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Apropriação indébita do ICMS

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15/12/2018 às 15:00
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4 EFEITOS POSITIVOS DA DECISÃO DO STJ NA PRESERVAÇÃO DA ORDEM TRIBUTÁRIA E ECONÔMICA

A partir da decisão do STJ no HC 399.109-SC, mantendo-se a punição do agente que, com dolo, aproprie-se de valores referentes aos impostos sobre consumo, cobrados de terceiro, na forma do artigo 2º, II, da Lei n. 8.137/1990, tem-se, como primeira consequência, o fortalecimento da ordem tributária, como bem jurídico tutelado pela norma penal.

De fato, o Estado Social, consagrado pela Constituição Brasileira de 1988, por inspiração da Constituição Alemã de Weimer, tem como pilares fundamentais a preservação da dignidade da pessoa humana e dos valores do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, III e IV da CRFB/1988).

Quanto a primeira, a finalidade social do Estado se dá na prestação dos serviços públicos essenciais à população, com especial foco em saúde, segurança e educação. Tais serviços, diretamente ligados aos Estados como entes da Federação, pressupõem a existência de recursos suficientes para atendimento, que se dá, primordialmente, na coleta de tributos.

Nesse caso, a premissa da criminalização, consubstanciada na apropriação de valores para os quais a própria legislação[20] e jurisprudência[21] já preveem não se tratar de receita empresarial, e sim retenção para entrega ao Fisco, tem por primeiro efeito induzir o contribuinte ao comportamento positivo necessário, minimizando as consequências cada dia mais danosas do planejamento tributário voltado ao não recolhimento do ICMS.

De fato, há ineficiência punitiva suficiente dos demais ramos do direito para impedir o crescimento vertiginoso dessa ilícita conduta. No direito tributário penal o Supremo Tribunal Federal vem definindo, como limite à multa moratória (única aplicável ao tributo declarado, ausente fraude fiscal com a informação que é prestada pelo contribuinte), o patamar de 20% do imposto devido (Agravo Regimental em Agravo de Instrumento n. 727.872/RS), patamar este idêntico ao fixado por lei em Santa Catarina como multa aplicável a essa infração na seara tributária (art. 53 da Lei Estadual n. 10.297/1996).

Considerando que a grande maioria das legislações tributárias permitem o parcelamento do saldo devedor dos tributos em 5 anos (60 meses), a juros de 6,5% ao ano (SELIC), tem-se um custo mensal médio do “inadimplemento” tributário em 0,87%. Obviamente, qualquer empresa, ao invés de buscar financiamento bancário – com taxas muito mais elevadas e burocracia de crédito -, terá como primeira alternativa a retenção do ICMS, afetando diretamente Estados e Municípios e se apropriando, reitera-se, de recursos que não lhe pertencem.

E isso não se dará apenas por dificuldades econômicas vivenciadas, mas para formação de capital empresarial, investimentos, ou mesmo aquisição de bens pessoais, situação cotidianamente encontrada no combate a esta espécie de delito. Essa compreensão é bem evidenciada em recente opinião do articulista e professor Luciano Souza de Godoy:

Devo, não nego, e não pago! Esse é o lema do chamado "devedor contumaz" –um empresário antiético que, diferentemente do devedor eventual, deixa de recolher tributos de forma sistemática, com o intuito premeditado de obter vantagem competitiva, gerando assim desequilíbrios concorrenciais. Como empresários ineficientes, que só funcionam por não pagarem impostos, geram um benefício (ilegal) e apenas sobrevivem à base de um custo artificialmente alcançado.

Em setores com alta carga tributária (combustíveis, cigarros, bebidas e medicamentos), de consumo imediato e baixa margem de retorno, o fato de não pagar impostos concede ao empresário-devedor contumaz uma vantagem competitiva abissal.

