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Primeiras impressões sobre o crime de importunação sexual e alterações da Lei 13.718/18

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20/11/2018 às 16:16
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5. DAS ALTERAÇÕES NA AÇÃO PENAL DOS CRIMES CONTRA A LIBERDADE SEXUAL

Estabelecia o artigo 225 e seu Parágrafo Único, CP que a ação penal nos crimes contra a liberdade sexual era, em regra, pública condicionada à representação do ofendido. Excepcionalmente, no caso de vítimas menores de 18 anos ou vulneráveis a ação seria pública incondicionada. Na verdade, o dispositivo era elaborado com certa impropriedade, pois o “caput” dizia que ação seria pública condicionada para os crimes dos Capítulos I e II, abrangendo, portanto, os crimes sexuais contra vulnerável. Na verdade, a ação seria realmente condicionada somente nos casos do Capítulo I, ainda assim se a vítima não fosse menor de 18 anos e maior de 14, por força do Parágrafo Único do mesmo dispositivo. Já com relação ao Capítulo II, que trata dos crimes sexuais contra vulneráveis, a ação seria sempre e invariavelmente incondicionada, inexistindo a regra do “caput” na prática, sendo a vítima menor de 14 anos, enferma ou débil mental sem discernimento ou pessoa que, por qualquer outra causa, não pudesse ofertar resistência.

Portanto, para as vítimas maiores e capazes, a ação penal nos Crimes do Capítulo I seria pública condicionada à representação, havendo respeito à deliberação do ofendido, tendo em vista que os delitos sexuais envolvem questões de foro íntimo nas quais o Estado não deve se imiscuir unilateral e arbitrariamente.

Ocorre que com o advento da Lei 13.718/18 o Parágrafo Único do artigo 225, CP foi revogado, sendo dada nova redação ao “caput”, determinando que a ação penal nos crimes previstos nos Capítulos I e II do Título VI do Código Penal Brasileiro será sempre e invariavelmente pública incondicionada.

Em que pese a alegação de que muitas vezes as vítimas podem ser coagidas a não representar, fato é que essa ingerência na decisão de uma pessoa maior e capaz (homem ou mulher), a respeito de práticas criminais que invadem uma seara por demais íntima, não nos parece o melhor caminho, mas sim a representação legal de uma cegueira punitivista que acaba prejudicando interesses das próprias vítimas, mediante a adoção de uma postura paternalista injustificada.

Trata-se, de acordo com Feinberg, de uma espécie de “Paternalismo Legal” que seria “censurável” porque trata adultos capazes como se fossem pessoas incapazes, forçando-os “a agir ou deixar de agir de certa maneira”, o que constitui uma violação “à autodeterminação e autonomia de vontade de seres competentes”. 32

Neste sentido:

“Neste ponto pensamos que andou mal o legislador e, ao aparentemente ampliar a proteção da vítima (maior e capaz), o que fez foi menosprezar sua capacidade de decisão, escolha e conveniência. A exigência de representação para vítimas maiores e capazes, por ser um ato sem formalidade ou complexidade, assegurava à vítima o direito de autorizar ou não a persecução penal. Era uma condição de procedibilidade que denotava respeito ao seu poder decisório, importante neste tipo de delito, em que a violência afeta diretamente a intimidade e a privacidade, além da liberdade sexual”. 33

No mesmo diapasão, com acerto, se manifesta Gilaberte Freitas:

“Cuida-se de lamentável concessão do legislador a protestos punitivistas que bradam pela pena e esquecem-se que, nos crimes sexuais, existe uma vítima que precisa ser preservada. Com a nova disciplina, a pessoa violentada não mais poderá procurar a autopreservação, contornando os processos de vitimização secundária e terciária, mas obrigatoriamente será submetida a eles.

O recado do legislador é claro: o que importa é punir, pouco importando o bem – estar da vítima, caindo as máscaras de fingida preocupação. Essa é a consequência de um direito penal estudado e manejado sem apoio na criminologia – mais especificamente, na vitimologia”. 34

Diverso não é o posicionamento de Sanches Cunha:

“Contudo, igualar todas as formas pelas quais o crime pode ser praticado para retirar da vítima qualquer capacidade de iniciativa parece um retrocesso – e aqui está o ponto negativo da mudança.

O Estado, em crimes dessa natureza, não pode colocar seus interesses punitivos acima dos interesses da vítima. Em se tratando de pessoa capaz – que não é considerada, portanto, vulnerável -, a ação penal deveria permanecer condicionada à representação da vítima, da qual não pode ser retirada a escolha de evitar o strepitus judicii” (grifos no original). 35

O ideal seria não haver alteração no trato da ação penal nos crimes sexuais. Quando a antiga regra da ação penal privada foi abolida para adotar a pública condicionada, esse foi um passo correto, pois crimes de gravidade como o estupro, por exemplo, não se harmonizam com a natureza privada da ação penal. No entanto, a manutenção do poder decisório da vítima, ao menos até a denúncia (artigo 25, CPP), com a adoção da ação pública condicionada era o ideal.

