul, em 2006, 25% do orçamento da secretaria de Saúde daquele Estado, correspondendo a U$ 13 milhões. Isto porque, segundo Scaff (2010), confundem-se direitos individuais com direitos sociais.

O controle jurisdicional na saúde passa necessariamente pelo estudo do ativismo judicial, na medida em que, nessa atividade de controle, o espaço político das decisões dos Poderes representativos dá espaço para a função jurídica, notadamente a criativa dentro dos espaços do ordenamento onde não há uma resposta pré-constituída ou insuficiente para que sejam efetivados os direitos fundamentais e a Constituição Federal.

Ronald Dworkin (1999) entende que o ativismo judicial está relacionado na concretização dos valores constitucionais pelo Judiciário, o que pode ser dado por meio de formas diversas: aplicação direta da Constituição, controle ou vedações à Administração Pública, notadamente no tocante ao controle de políticas públicas.

No Brasil, o ativismo judicial possui vasto caminho de desenvolvimento, haja vista a incapacidade do Estado em formular e executar políticas públicas adequadas a atender a população e tornar efetiva a Constituição Federal.

Outro conceito que traremos em questão e que daremos maior destaque no estudo é o da judicialização, que para Carvalho (2004) consiste em um fenômeno denominado por Tate e Vallinder, em 1995, em estudo sobre as relações do poder judiciário e a política. A judicialização se distingue do ativismo judicial, embora a linha que separa esse dois fenômenos, em alguns pontos não seja muito nítida em razão de certas coincidências causais.

José Ribas Vieira (2009) faz uma menção genérica de distinção entre a judicialização da política e o ativismo judicial:

Apesar de muitos próximos, os fenômenos da judicialização e do ativismo judicial não se confundem. O ativismo judicial pode ser descrito como uma atitude, decisão de comportamento dos magistrados no sentido de revisar temas e questões- prima facie- de competência de outras instituições. Por sua vez, a judicialização da política, mais ampla e estrutural, cuidaria de macro-condições jurídicas, políticas e institucionais que favoreciam a transferência decisória do eixo do Poder Legislativo para o Poder Judiciário.

O significado de judicialização, no seu sentido amplo é bem delineado por Luís Roberto Barroso (2011, p 360-361):

Judicialização significa que questões relevantes do ponto de vista político, social ou moral estão sendo decididas, em caráter final, pelo Poder Judiciário. Trata-se, como intuitivo, de uma transferência de poder para as instituições judiciais, em detrimento das instâncias políticas e do discurso jurídico constitui uma mudança drástica no modo de pensar e de se praticar o direito no mundo romano-germânico. Fruto da conjugação de circunstâncias diversas, o fenômeno é mundial, alcançando até mesmo países que tradicionalmente seguiam o modelo inglês- a chamada democracia ao estilo de Westminster-, com soberania parlamentar e ausência de controle de constitucionalidade. Exemplos numerosos e inequívocos de judicialização ilustram a fluidez da fronteira entre política e justiça no mundo contemporâneo, documentando que nem sempre é nítida a linha que divide a criação e a interpretação do direito.

Entende-se que a judicialização da saúde é uma questão ampla e diversa de reclame de bens e direitos nas cortes: são insumos, instalações, medicamentos, assistência em saúde, entre outras demandas a serem protegidas pelo princípio do direito à saúde (DINIZ D et al, 2014)

Ainda quanto ao significado de judicialização, assim o expressa Vallinder (1995):