Só para se ter uma ideia, em um maço de cigarro vendido a R$ 3, os impostos chegam a R$ 2. Da mesma forma, em um litro de gasolina C, cujo o custo ao consumidor final é em torno de R$ 3,50, o Fisco abocanha R$ 2.

Uma dúvida sempre aparece quando se debate este assunto: como essas empresas permanecem por tanto tempo à margem da legalidade? Apesar do evidente absurdo, a explicação é simples.

O devedor contumaz necessita do litígio tributário com o Fisco para alongar a sua permanência no mercado. Discute e rediscute em processos administrativos e judiciais, patrocina teses jurídicas esfumaçadas que confundem a Justiça e as procuradorias públicas.

Num momento de crise econômica e grande deficit de arrecadação, combater o devedor contumaz é uma necessidade para estancar a sangria da falta de pagamento de tributos em setores com alta inadimplência. Entre os 500 maiores devedores do país, há vários que acumulam dívidas acima de R$ 1 bilhão. Usam e abusam da morosidade da Justiça, da burocracia dos fiscos, valendo-se da jurisprudência tradicional do Supremo Tribunal Federal que proíbe ao Poder Público aplicar sanções políticas para cobrar tributos.

Tais precedentes vêm de uma época em que havia tão somente a figura do devedor eventual, aquele que deixa de pagar impostos por uma dificuldade momentânea, passageira, cuja superação o coloca de volta à normalidade. Nesse caso, um programa de parcelamento gera resultados positivos.

Já o devedor contumaz age na contramão da ética. Deixar de pagar a dívida fiscal faz parte do negócio. A perda da arrecadação para o Fisco é permanente, nunca mais se recupera. O patrimônio dessas empresas, normalmente ocultado em nome de "laranjas", alimenta a corrupção, o crime organizado e a lavagem de dinheiro. [...][22]

De fato, essa percepção é extremamente relevante. Não obstante se fale em punição desproporcional ao devedor eventual, é imperioso que se destaque que a este existirá inúmeras alternativas legais, integrantes da permissiva legislação brasileira (pagamento do tributo, parcelamento, etc.). Trata-se, ainda, de crime de menor potencial ofensivo, cuja pena é sujeita ao benefício penal da transação (art. 72 da Lei n. 9.099/1995) ou, na pior das hipóteses, ao benefício da suspensão condicional do processo (art. 89 da mesma Lei).

Os pequenos empreendedores, de regra, estarão afastados deste delito, na medida em que dificilmente atingirão patamar superior ao mínimo necessário para ajuizamento fiscal (hoje em R$ 20.000,00, muito superior, destaca-se, a média de valores subtraídos nos delitos de furto Brasil afora, cujos sujeitos ativos se encontram, cotidianamente, nos presídios locais), patamar que norteia o princípio da insignificância penal no âmbito dos delitos fiscais[23]. Fora de tal hipótese, ainda, há a prévia avaliação da existência do dolo, a análise de eventuais excludentes de ilicitude para, então, ocorrer a aplicação destes institutos despenalizadores e, ao final, se o pior acontecer, e o processo criminal não restar fadado a prescrição – circunstância comum em caso de penas de pequena monta sujeitas, no Brasil, a até quatro jurisdições – eventual pena aplicada será pena alternativa, na forma do art. 54 do Código Penal.

Portanto, não se trata de punir desproporcionalmente tal conduta. Pode-se perquirir, então, com tudo isso, qual a justificativa para se defender a punição desta conduta. A resposta é simples. Para além da prevenção geral, evitando sua prática – antes uma punição branda do que uma ausência de punição! -, não há como se admitir a prática de planejamento tributário que envolva o não recolhimento de tributos, afetando, por consequência, no segundo momento, outro pilar da República, a livre iniciativa, e seu elemento de defesa e proteção, o direito à livre concorrência empresarial.