De qualquer forma, com ou sem críticas, fato é que atualmente a ação penal nos delitos contra a liberdade sexual e contra vulneráveis é, indistintamente, incondicionada.

Tendo em vista essa alteração, os novos crimes previstos nos artigos 215 – A, CP e 218 – C, CP, serão ambos de ação penal pública incondicionada, sendo ou não a vítima vulnerável ou menor de 18 anos.

Rômulo Moreira chama a atenção para uma questão importante. Trata-se da aplicação intertemporal da nova regra da ação penal. O autor conclui, com acerto, tratar-se a exigência ou não de representação para a ação penal um “dispositivo legal” de “aspecto híbrido”. Enquanto “condição de procedibilidade” a representação tem caráter “processual penal”, mas não deixa de tocar o “Direito Material”, uma vez que submetida a prazo decadencial que pode ensejar a “extinção de punibilidade, pela decadência, nos termos do artigo 107, IV, do Código Penal”. Aí fica patente o aspecto “material do artigo 225 do Código Penal”, tratando-se, “portanto, de uma norma processual penal material”. Daí se conclui que com relação aos crimes contra a dignidade sexual, conforme artigos 213 a 218 – C, CP, perpetrados antes do vigor da nova legislação (importando aqui “a data da ação ou omissão, nos termos do art. 4º. do Código Penal”) a partida da persecução penal, incluindo a instauração do Inquérito Policial, segue dependendo de representação, a não ser que a vítima seja menor de 18 anos ou vulnerável. Em outros termos, o novo artigo 225, CP não pode retroagir a casos pretéritos, eis que sua parte material é prejudicial ao réu pela eliminação de uma condição de procedibilidade que pode conduzir à extinção da punibilidade pela decadência. Haverá, então, para os casos anteriores à vigência da Lei 13.718/18, ultratividade da exigência de representação, valendo a regra da ação penal pública incondicionada em geral apenas para os casos que ocorram após a vigência da lei em destaque. 36


6. DOS AUMENTOS DE PENA E SUAS ALTERAÇÕES

O artigo 226, CP prevê dois incisos com aumentos de pena para os crimes contra a liberdade sexual e para os crimes sexuais contra vulnerável, sendo sua aplicação genérica. Havia um inciso III, mas este foi revogado pela Lei 11.106/05.

A Lei 13.718/18 mudou a redação do artigo 226, inciso II, CP de forma bastante sutil. A quantidade de aumento foi mantida na metade e as relações de parentesco e responsabilidade entre autor e vítima foram mantidas. Apenas houve a troca da palavra “tem” por “tiver” autoridade sobre a vítima. Sinceramente, não se enxerga a utilidade dessa mudança.

Novidade ocorre realmente com a criação de um novo inciso IV no artigo 226, CP, com previsão de aumento de pena de 1/3 a 2/3 se o crime é praticado:

a)Em ato de “estupro coletivo”, havendo concurso de dois ou mais agentes.

b)Em ato de “estupro corretivo” para controlar o comportamento social ou sexual da vítima.

A previsão do artigo 226, IV, alínea “a” aparenta redundância na medida em que no mesmo dispositivo o concurso de agentes já enseja aumento da quarta parte, conforme inciso I.

Pode surgir a interpretação de que doravante teria ocorrido uma revogação tácita do inciso I pelo novo inciso IV, alínea “a”, ou mesmo que no conflito deveria prevalecer o inciso I porque mais benéfico ao réu (aumento de apenas um quarto em comparação com um terço a dois terços). 37 Mas, entende-se que essas não seriam as melhores interpretações. Na verdade, parece bastante claro que o artigo 226, IV, “a”, CP se refere somente aos crimes de “Estupro” e “Estupro de Vulnerável”, enquanto que o artigo 226, I, CP seguirá sendo aplicado aos demais crimes sexuais. Dessa maneira, havendo concurso de duas ou mais pessoas para a prática de estupro ou estupro de vulnerável a pena será aumentada de 1/3 a 2/3 (artigo 226, IV, “a”, CP). Já se houver concurso de duas ou mais pessoas para quaisquer outros delitos sexuais, o aumento será de um quarto (artigo 226, I, CP).

Neste sentido:

“A novel legislação ainda pretendeu elevar, para um a dois terços, a majorante nas hipóteses de concurso de dois ou mais agentes, influenciada por deploráveis episódios conhecidos como estupro coletivo, expressão que dá nome à causa de aumento inserida na alínea ‘a’, do novo inciso IV, do artigo 226 do Código Penal. Entretanto, foi mantido o inciso I do mesmo dispositivo, que estabelece majorante mais branda, de quarta parte, para a mesma circunstância. De toda sorte, para conciliar as duas causas de aumento, uma solução será restringir a mais recente do inciso IV aos crimes de estupro (incluindo o de vulnerável), e aplicar o inciso I aos demais delitos sexuais” (grifos no original). 38

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Ambos os aumentos ora em estudo serão aplicáveis, ainda que o infrator atue em concurso com um inimputável. Se esse inimputável for um menor, então haverá ainda o concurso formal com o crime de “Corrupção de Menores”, previsto no artigo 244 – B, do ECA (Lei 8069/90), que consiste exatamente em perpetrar infração penal com menores. Não há falar em “bis in idem” quanto ao crime do ECA, pois que os bens jurídicos tutelados nos crimes sexuais e no crime estatutário são diversos, além do fato de que o infrator poderia agir em concurso com qualquer pessoa e não necessariamente com um menor de 18 anos. Finalmente é de ressaltar que o concurso ensejará o aumento quer haja coautoria, quer haja participação, pois a lei usa o gênero (concurso de pessoas) no tipo penal e não a espécie coautoria ou participação.