Quando falamos da expansão global do poder judiciário, nos referimos à infusão de decisões judiciais ou de procedimentos equivalentes dentro de arenas políticas onde eles não residem previamente. Para por de modo breve, nos referimos à “judicialização” das políticas. Judicializar, de acordo com as melhores pesquisas, é “tratar judicialmente, chegar a um julgamento ou decisão sobre”. Nesse sentido, judicialmente deveria significar tanto (1) a via do julgamento legal o ofício ou capacidade de julgar; em, por, ou em relação à administração da justiça; pelo processo legal; pela sentença de uma corte ou justiça,” ou (2) “o modo estabelecido por um juiz; com habilidade e conhecimento judicial” (OED, p. 297). Assim, a judicialização da politica deveria normalmente significar tanto (1) a expansão do provimento das cortes ou dos juízes, à expensas dos políticos e/ou dos administradores, ou seja, a transferência do direito de decisão do legislativo, do gabinete, ou do servidor público para as cortes, ou, ao menos (2) a expansão dos métodos de decisão judicial para além da própria esfera judicial. Em suma, poderíamos dizer que judicialização envolve essencialmente transformar algo em processo judicial (VALLINDER, 1995, p. 13).

Segundo Diogo Bacha e Silva, é preciso entender o fenômeno da judicialização dentro de um contexto de crise da democracia representativa. Os principais motivos para que sejam levadas demandas ao Judiciário, na realidade, são: falta de simetria entre a vontade do Legislativo e a vontade de quem ele deveria representar; a omissão no tratamento de questões divergentes; e/ou a inércia ou ineficiência da realização de políticas públicas pelo Executivo.

Já para Marcos Castro (1997), três grandes e interrelacionados fatores contribuíram para a expansão do Judiciário no País: o primeiro foi a expansão da mobilização social canalizada através do processo judicial, contra as reformas políticas que buscaram superar o populismo econômico dos governos passados; O segundo fator, foi uma performance mais assertiva e ativistas dos juízes e para finalizar, as mudanças institucionais introduzidas pela CF/88 também foram elemento crucial para ampliar o poder judicial no Brasil.

As instituições jurídicas e sanitárias têm sido testemunhas desse processo que usa, como uma de suas bases, o princípio da inafastabilidade judicial, este consagrado no art 5°, inc. XXXV da Constituição Federal Brasileira ao afirmar: “a lei não excluirá da apreciação do poder Judiciário lesão ou ameaça e lesão a direito”.

O princípio supracitado pode ser visto pela ótica da articulação entre a jurisdição e a solução do conflito, bem como a efetivo acesso à ordem jurídica justa e eficaz, ou seja, um cidadão que entenda, por exemplo, que não ter seu direito à saúde efetivado, como no previsto na ordem interna, poderá ajuizar um ação judicial e o juiz pelo referido princípio deverá apreciar a demanda (SILVA, 2015).

Dessa forma, percebe-se que o próprio Constituinte brasileiro estabeleceu a previsão constitucional de que toda e qualquer demanda possa ser submetida à apreciação do Judiciário, o que alçou este Poder à qualidade de ator privilegiado do processo de resolução de conflitos e efetivação de direitos.

A decisão proferida nos autos do Pedido de Suspensão da Tutela n° 175, depois de realizada audiência pública, onde diversos setores afetados pela judicialização do direito à saúde se manifestaram por meio de um amplo debate junto ao Supremo Tribunal Federal, nos fornece elementos para o controle judicial da saúde.

Para o Min. Gilmar Mendes (2010, p.9) :

(...) o fato é que o denominado problema da “judicialização do direito à saúde” ganhou tamanha importância teórica e prática, que envolve não apenas os operadores do direito, mas também os gestores públicos, os profissionais da área de saúde e a sociedade civil como um todo. Se, por um lado, a atuação do Poder Judiciário é fundamental para o exercício efetivo da cidadania, por outro, as decisões judiciais têm significado um forte ponto de tensão entre os elaboradores e os executores das políticas públicas, que se veem compelidos a garantir prestações de direitos sociais das mais diversas, muitas vezes contraste com a política estabelecida pelos governos para a área de saúde e além das possibilidades orçamentárias.

Silva (2015) complementa que o estado não tem recursos financeiros para o atendimento de todos os direitos previstos em lei, e mesmo que tivesse condições para o atendimento de pelo menos alguns desses direitos, as necessidades humanas seriam sempre crescentes e infinitas de modo que haveria sempre uma escassez de recursos, e se não há o suficiente para atender a todos, pode dizer que há uma escassez, ficando nessa situação o Estado encarregado a (re) distribuir os recursos entre todos que precisam, podendo ocorrer as chamadas escolhas trágicas, que, em regra, são disjuntivas, pois implicará atender a uns e a outros não.