De fato, os recalcitrantes, denominados vulgarmente como “devedores contumazes”, aqueles que habitualmente praticam a conduta de apropriação indébita do ICMS, tem crescido exponencialmente no âmbito dos Estados, seja por conta da criminalização inexistente (em muitos Estados a jurisprudência negativa a existência deste delito foi predominante) ou pela punição inócua (o baixo grau de sanção não tem inibido esta prática delitiva). A partir da identificação destas condutas é possível aferir o surgimento de três perfis majoritários:

a) “Planejador tributário”: o primeiro padrão, decorrente da criação de um ilícito planejamento tributário, é de fato o mais habitual. O Contribuinte apropria-se do valor reiteradamente, ante seu baixo custo econômico (como dito, de 0,87% ao mês), posterga o decurso do processo administrativo ou mesmo a execução fiscal o máximo possível no tempo para, então, gozar de um dos inúmeros benefícios de parcelamento tributário (criticáveis, mas que acabam por se tornar necessários justamente por conta dessa ação planejada de “inadimplência”), que invariavelmente excluem significativa parcela de juros e multas (no último ano, por exemplo, veja-se a autorização promovida no Convênio ICMS/CONFAZ n. 79/2018, que permite a redução de multa e juros de 90%, transformando o custo do “planejamento” de 0,87% ao mês para 0,09% ao mês!). Essa conduta ocorre não apenas em virtude de dificuldades econômicas, mas também como estratégia de levantamento de capital de giro, muito mais barato do que na rede bancária oficial.

b) Devedor habitual/impossível de cobrança administrativa: agindo da mesma forma do planejador, esta espécie de agente praticante do delito descrito no artigo 2º, II, da Lei n. 8.137/1990 costuma iniciar sua conduta seja como “devedor eventual” ou como “planejador tributário”. Distingue-se destes, porém, quando, no exercício da atividade econômica, passa a integrar parcela do lucro do crime (valor de tributo cobrado e retido) em seu preço, praticando-o a margem do valor do tributo devido. Assim, sua atividade comercial se torna inviável se, ao final, tiver que entregar o valor retido ao Fisco, não possuindo fluxo de caixa para tal. Consegue, pela mesma estratégia acima, e beneficiado pela rotina de percepção de pró-labore compatível com a função, e ausência de bens na empresa para além daqueles necessários à atividade econômica (quase sempre impenhoráveis, até porque muitas das vezes locados), amparado nas restrições de desconsideração da personalidade jurídica, e com a justificativa frequente da “função social da empresa” (manutenção da atividade econômica, sua importância, e da geração de emprego), permanecer no mercado de forma predatória por diversos anos, até eventual falência, gerando, como principal efeito, o total desmantelamento da concorrência, que ou quebra ou passa a agir de forma similar como única alternativa para manutenção de sua atividade.

c) fraudador escondido ou fraudador não tributário: aqui se está diante da pior espécie do praticante da conduta de apropriação indébita tributária, porque este agente, de fato, age movido pelo intento criminoso da prática de “fraude não tributária”. De regra, este agente inicia sua conduta na prática de delitos de fraude tributária ou mesmo na forma de devedor habitual, migrando, posteriormente, para esta espécie de engenharia criminosa. Na certeza da impunidade da conduta de apropriação do ICMS (seja pelo afastamento do status de crime quanto pela punição inócua), esse agente planeja sua ação de forma a tornar inviável o exercício da atividade empresarial, se o imposto tiver que ser entregue ao fisco. Permanece no exercício da atividade pelas mesmas justificativas da necessidade da manutenção da atividade econômica (geração de emprego, etc.), porém sua conduta é qualificada pela maquiagem não fiscal do proveito da atividade econômica. Explica-se. A análise contábil demonstrará o limite do fluxo de caixa e, portanto, qualquer atividade regular de fiscalização, ou mesmo a execução fiscal, não terá como distinguir esse fraudador do devedor habitual, porque a aparência de sua ação é idêntica a daquele. O que os distingue, porém, é que, neste caso, o fluxo contábil estará maquiado com a geração de despesas inexistentes, extra tributárias (fugindo, assim, da prática de fraude fiscal), de forma a tornar a empresa inviável para o recolhimento do valor do tributo, enquanto retira o proveito do crime tributário por meio da lavagem de ativos para o nome de terceiros, visando a fruição futura. A forma mais comum é por intermédio de prestadores de serviço inexistentes, contabilmente remunerados, porém com a receita destinada a “laranjas”, aonde estará o verdadeiro ganho da atividade empresarial. Esse agente é impossível de ser descoberto pelos meios ordinários de investigação, já que a fraude está encoberta contabilmente, sendo a única forma possível a investigação criminal, que apontará a existência da lavagem de capitais, tendo por delito antecedente a apropriação indébita do ICMS.

