3. ESTUPRO DE VULNERÁVEL E EXPERIÊNCIA SEXUAL ANTERIOR DA VÍTIMA
Outra inovação trazida pela Lei 13.718/18 é a inclusão de um § 5º., no artigo 217 – A, CP (“Estupro de Vulnerável”).
Desde a antiga “presunção de violência” prevista no revogado artigo 224, CP (Lei 12.015/09), havia a discussão na doutrina e na jurisprudência, especialmente nos casos dos menores de 14 anos, quanto à configuração do crime em caso de ato sexual consentido e tendo a vítima experiência sexual antecedente.
Com o advento da Lei 12.015/09 e a criação do crime de “Estupro de Vulnerável” a legislação brasileira abandou por completo qualquer espécie de “presunção de violência”, adotando um simples critério de norma proibitiva. O artigo 217 – A, CP simplesmente proíbe a prática de relações sexuais de qualquer natureza com pessoas vulneráveis, dentre as quais os menores de 14 anos. Em princípio não havia mais espaço para o debate quanto à inexistência de crime devido ao consentimento do menor de 14 anos e sua experiência sexual anterior. As práticas libidinosas com menores de 14 anos foram claramente extirpadas do Brasil como algo absolutamente ilícito. Porém, como sói acontecer nos meios jurídicos, ainda havia debate sobre o possível afastamento do crime nos casos em que menores de 14 anos já tivessem experiência anterior em atos sexuais ou praticassem prostituição e consentissem livremente no contato com o adulto.
Ocorre que o Brasil, ao prever uma norma clara e evidentemente proibitiva dessas relações sexuais, não abriu qualquer exceção para avaliação circunstancial, diversamente do que fez, por exemplo, recentemente, a França, estabelecendo uma idade – base de 15 anos, mas deixando bastante claro na legislação penal e processual penal que a capacidade de consentimento válido do menor será avaliada em cada caso concreto, desde que posta em discussão sua anuência ao ato. Indiretamente esse tipo de previsão legal que, na prática, invalida a idade – limite e permite a aceitação de atos sexuais com menores em geral, acaba deixando aberta uma porta, que pode ser alargada ao bel prazer da jurisprudência, para condutas pedófilas. 18
Mesmo diante da clareza da legislação brasileira, sempre houve insistência na permissividade ao ponto de haver decisões de Tribunais de segundo grau, afirmando que um menor de 5 (cinco) anos podia consentir livremente na prática de atos sexuais com adultos (sexo oral e heteromasturbação)! 19 Uma decisão como esta é certamente sintoma daquilo que se pode, com absoluta razão, chamar de “esquizofrenia intelectual”, caracterizada pelo “amor deliberado à unidade na fantasia e a rejeição da unidade na realidade”. 20
Tendo em vista esse quadro de “esquizofrenia” jurídica e moral, o STJ precisou expedir a Súmula 593, em 25.10.2017, com o seguinte teor:
“O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante o eventual consentimento da vítima para a prática do ato, experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente”.
Agora nada mais é feito do que a positivação do que era até então somente uma orientação jurisprudencial e doutrinária majoritária, inclusive informada por súmula de Tribunal Superior.
O novo § 5º., do artigo 217 – A, CP estabelece na letra da lei e de forma induvidosa que:
“As penas previstas no caput e nos §§ 1º., 3º. e 4º. deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriores ao crime”.
Não há qualquer dúvida, seja jurisprudencial ou legalmente, de que a norma do artigo 217 – A , CP contém uma proibição de natureza absoluta, impõe aos adultos uma relação de responsabilidade para com os menores de 14 anos no que se refere às condutas sexuais, o que, aliás, não se vê como poderia ser diverso. Fato é que a legislação brasileira não deixa margem, não deixa uma única fresta, ao menos em termos legais, para uma visão permissiva de prática pedófilas.
A única possibilidade que resta para afastar a responsabilidade de um adulto que mantenha relações sexuais com menores de 14 anos no Brasil é a situação de erro quanto à idade da vítima. Se o indivíduo realmente desconhecia, de forma justificável, a verdadeira idade da pessoa com quem manteve relações sexuais, pensando tratar-se de maior de 14 anos ou mesmo de maior de 18 anos, seja porque foi induzido a erro pela própria suposta vítima, seja porque as circunstâncias e compleição física justificariam tal erro, não se poderá imputar ao agente a prática de crime de “Estupro de Vulnerável”, sob pena da adoção de um sistema de “direito penal objetivo”, oposto ao vigente “direito penal subjetivo”, que somente permite a responsabilização penal de alguém que atue com consciência da ilicitude de sua conduta (inteligência do artigo 19, CP).