Nos últimos anos, o Judiciário buscou se empenhar de forma mais sistemática sobre o ato de julgar em saúde e tem buscado fazer com que esse ato não seja necessariamente uma decisão solitária. O desenvolvimento da importância e do protagonismo judicial em matéria de saúde trouxe a real necessidade de se estabelecer uma ação mais coordenada e estratégica (ASENSI, 2013).

Asensi (2013, p. 99) ainda defende que:

A progressiva influência que o Judiciário exerce nas políticas públicas de saúde não isenta este Poder de contradições e desafios. De fato, qualquer intervenção judicial que seja mais contínua e perene pode influenciar decisivamente o rumo das políticas públicas do ponto de vista de orçamento, planejamento, gestão, risco etc., e com a saúde não é diferente.

No caso de uma eventual jurisprudência ser trazida ao caso concreto, de acordo com Elival da Silva Ramos, diante desse precedente, o Judiciário irá verificar a pertinência do julgado com o caso posto a sua apreciação e interpretar o texto da decisão precedente, podendo restringir ou ampliar os efeitos da norma a ele acoplada, bem como reconhecer a revogação, total ou parcial, do precedente.

A legitimidade da atuação do Judiciário em matéria de direito à saúde no Brasil autoriza esse Poder, inclusive, a determinar a prisão de gestores públicos quando quaisquer de suas ordens são descumpridas ou quando há negligência na observância dos deveres de probidade administrativa (ASENSI, 2013, p. 91).

O crescimento da judicialização da saúde no Brasil é tema de constante preocupação do CNJ, uma vez que o problema atinge diretamente a atuação dos juízes brasileiros. Em 2010, o CNJ publicou a Recomendação n° 31, devido ao elevado volume processuais relacionados à saúde. Essa recomendação teve como objetivo orientar os tribunais na adoção de medidas que subsidiem os magistrados para assegurar maior eficiência na solução das demandas judiciais envolvendo a assistência à saúde pública.

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Asensi (2013) faz uma crítica à citada Recomendação n° 31 do CNJ quando afirma que a mesma possui um caráter fortemente medicalizante e que ao situar como saberes privilegiados para a decisão judicial o médico e o farmacêutico, o CNJ pode minimizar a importância do trabalho multiprofissional desenvolvido por psicólogos, assistentes sociais, enfermeiros e fisioterapeutas.

Asensi ressalta ainda que a reprodução de uma visão medicalizada da saúde também pode ocorrer devido a sobrevalorização do saber médico e farmacêutico no processo decisório judicial e dando pouca importância na participação dos outros profissionais da saúde no cotidiano da decisão, ajudando a reproduzir a ideia de saúde como ausência de doença, e não como um complexo bio-psico-social.

O Fórum da Saúde também é uma criação do CNJ, e trabalha em várias frentes com o objetivo de aperfeiçoar os procedimentos, prevenir novos conflitos e qualificar a judicialização.

Entre as principais ações está a criação do e-NATJUS, plataforma digital idealizada e mantida pelo CNJ que oferece fundamentos científicos para juízes em decisões na área. A ferramenta foi lançada em novembro de 2017. O cadastro nacional de pareceres, notas e informações técnicas oferece base científica para as decisões dos magistrados de todo o País quando estes precisam julgar demandas de saúde (BRASIL, 2018).

Teixeira (2011) afirma que quando o Judiciário é provocado, via de regra, o mesmo faz o controle de tais atos de maneira individual, em que o número de afetados é reduzido, quando muito um grupo determinado de pessoas é atingido pela referida revisão judicial dos atos administrativos, sendo mais simples e previsível o resultado dessas decisões.

No campo da saúde suplementar, muito se tem discutido acerca dos direitos dos beneficiários consumidores de planos de saúde e da responsabilidade das operadoras que prestam o serviço de assistência privada à saúde.

