1 - A Violência se Espalha Pelo Brasil
A nossa Carta Magna estabelece que a segurança pública é obrigação do Estado. Entretanto, é fato inquestionável que o poder público não cumpre satisfatoriamente este seu importante dever constitucional, pois se o fizesse, não teríamos uma taxa de homicídios vergonhosa, com quase sessenta mil assassinatos por ano, que só encontra paralelo com nações envolvidas em conflitos armados ou em guerra civil. Não é possível mais contemporizar com tal situação. Devemos fazer uma reflexão profunda sobre as origens e implicações desta violência epidêmica para o futuro do nosso país, até como nação soberana, mormente agora com a ascensão do crime organizado, constituindo elemento especialmente desagregador do nosso já fragilizado tecido social.
O domínio dos morros da cidade do Rio de Janeiro pelas várias facções criminosas e/ou milícias que controlam o tráfico de drogas na cidade é paradigmático. Já faz muito tempo que essas organizações criminosas se apossaram de frações do território nacional, nelas exercendo seu poder, confrontando diretamente o Estado brasileiro quando este tenta exercer alguma influência local, o que tem provocando incontáveis vítimas, inclusive, moradores inocentes. Como a sociedade brasileira nunca se mobilizou de maneira eficaz exigindo uma solução definitiva para o problema, deixou espaço aberto para que ao longo do tempo a criminalidade ficasse mais forte e organizada, reivindicando cada vez mais poder e influência, se replicando em outros estados e expandindo de maneira avassaladora por todo o território nacional, o que fica claro, por exemplo, pela onda de violência generalizada representada pelos ataques a caixas eletrônicos, bancos e empresas de transporte de valores em vários estados da federação, crimes cada vez mais frequentes e ousados, inclusive com as quadrilhas empregando armamento de guerra (fuzis, metralhadoras pesadas , granadas e explosivos).
2 - Como chegamos a esse ponto?
Essas organizações inequivocamente buscam cada vez mais criar e consolidar suas áreas de influência dentro do território nacional, com estruturas de poder autônomas e seguindo regramentos evidentemente conflitantes com as leis que regem o Estado brasileiro, e estão prosperando em grande medida devido a vergonhosa incompetência das nossas autoridades. Na área policial, faltam investimentos, especialmente na qualificação do pessoal técnico e modernização dos laboratórios de criminalística, o que compromete o resultado das investigações. Isto cria situações surreais, a exemplo da taxa de elucidação de crimes de homicídio, que é ínfima, variando entre 5% e 8%, enquanto o número de homicidas efetivamente presos não ultrapassa 3%(1).
Já no âmbito do processo judicial ficam evidentes as deficiências da nossa legislação, de vez que uma codificação pouco contemporânea aliada a nossa reconhecida ineficiência legislativa, produz um acervo legal detalhista e confuso, quando não, conflitante entre si, de maneira que não é difícil encontrar brechas e lacunas, que se bem exploradas, dão ao acusado a chance de escapar e/ou retardar ao máximo a condenação(2). A execução da sentença penal que transitou em julgado é um capítulo à parte. Esta fase - que deveria ser a mais temida pelos criminosos - na verdade não chega a assustá-los. A começar que a maioria daqueles condenados a pena de prisão em regime fechado, já leva em conta a progressão para o regime semiaberto após o cumprimento de apenas 1/6 dela(3) e que logo seguirá para o regime aberto. Isto sem contar as inúmeras benesses concedidas durante o período de cumprimento da pena, a exemplo das saídas temporárias, amplamente facilitadas (4).
É inegável que temos um sistema penal leniente e com pouca capacidade coercitiva em relação a essa absurda criminalidade que nos assola. Entretanto, podemos ficar em situação ainda pior, uma vez que paradoxalmente existem vozes exigindo em nome de uma visão ideológica dos direitos humanos, que o Brasil enverede ainda mais pelo caminho de limitar a capacidade punitiva do Estado, pleiteando, por exemplo, a redução drástica das penas de encarceramento, e, algumas mais radicais, sugerindo até mesmo a extinção dos presídios.
3 - Em que estamos falhando?
O discurso de menos punições e menos prisões não se sustenta, pois dentre outros equívocos, desconsidera em sua análise o papel da natureza humana na violência. Desde os primórdios, os homens fazem uso da brutalidade seja por riquezas, bens ou o que quer que os fascine ou atraia a cobiça. A única coisa que verdadeiramente impõe limite a violência humana é o temor de responder pelos próprios atos. No inicio do ano de 2017 o estado do Espírito Santo vivenciou período de greve policial. Durante a paralisação, reportagens mostraram grupos ensandecidos invadindo e saqueando supermercados e lojas comerciais(5), até mesmo em plena luz do dia. Percebia-se claramente que em grande número de casos não se tratava de pessoas desprovidas de recursos, pois buscavam bens de maior valor agregado, como televisões, e não consumíveis. O fato é que estavam participando dos saques na certeza da impunidade, uma prova viva do que ocorre quando uma comunidade deixa de contar com mecanismos de controle social, fundamentais para o combate a violência e para a manutenção da ordem pública. É inegável que a convivência dos homens em sociedade pressupõe o estabelecimento de regras claras e objetivas, bem como a aplicação de sanções a quem descumpri-las. Aliás, até as próprias organizações criminosas reconhecem este postulado e sempre o aplicam nas áreas que controlam, impondo regras de comportamento para os seus membros e também para as pessoas que lá vivem ou transitam, chegando a criar simulacros de “tribunais” para julgar e impor penas a quem desobedecer. Pode ser a morte para quem é considerado um risco para a organização (policiais, membros de quadrilhas rivais, etc.), castigos corporais e até os humilhantes, como raspar a cabeça de uma moradora que, por exemplo, ouse namorar alguém de comunidade rival(6).