4. O CRIME DE “DIVULGAÇÃO DE CENA DE ESTUPRO OU DE CENA DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL, DE CENA DE SEXO OU DE PORNOGRAFIA”
Outra infração penal criada pela Lei 13.718/18 foi a agora descrita no novo artigo 218 – C, CP, com “nomen juris” de “Divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia”.
O tipo penal é daqueles denominados pela doutrina de “crime de ação múltipla”, “crime de conteúdo variado” ou “tipo misto alternativo”, apresentando vários verbos, os quais, se praticados por um mesmo agente em um mesmo contexto, não geram crimes vários, mas uma única conduta criminosa.
Os verbos são “oferecer”, “trocar”, “disponibilizar”, “transmitir”, “vender”, “expor à venda”, “distribuir”, “publicar” e “divulgar”.
Os meios para a prática de tais verbos são bastante amplos, abrangendo todos os meios de comunicação de massa (revistas, jornais, televisão etc.), sistemas de informática e telemática (e – mail, whatsapp, facebook, instagram etc.), havendo ainda a previsão legal genérica de quaisquer outros meios que possibilitem as mesmas condutas. Nesse ponto, “o legislador ao expressar que a divulgação pode ser feita ‘por qualquer meio’ lançou mão da denominada interpretação analógica”. 21 Atualmente será mais comum o uso de meios tecnológicos mais sofisticados, mas não estará afastada a tipicidade na divulgação por “qualquer meio”, como, por exemplo, a remessa via correio, a distribuição manual de cópias etc.
O objeto material consiste em fotografias, vídeos ou qualquer outro registro audiovisual.
Entretanto, o que ensejará a conduta criminosa será o conteúdo dessas imagens ou cenas. Se o conteúdo for uma cena de estupro ou de estupro de vulnerável, haverá o crime. Mesmo não se tratando de cena dessa espécie, mas de qualquer conteúdo que induza ou faça apologia dessas práticas reprováveis, configurado também estará o ilícito. Parece que qualquer cena dessa espécie servirá para configurar o crime, não importando se houve realmente um estupro ou estupro de vulnerável ou se se trata de uma encenação ou mesmo de “artes” gráficas, desenhos, representações. Essa espécie de conteúdo, por si só, independentemente de tratar-se de cena real ou simulação resta vedada, até porque também a apologia ou indução é incriminada.
Inclusive Sanches Cunha chama a atenção para detalhe relevante no que diz com a apologia:
“Note-se que neste tipo penal não tem lugar, ao contrário do que ocorre no art. 287. do CP, a discussão sobre a necessidade de que a apologia se refira a crime já ocorrido. O art. 287. pune a apologia de fato criminoso, o que, para parcela da doutrina, restringe a abrangência do tipo a crimes já ocorridos, pois, do contrário, há apenas incitação. O dispositivo em estudo, no entanto, não contém a expressão fato criminoso, referindo-se apenas à apologia do estupro”. 22
Não somente o conteúdo que envolva os crimes acima mencionados é incriminado, mas também a divulgação de cena de sexo, nudez ou pornografia, sem o consentimento da vítima. Note-se que a questão do consentimento novamente avulta neste tipo penal, tal qual ocorreu no artigo 215 – A. Mas, é preciso perceber que essa questão do consentimento somente se refere à última parte do dispositivo, ou seja, com relação a cenas de sexo, nudez ou pornografia e não àquelas que versam sobre estupro, estupro de vulnerável ou sua apologia ou indução. Nestes últimos casos, eventual consentimento de quem quer que seja será absolutamente irrelevante, subsistindo o crime. O que é tratado no caso de exposição de imagens de sexo, nudez ou pornografia sem o consentimento da vítima, é o que se convencionou chamar de “sexting”, ou seja, exatamente a “divulgação não autorizada de vídeos, fotos e demais conteúdos íntimos na internet”. 23 Há que lembrar, porém, que pessoas adultas e capazes não podem ser impedidas de, livremente, trocar mensagens, imagens, fotos, cenas que envolvam a si mesmas em situação de nudez, sexo ou pornografia. O direito à imagem é disponível e reforçado pela liberdade de expressão e comunicação. Apenas nos casos de abusos, como a exposição não consentida, é que se pode pensar em sancionar a conduta. Tem aplicação nesse passo o brocardo “abusus non tollit usum”, ou seja, “o abuso não abole o uso”.