Para Cunha et al (2014), o mercado de serviços de saúde privada vem recebendo, crescentemente, a atenção do Poder Judiciário em diversas situações, ora a favor das empresas que prestam tais serviços, ora a favor dos usuários dos planos de saúde. Sabe-se que a saúde é um tema de interesse público, logo, não pode ser tratada como se fosse apenas um produto que se compra num mercado qualquer.

No campo da saúde suplementar, as empresas que prestam serviços privados de saúde assumem posição de réu nas demandas, do mesmo modo como o Estado é chamado em demandas contra o SUS. Passam a suportar o ônus dos procedimentos não cobertos, ou além dos limites definidos pela regulamentação da ANS. Isso se faz por força de determinações judiciais, verdadeiras ingerências jurisdicionais numa situação jurídica que sequer é estabelecida pelas empresas rés (CUNHA et al, 2014).

Com a chamada judicialização da saúde suplementar, passam a ser encontradas, até com certa facilidade, decisões ativistas que, muitas vezes, sem uma fundamentação constitucional adequada, ignoram a existência de lei que trata especialmente do assunto e de resoluções normativas emanadas da Agência Reguladora no intuito de regulamentar as questões específicas não tratadas pelo legislador (VIANA, 2013)

Viana (2013) ainda acrescenta quando nos fala que no campo da saúde suplementar é fundamental a discussão dos temas mais complexos, frequentemente levados ao judiciário, aos quais não raras vezes são conferidos tratamentos divergentes, algumas vezes com decisões destoantes dentro da mesma corte.

A intervenção judicial, principalmente na seara da saúde suplementar, é compreendida como uma externalidade do negócio, vez que o juiz ao decidir atua como um terceiro cujos atos trarão consequências para a relação entre a operadora e o usuário previamente firmada. O problema envolvendo essa externalidade é a impossibilidade de ela ser internalizada pelas partes, vez que a relação já se encontra devidamente formalizada (MOTA, 2017, p.122)

Grande parte dos conflitos entre o binômio judicialização x saúde suplementar tem como objeto de litígio autorização de procedimentos, exames de alto custo, internações, home care, etc, estes negados pelas operadoras, que alegam prazo de carência, falta de cobertura contratual, não previsão no rol da ANS dentre outros.

Grande parte das decisões tem sido favorável aos usuários, pois além dos magristrados aplicar uso dos termos do art. 51, IV e XV, do Código de Defesa do Consumidor, em que são consideradas abusivas as cláusulas contratuais que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada, ou que sejam incompatíveis com a boa-fé, a equidade ou que estejam em desacordo com o sistema de proteção ao consumidor, sabe-se que o indeferimento da concessão da medida liminar poderia causar um comprometimento irreversível da saúde, integridade física, dignidade da pessoa humana, chegando até a causar a morte do cidadão.

Diante da judicialização da saúde, cresce a importância do instituto da mediação como uma forma alternativa, mais rápida e eficaz na negociação, com os sistemas de gestão públicos e privados de saúde, adequando e facilitando o diálogo entre as partes e os Poderes, na diminuição das demandas judiciais e na implementação de ações que visem o fortalecimento do núcleo essencial-fundamental, ou seja, os direitos sociais-fundamentais que constituem a essência da Constituição, em nosso Estado Democrático de Direito, e seu cumprimento, assim, a garantia constitucional do Direito à Saúde para todos

Dentre os benefícios da utilização da mediação, tem-se, primeiramente, uma verdadeira pacificação da relação, visto que a decisão foi tomada pelos próprios envolvidos e não imposta por um terceiro. Sabe-se que a problemática que envolve judicialização da saúde não se resolverá de forma automática, bem como os efeitos das decisões já tomadas que tendem a se perpetuar no sistema, contudo, como já vimos, a criação e a implementação dos mecanismos alternativos à intervenção judicial se mostram como possíveis ferramentas capazes de reduzir os impactos que as sentenças proferidas em demandas envolvendo direito à saúde podem acarretar.

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Sobre a autora
Natália Rodrigues

Enfermeira e futura advogada

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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