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As três condutas, distintas e gradativamente mais gravosas conforme a hipótese, só são puníveis criminalmente por força do reconhecimento da adequação típica da apropriação indébita do ICMS. A última delas, a mais danosa, só é descoberta justamente a partir da investigação criminal da lavagem de capitais, que somente é possível, por força do artigo 1º da Lei n. 9.613/1998, com o reconhecimento da existência de um delito antecedente – no caso, a apropriação indébita do ICMS.

A força, portanto, da tese firmada pelo Superior Tribunal de Justiça no HC 399.109-SC é de reiteração de proteção a ordem tributária e econômica (atacada pela concorrência desleal). Assim, o posicionamento da Corte da Cidadania serve de alento ao combate da criminalidade macroeconômica, na proteção dos interesses difusos do cidadão (beneficiário direto dos tributos sonegados/apropriados), sem descurar da juridicidade necessária aos seus posicionamentos.

Nesse aspecto, o que se vê é uma injusta crítica à percepção econômica constante do julgado, como se tal recurso não fosse válido a destacar e demonstrar a necessidade de preservação do bem jurídico tutelado pela norma penal. Postula-se um salvo conduto ao ilícito, transformando-o em algo natural, em “mera inadimplência”, descurando de que o bem jurídico protegido pela lei punitiva é muito mais do que isso, é o potencial desarranjo do sistema de tributação (que nos Estados e mesmo Municípios é altamente – senão exclusivamente – dependente dos impostos sobre consumo) e a preservação da própria ordem econômica quanto a ataques indevidos de uma concorrência predatória e desleal.

Por fim, não se trata aqui de punir o empreendedor. Este, diligente, bem saberá compactuar o seu negócio, cumprir seus deveres fiscais e atender a obrigação de repasse de tributos indiretos cujo valor venha a cobrar de terceiros. Quanto a esses, se “inadimplentes eventuais”, a imposição de eventual sanção criminal haverá de transpor a insignificância penal (patamares de não ajuizamento da ação fiscal, o que por si só já exclui os pequenos empresários de qualquer sanção), a demonstração do dolo, as excludentes de ilicitude, as hipóteses de extinção da punibilidade do crime ou de suspensão processual pelo pagamento ou parcelamento (ora, se é um devedor eventual parece que a adesão a um programa de parcelamento tributário não será de maior dificuldade), ou mesmo as medidas despenalizadoras da Lei n. 9.099/1995. Aos demais, porém, a sanção criminal, ainda que inócua pela baixa sanção aplicável ou os eventuais efeitos da prescrição, exercerá importante papel educativo, notadamente pela descoberta de eventuais manobras de lavagem de dinheiro.

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Sobre o autor
Giovanni Andrei Franzoni Gil

Advogado entre 2001 e 2003, Promotor de Justiça no Ministério Público do Estado de Santa Catarina desde 2003, Coordenador do Centro de Apoio Operacional da Ordem Tributária desde abril de 2015

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GIL, Giovanni Andrei Franzoni. Apropriação indébita do ICMS. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5645, 15 dez. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/70822. Acesso em: 26 abr. 2024.

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