Portanto, se ocorre um estupro que é filmado, por exemplo, e as cenas são divulgadas, com ou sem o consentimento da vítima ocorre o crime. Por outro lado, se alguém se deixar filmar em atos sexuais, nu ou em qualquer situação pornográfica, autorizando a divulgação e exibição de suas imagens, não haverá crime. Isso é exatamente o que ocorre com fotos de revistas como a Playboy ou com filmes pornográficos, em que as pessoas não somente consentem na exposição como recebem por isso e firmam contratos respectivos. Ainda que a veiculação seja amadora, havendo prova de que a potencial vítima, na verdade, consentiu na exibição, afastado estará o ilícito.
Também o crime do artigo 218 – C é expressamente subsidiário. A pena prevista é de “reclusão de 1 a 5 anos, se o fato não constitui crime mais grave”. Assim sendo, se a cena exposta envolve criança ou adolescente, afastado estará o dispositivo supra do Código Penal, aplicando-se, com base da subsidiariedade e na especialidade, os crimes do Estatuto da Criança e do Adolescente, que têm penas mais gravosas (vide artigos 240, 241, 241 – A, 241 – B e 241 – C, da Lei 8069/90).
Obviamente, nos casos de estupro e estupro de vulnerável, se a mesma pessoa praticar tais crimes e expuser suas imagens, haverá concurso material.
Também importa lembrar que pode ocorrer o que se convencionou chamar de “sextorsão”, quando o indivíduo não expõe as cenas, fotos etc., mas as obtém ou tem em seu poder e passa a exigir vantagens da vítima mediante chantagem. Acaso a vítima não ceda aos seus desejos, então afirma que ira divulgar as imagens. Nesses casos, dependerá do que o agente pretender obter como vantagem: se for vantagem financeira, haverá o crime de extorsão (artigo 158, CP); se for a prática de favores sexuais pela vítima, haverá estupro ou tentativa de estupro, conforme ceda ou não a vítima (artigo 213 ou 213 c/c 14, II, CP) e se a vítima for vulnerável, o estupro de vulnerável consumado ou tentado (artigo 217 – A ou 217 – A c/c 14, II, CP); se forem outros constrangimentos, como, por exemplo, fazer com que a vítima desista da disputa de uma vaga de emprego, eventual crime de constrangimento ilegal consumado ou tentado (artigo 146, CP ou artigo 146 c/c 14, II, CP). No caso da extorsão, o crime será geralmente consumado, pois, segundo entendimento predominante, trata-se de crime formal, que se consuma com o constrangimento, e não com o efetivo auferimento da vantagem financeira, que é exaurimento. Pode haver, porém, a tentativa de extorsão, se o agente sequer for capaz de causar constrangimento à vítima com sua chantagem. É claro que aqui também, em todos os casos, se, além de constranger a vítima para tais vantagens, o agente vier a expor as imagens num segundo momento, haverá concurso material de ilícitos.
No caso do “estupro de vulnerável”, entende-se que a exposição será sempre tipificável no ECA (Lei 8069/90), quando se tratar da vulnerabilidade etária (menores de 14 anos). Somente restará espaço para aplicação do disposto no novel artigo 218 –C, CP, se a cena envolver vítima vulnerável por enfermidade ou deficiência mental que lhe retire o discernimento ou pessoa que por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.
Exemplificando:
Se um infrator exibe na internet cena de estupro de vulnerável em que há prática de conjunção carnal com uma menina de 10 anos de idade, o crime será o do artigo 241 – A, ECA e não do artigo 218 – C, CP. Doutra banda, se igualmente expõe na internet cena de sexo praticado por alguém capaz com um alienado mental sem discernimento para o ato, mas com 30 anos de idade, será de se aplicar o artigo 218 – C, CP normalmente, pois que não se trata de criança ou adolescente como vítima.
Outro aspecto importante é que o armazenamento puro e simples, a posse ou mesmo a aquisição dessas imagens em celulares, computadores, pen – drives etc., sem sua exposição, não configurará o disposto no artigo 218 – C, CP. Isso por força do Princípio da Legalidade, uma vez que o tipo penal em estudo, embora dotado de muitos verbos, não contém os verbos adquirir, possuir ou armazenar. Entretanto, se as imagens, fotos, vídeos ou quaisquer cenas forem de crianças ou adolescentes nas mesmas circunstâncias, haverá o crime previsto no artigo 241 – B, do ECA (Lei 8069/90), pois que tal dispositivo prevê o armazenamento, aquisição e a posse como crimes.