No artigo 226, IV, alínea “b”, CP inova a legislação ao prever majorante também de 1/3 a 2/3 para o ora denominado “Estupro Corretivo”. Trata-se da conduta de quem pratica estupro ou estupro de vulnerável contra outrem, visando o controle do comportamento sexual ou social da vítima. Seria o exemplo de um sujeito que estupra uma mulher lésbica, pretendendo aplicar-lhe castigo ou correção quanto às suas práticas e preferências sexuais. A conduta é obviamente torpe, merecendo reprimenda mais gravosa, conforme previsto na legislação, afinal, não cabe a ninguém tornar-se sensor da opção sexual de outras pessoas, mormente usando para tanto de violência e abuso sexual. Neste caso o dolo do agente será específico, devendo pretender corrigir ou disciplinar a vítima (“animus corrigendi vel disciplinandi”).

Frise-se que o entendimento advogado neste texto é o de que ambas as alíneas do artigo 226, IV, CP, somente se aplicam aos casos de estupro e estupro de vulnerável, até mesmo pelos explícitos “nomen juris” ali inseridos pelo legislador. 39

O artigo 234 – A, CP prevê aumentos de pena para todos os crimes contra a dignidade sexual, abrangendo, assim, todo o Título VI em seus cinco capítulos.

O projeto de lei que criou o artigo 234 – A, CP, previa quatro incisos de aumento, mas os incisos I e II foram vetados. Restaram os incisos III e IV e foi nesses incisos que incidiram as alterações promovidas pela Lei 13.718/18.

No caso do inciso III o aumento devido à gravidez decorrente do ato criminoso era de metade (fixo). Agora varia de metade a 2/3.

Quanto ao inciso IV, a transmissão de DST levava a um aumento entre um sexto e metade. Agora o aumento sobe para 1/3 a 2/3. Além disso, não é somente a transmissão de DST que gera o aumento, mas também o fato de que a vítima seja idosa ou pessoa com deficiência. Existem agora três motivos autônomos para o aumento: a transmissão de DST, a condição de idosa da vítima e a condição de deficiente da vítima. Idosa é toda pessoa com idade igual ou superior a 60 anos no momento do crime (Estatuto do Idoso – Lei 10.741/03 – artigo 1º.) e deficiente é toda pessoa “que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial”, a qual, “em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas” (artigo 2º., do Estatuto da Pessoa com Deficiência – Lei 13.146/15). Importante ressalvar que, no caso dos deficientes, essa deficiência não poderá ser ensejadora da condição de vulnerabilidade, pois que isso já fará com que o autor da conduta incriminada incorra na penas mais gravosas e nos tipos penais mais amplos dos crimes sexuais contra vulnerável. A aplicação do aumento de pena devido à deficiência constituiria, nessas condições, “bis in idem”.

Com exceção do aumento de pena do artigo 226, II, CP, onde praticamente não há mudança considerável, todos os demais casos ensejam reprimendas mais gravosas ou criam novas causas de majoração, de forma que constituem “novatio legis in pejus”, não podendo retroagir aos casos pretéritos.


7. DAS REVOGAÇÕES EXPRESSAS

Como já visto, na alteração da ação penal nos crimes contra a liberdade sexual e sexuais contra vulnerável, a Lei 13.718/18 revogou o Parágrafo Único do artigo 225, CP, tornando a ação penal, indistintamente e invariavelmente, pública incondicionada.

Também foi revogada expressamente pela legislação em comento a contravenção penal de “Importunação Ofensiva ao Pudor” (artigo 61, LCP). Doravante, condutas que se amoldariam a esse dispositivo, serão consideradas como crime de “Importunação Sexual”, nos termos do artigo 215 – A, CP.

Uma lacuna é criada pela revogação do artigo 61, LCP. Ocorre que o artigo 215 – A, CP somente incrimina a prática de condutas que possam ser consideradas como “atos libidinosos”. Dessa forma, casos que até então eram exemplos de infração ao ora revogado artigo 61, LCP, tais como gracejos inoportunos, verbalizações desrespeitosas e despudoradas, sons com conotação sensual dirigidos a alguém, entre outros atos indesejáveis e incomodantes, não encontram tipificação específica. Uma solução cabível será a utilização, nessa lacuna, do artigo 65, LCP (Perturbação da Tranquilidade) ou, dependendo o caso, do crime de Injúria (artigo 140, CP).

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Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Primeiras impressões sobre o crime de importunação sexual e alterações da Lei 13.718/18. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5620, 20 nov. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/70388. Acesso em: 5 nov. 2024.

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