Portanto, precisamos romper com esse discurso tão falso quanto inconsistente, que desconsidera que o País vivencia um evidente descompasso na implantação de seu projeto de desenvolvimento social, de um lado adotando um sistema jurídico cada vez menos punitivo e do outro tendo uma sociedade cada vez mais violenta. Um discurso que por um lado omite que quanto menos capacidade coercitiva o Estado tiver, mais poder e força as organizações criminosas vão conquistar e mais áreas vão controlar, enquanto por outro finge não perceber que com a falta de assertividade do Estado no combate à violência, o Brasil pode resvalar para a completa selvageria, pois com a crescente sensação de impunidade, certamente começaremos a assistir cidadãos e vítimas optando por fazer “justiça” com as próprias mãos(7).
4 - O Caminho para a mudança e a associação de defesa do direito de punir
No debate sobre o problema da violência que vivenciamos no nosso País, infelizmente não há pluralidade de ideias. De fato, as organizações que se intitulam “defensoras dos direitos humanos”, e que propugnam a imposição de amarras cada vez maiores ao “jus puniendi” estatal, se julgam as únicas vozes legitimadas para propor diretrizes no campo da segurança pública e reservam discurso de ódio em relação a todos que tenham opinião diversa. Portanto, entendo que no debate nacional a respeito do problema da violência epidêmica que nos atinge; há falta de diversidade de pensamento e de vozes sensatas que proclamem o que é óbvio, ou seja, que na verdade o País precisa endurecer o combate a essa criminalidade desenfreada, demonstrando de maneira lógica e racional que não existe nenhuma contradição em defender o direito de punir e ao mesmo tempo defender os direitos humanos e a justiça social, pois na verdade são conceitos indissociáveis.
Neste sentido, considero que falta no Brasil uma Associação de Defesa do Direito de Punir, congregando humanistas e verdadeiros defensores dos direitos humanos, para formalizar diretrizes na adoção de políticas de segurança pública nesse momento tão difícil para a Nação.
5 - Como combater a atual onda de violência de maneira eficaz?
Entendo que nessa fase aguda de violência que o Brasil atravessa endurecer o combate ao crime é prioridade. Isto pressupõe:
1) Investimento urgente e imediato na área policial, tanto para a formação dos agentes como para a aquisição de equipamentos, pois isso vai influenciar diretamente na qualidade das provas obtidas e consequentemente no resultado da investigação. É fato que quanto maior for o risco de ser identificado e preso, menos propenso o indivíduo ficará em cometer o crime.
2) Remodelação e reforma dos atuais presídios, como também construção de novas unidades, acabando de uma vez por todas com os problemas da superlotação e das degradantes condições atualmente vigentes nos estabelecimentos prisionais, inclusive adotando a separação dos apenados condenados por crimes de baixo potencial ofensivo, daqueles periculosos e/ou vinculados a organizações criminosas, limitando assim a sua cooptação para a reincidência delitiva após o cumprimento da sentença.
3) Revisão da nossa legislação penal, especialmente racionalizando os recursos e prazos processuais, garantindo maior celeridade nos julgamentos, obviamente sem comprometimento do direito de defesa dos acusados. Com relação a fase de execução penal é preciso repensar os benefícios dispensados aos apenados, não só no tocante aos prazos para a concessão da progressão de regime, como também em relação às saídas temporárias e até mesmo a forma como os visitantes tem acesso a eles, pois da forma atual, além de descaracterizar a seriedade com que uma condenação penal deve ser recebida, representa grave risco para a segurança, seja em decorrência da facilidade com que entram objetos proibidos no estabelecimento prisional, seja pela possibilidade do apenado repassar aos cúmplices externamente, ordens e pedidos para a prática de delitos, por exemplo, contra desafetos e testemunhas(8).
4) Que o judiciário repense o seu desempenho, bem como reveja suas formas de atuação, posto que mesmo dotado de um dos maiores orçamentos da União, gasta quase 90% do que recebe com salários e outras verbas para os seus integrantes (9), sem, no entanto, entregar a devida prestação jurisdicional de sua responsabilidade em prazos aceitáveis, o que causa inúmeros problemas, como por exemplo a superlotação carcerária decorrente da manutenção de grande número de presos provisórios aguardando julgamento (10).
6 - Como garantir um futuro com menos violência?