Contudo, ainda que não seja uma cena envolvendo menores, dependendo do meio como isso foi obtido, poderá haver outro ilícito, qual seja, a “Invasão de Dispositivo Informático” (artigo 154 – A, § 3º., CP). Isso em não havendo a exposição. No caso de exposição posterior, haverá concurso material de crimes com o artigo 218 – C, CP ou mesmo com os crimes do ECA, tudo a depender da condição do sujeito passivo (adulto ou menor). 24 Somente não haverá o crime antecedente de “Invasão de Dispositivo Informático” se as cenas ou imagens vierem ao agente por meio da própria vítima, embora sem autorização de divulgação ou por outras formas, tais como compartilhamentos, trocas etc. Como já visto, nos casos de estupro ou estupro de vulnerável ou sua apologia ou induzimento, não importará nem mesmo a autorização de quem quer que seja, mesmo da vítima maior e capaz.
Responderá pelo crime não somente quem obteve ou mesmo produziu as imagens originalmente, mas todo aquele que as receber e compartilhar, transmitir, divulgar, trocar, vender etc. Será muito comum numa investigação dessa prática a obtenção de uma série ou teia de divulgações e compartilhamentos criminosos, devendo, esgotados todos os meios disponíveis de identificação de autores, serem todos os participantes criminalmente responsabilizados. Isso, obviamente, é válido não só para o novo artigo 218 – C, CP, mas também para os crimes do ECA (Lei 8069/90).
Em havendo várias pessoas na cena exposta ocorrerá concurso formal de crimes 25, sendo de se reconhecer o concurso formal próprio, pois que não se pode dizer que haja desígnios autônomos, mas apenas o desejo de divulgar a cena como um todo. Nesse passo, não haverá cúmulo material, mas somente exasperação, nos termos do artigo 70, primeira parte, CP.
Ressaltam, contudo, com razão, Oliveira e Leitão Júnior que o “elemento subjetivo”
“É o dolo, seja ele direto ou eventual. Não há expressa previsão legal da modalidade culposa, o que torna inviável a punição por culpa. Há de salientar que se o agente, por exemplo, fizer um vídeo com celular, consentido com sua companheira e, posteriormente, por negligência ou imprudência, o celular onde se encontrava o vídeo vier a ser subtraído e o terceiro que subtrai vem a divulgar os vídeos ali contidos, incorrerá no crime apenas o terceiro que divulgou, ficando o proprietário do celular isento de pena”. 26
Também o ilícito do artigo 218 – C, CP não é infração de menor potencial ofensivo, embora seja cabível a suspensão condicional do processo, conforme artigo 89, da Lei 9099/95, pois que sua pena mínima não ultrapassa um ano.
Contudo, mesmo a suspensão condicional do processo restará afastada se configurada a causa de aumento de pena que é prevista no artigo 218 – C, § 1º., CP. Ali o legislador criou um aumento variável entre 1/3 e 2/3 em duas circunstâncias:
a)Quando o crime é praticado por agente que mantém ou tenha mantido relação íntima de afeto com a vítima;
b)Com a finalidade (dolo específico) de vingança ou humilhação.
O aumento quando o agente mantém ou já manteve relação íntima de afeto com a vítima se torna mais grave devido exatamente a esses laços que deveriam implicar em maior respeito entre as pessoas. Ademais, se a vítima for mulher, poderá ser configurada “violência doméstica e familiar”, nos termos da Lei 11.340/06 (artigo 5º., I, II ou III c/c artigo 7º., II, III e V). Essa relação íntima pode ser exemplificada com o casamento, namoro, noivado (incluindo os “ex – maridos”, “ex – noivos”, “ex – namorados” etc.), mas não poderá ser considerada justificável a majorante em casos de relações sexuais esporádicas, troca de carícias em oportunidades isoladas etc. Não se exige, porém, a coabitação. 27 Embora se tenha mencionado o caso de aplicabilidade da Lei Maria da Penha no caso da vítima mulher, é preciso atentar para o fato de que o sujeito passivo do crime pode ser também um homem, nada impedindo que a mesma causa de aumento de pena seja aplicada. Obviamente, também se poderá aplicar a majorante em casos de relações íntimas homoafetivas masculinas ou femininas. Aliás, no caso das femininas, a Lei 11.340/06 é explícita quanto ao seu alcance, em seu artigo 5º., Parágrafo Único.