Essas ações se bem conduzidas certamente teriam efeito muito positivo no controle imediato da criminalidade. Entretanto, seria ingenuidade pensar que usando apenas o direito penal, resolveríamos permanentemente o problema da violência que aflige o Brasil. Na verdade, o País precisa de uma abordagem muito mais abrangente, com ações de longo prazo que eliminem as causas subjacentes responsáveis por alimentar o ciclo de selvageria e brutalidade que vivenciamos.
A Associação de Defesa do Direito de Punir certamente estará atenta a isso. Nesse aspecto, é primordial:
a) Adoção de políticas sociais prestigiando verdadeiramente a instituição da família, uma vez que núcleos familiares desestruturados e organizações criminosas sempre vicejam conjuntamente (11).
b) Por outro lado, não podemos esquecer as políticas educacionais, já que estamos regredindo neste aspecto. É inadmissível que encontremos um número cada vez maior de alunos egressos do ensino médio com dificuldade não só para realizar operações aritméticas básicas, como também, em muitos casos com incapacidade para interpretar satisfatoriamente textos, ou até mesmo elaborar uma redação minimamente lógica e coerente. Jovens sem formação escolar adequada, candidatos, portanto, ao desemprego ou subemprego, e inseridos em famílias desestruturadas são presas fáceis para as organizações criminosas.
c) Um terceiro elemento seria a recuperação do sentido de comunidade. Estamos nos tornando uma sociedade na qual o egocentrismo e a impessoalidade são as notas prevalentes. Por exemplo, quantas pessoas conversam com os seus vizinhos? Certamente poucas. Provavelmente, a maioria sequer sabe os nomes deles, se possuem filhos ou se estão passando por alguma dificuldade. Isso é trágico, pois além da perda da verdadeira noção de sociedade e cidadania, estamos desconsiderando a importância dos laços comunitários na prevenção e controle da criminalidade, seja aquela endógena, já que os laços de amizade e respeito dentro da coletividade, são fortes obstáculos para a prática de crimes por indivíduos ali insertos, seja aquela exógena, uma vez que a presença de estranhos suspeitos será facilmente percebida na comunidade, dificultando a sua ação deletéria.
7 - Conclusão
Portanto, a sociedade brasileira precisa urgentemente de um fórum verdadeiro para debate e discussão a respeito da necessária atualização da política nacional de segurança pública e direitos humanos, e um bom começo seria justamente a criação da Associação de Defesa do Direito de Punir, espaço aberto que dará voz não só para aqueles cansados de viver aprisionados em suas próprias casas, com medo da violência, como também e, especialmente, para aqueles que discordam que a criminalidade imponha regras para a nação. Em suma, para todos os cidadãos que almejam viver em um País mais justo, humano e seguro.
Não podemos esquecer que a nossa Constituição Federal estabelece que a segurança pública é dever do Estado, e um direito e responsabilidade de todos. Não se omita. Participe e divulgue se você compartilha essas aspirações, pois a falta de união de toda a sociedade é o combustível que alimenta a chaga da violência que nos aflige.
notas
(1) http://www2.camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cspcco/audiencias-publicas/audiencias-publicas-2016/ApresentaoDr.JacoboWaiselfiszFLACSO.pdf. Vide pg. 18.
(2) Paradigmático é o caso do assassinato da jornalista Sandra Gomide, cometido pelo também jornalista Pimenta Neves (após romper o namoro com o autor e se recusar a reatá-lo, a vítima recebeu dois tiros, um nas costas e outro na cabeça quando já estava caída no chão). O crime ocorreu em 2000, e mesmo tendo boa instrução processual - uma vez que o réu confessou o crime e a polícia reuniu todas as provas indispensáveis para confirmar a autoria e materialidade - a sentença condenatória só transitou em julgado em maio de 2011 (cerca de onze anos após o crime), quando foi indeferido o último recurso do réu e ele foi preso. http://www.compromissoeatitude.org.br/o-assassinato-de-sandra-gomide-por-pimenta-neves/
(3) Ainda no caso do jornalista Pimenta Neves, ele foi preso em maio de 2011. Em setembro de 2013 a Vara de Execuções Penais concedeu a progressão para o regime semiaberto.
(4) http://ultimosegundo.ig.com.br/politica/2017-05-30/festa-junina-presos.html
(5) http://www.otempo.com.br/capa/brasil/onda-de-viol%C3%AAncia-no-esp%C3%ADrito-santo-deixa-62-mortos-em-3-dias-1.1432585
(6) http://www.portaldolitoralpb.com.br/morre-mulher-que-teve-cabeca-raspada-e-foi-espancada-brutalmente-por-traficante/
(7) http://paranaportal.uol.com.br/cidades/996-policia-agiu-para-que-isso-nao-virasse-uma-tragedia-diz-delegado/
(8) http://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2017/07/27/pcc-criou-celulas-de-inteligencia-para-matar-agentes-penitenciarios-federais.htm
(9) http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/poder-judiciario-custou-mais-de-r-84-bilhoes-ao-pais-em-2016/
(10) http://g1.globo.com/politica/noticia/a-cada-tres-presos-no-pais-um-e-provisorio-diz-relatorio-do-cnj.ghtml
(11) https://www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=18993