Gilaberte Freitas destaca aspecto interessante:
“A majorante não se aplica às relações de parentesco entre ascendentes e descendentes, ou entre colaterais, embora, nessa hipótese, possa ser usado o art. 226, II, do CP, que aumenta a pena de metade. A situação, portanto, é curiosa: se a mídia audiovisual é exposta pelo ex – marido, por exemplo, a pena pode ficar mais suave ou mais gravosa do que na exposição feita pelo pai ou pelo irmão, pois a majoração prevista no § 1º. do art. 218. – C começa em 1/3 (inferior ao aumento de pena do art. 226, II) e termina em 2/3 (patamar superior)”. 28
Sob esse prisma, muito bem notado por Gilaberte, pode-se aventar o reconhecimento de violação do Princípio da Proporcionalidade. Nada justifica que um “ex – marido” possa sofrer exasperação penal maior ou menor do que um “pai” que divulga as cenas de uma filha, por exemplo. Mais evidente ainda é a disparidade quando um “cônjuge” ou “companheiro” previstos no artigo 226, II, CP, teriam aumentos diversos dos previstos no artigo 218 – C, § 1º., CP. Mas, neste caso há que se entender que o aumento do § 1º., do artigo 218 – C, CP somente se refere a tal dispositivo e conduta, sendo o aumento do artigo 226, II, CP aplicável aos “cônjuges” e “companheiros” em outros ilícitos sexuais. Doutra forma, haveria duas normas tratando do mesmo caso. Ainda assim é um tanto estranho que haja aumentos diferentes para as mesmas relações em uns e outros crimes sexuais. Retomando a questão do marido, ex – marido, namorado etc. e aqueles que não estão previstos no artigo 218 – C, § 1º., CP, tais como pais, padrastos, madrastas, tio, irmão, tutor, curador, preceptor ou empregador, mencionados, por seu turno, no artigo 226, II, CP. Nessas situações é que realmente avulta intensamente a desproporção. Não há como separar a aplicação do § 1º., do artigo 218 –C, CP somente a ele e o aumento do artigo 226, II, CP para outros ilícitos sexuais. Acontece que nesse caso não há repetição dos pais e outros no § 1º., do artigo 218 – C, CP, impondo-se, como vislumbrou Gilaberte, a aplicação subsidiária do aumento do artigo 226, II, CP. E com isso uma situação de insegurança e desproporção se apresenta, pois ora o aumento poderia ser menor do que o do artigo 226, CP (1/3), ora maior (2/3), quando, em verdade, não há motivação sustentável para essa distinção. Eventualmente, poderá ser reconhecida a inconstitucionalidade do artigo 218-C, § 1º.,CP, restando ao juiz exacerbar sempre a pena no patamar de metade, equalizando as situações numa posição intermédia, com vistas ao artigo 226, II, CP. Ou então poderia o legislador corrigir essa impropriedade revogando o § 1º., do artigo 218 –C, CP e incluindo as relações de afeto íntimas atuais ou pretéritas e o intuito de vingança ou humilhação no artigo 226, II, CP, mantendo o aumento de metade da pena ou o exacerbando para o intervalo de 1/3 a 2/3. Por agora, fica-se com uma situação bastante estranha em termos sistemáticos e de proporcionalidade.
O artigo 218 – C, “caput”, CP, portanto, em sua forma simples, é crime de dolo genérico porque a lei não estabelece qualquer especial fim de agir. Também o é mesmo na forma majorada do seu § 1º., quanto às relações íntimas de afeto. Entretanto, no caso da última parte do § 1º., quando a lei se refere ao fim especial de “vingança ou humilhação”, há a configuração de um “dolo específico”. Nesse caso, será o especial fim de agir do infrator, pretendendo vingar-se da vítima ou humilhá-la, que justificará a exacerbação punitiva. Os intuitos de vingança ou de humilhação nada mais são do que exemplos de motivação torpe do agente, o que justifica a exasperação punitiva. Esses são casos conhecidos como “revenge porn” ou “pornografia de vingança”, os quais normalmente eram anteriormente tratados como meros crimes contra a honra majorados. 29 Neste aspecto, é de notar que o Artigo 218 – C, §1º., “in fine”, CP, constitui “novatio legis in pejus”, não podendo retroagir àqueles que praticaram tal conduta antes da promulgação da Lei 13.718/18.
Poderá aparentar que essas circunstâncias em que o agente pretende se vingar ou humilhar a vítima serão necessariamente informadas pelo anterior envolvimento afetivo, previsto no mesmo parágrafo sob comento. Na maioria dos casos isso realmente ocorrerá, mas não necessariamente. Poderá haver veiculação de imagens de pessoa com quem o agente tenha ou teve relação íntima de afeto pelos mais variados motivos, dentre os quais a mera “diversão” ou “exibicionismo” e não vingança ou humilhação. Por outro lado, a atuação com intuito de vingança ou humilhação, poderá sim ser, e na maioria das vezes o é, motivada por frustrações amorosas em relacionamentos desfeitos. Não obstante, a mesma conduta poderá também ter uma outra variedade enorme de motivações, como, por exemplo, a despedida de um emprego, uma punição administrativa, desentendimentos financeiros ou negociais, inveja, ódio etc. Fato é que as motivações para o aumento de pena pode ocorrer conjuntamente sim, mas não necessariamente. No caso de ocorrência de exposição de pessoa com que se mantém ou manteve relação íntima e ainda por motivo de vingança ou humilhação, há que considerar que o aumento é variável entre 1/3 e 2/3, devendo tal situação ser levada em conta na aplicação do índice de exasperação. 30
O crime do artigo 218 –C, CP admite em geral tentativa e pode, em certos verbos, ter caráter permanente, como, por exemplo, nos de “disponibilizar”, “transmitir”, “expor à venda” ou “divulgar”. Sanches Cunha, porém, entende que não é possível a tentativa no verbo “oferecer”, eis que não passível de fracionamento, sendo condutas antecedentes meros atos preparatórios. 31 Quanto à causa de aumento de pena devido ao fim de humilhar ou praticar vingança contra a vítima, o fato de conseguir o autor obter a efetiva humilhação ou vingança é irrelevante para a configuração da majorante. Trata-se de aumento de pena de caráter subjetivo, relativo à motivação dos atos do infrator e não ao resultado efetivo de sua atuação.
Há ainda a previsão de uma exclusão de ilicitude ou de crime no artigo 218 – C, § 2º., CP. Isso se dá quando o agente pratica qualquer das condutas previstas no “caput” em publicação de natureza jornalística, científica, cultural ou acadêmica, tomando, obviamente, o cuidado de impossibilitar a identificação da vítima, a não ser no caso de autorização expressa desta se for maior de 18 anos e capaz. Ou seja, os menores devem ter sua imagem preservada, independentemente de sua autorização ou mesmo de seus responsáveis. Isso se deve basicamente aos artigos 5º., 17 e 18, do ECA (Lei 8069/90), bem como ao artigo 143, Parágrafo Único do mesmo diploma, o qual estabelece o direito de não veiculação de identificação ou imagem de qualquer espécie, mesmo quando a criança ou adolescente é praticante de ato infracional. Embora a lei não seja expressa, no caso de deficientes mentais sem discernimento, ressalvadas as circunstâncias em que seja legalmente considerado capaz, nos termos do Código Civil e do Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/15), também sua identificação deverá ser preservada, independentemente de seu consentimento. Relembremos que se a vítima for menor, mesmo nos casos do artigo 218, § 2º., CP, a não preservação da identidade não levará ao crime do artigo 218 –C, CP, mas àqueles previstos na legislação especial (ECA – Lei 8069/90), conforme já exposto.
A não criminalização dessas condutas se dá por ponderação entre o resguardo da intimidade das pessoas e a liberdade de informação, científica, artística e de pesquisa. Ademais, nesses casos o agente não apresenta o elemento subjetivo necessário à configuração do crime, qual seja, a vontade de expor a vítima pura e simplesmente. Seus objetivos são de outra ordem e encontram abrigo no ordenamento jurídico. Porém, mesmo nesses casos, se a preservação da identidade da vítima não é observada, afastada ficará a citada excludente, respondendo normalmente o agente pelo artigo 218 – C, CP. A única situação em que a identidade poderá deixar de ser preservada, será com a autorização expressa da potencial vítima, acaso maior e capaz. A lei não exige, mas será de boa cautela obter essa autorização expressa por escrito e na presença de testemunhas, a fim de evitar qualquer contratempo posterior.
Por derradeiro é interessante observar que o artigo 218 – C, CP foi incluído no Capítulo II, do Título VI do Código Penal, ou seja, dentre os “crimes sexuais contra vulnerável”. Malgrado isso, fato é que, como já visto, as vítimas de tal infração poderão ser vulneráveis ou não. Parece que havendo possibilidade de vítimas vulneráveis, optou o legislador por alocar o dispositivo no tópico especial, embora nem sempre vá envolver a conduta uma vítima vulnerável.