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Uma recensão sobre o texto Acordos sobre a sentença em processo penal: o fim do Estado de direito ou um novo princípio?

13/03/2019 às 15:00
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Comentário crítico à obra “Acordos sobre a sentença em Processo Penal. O ‘fim’ do Estado de Direito ou um novo ‘princípio’?”, de Jorge de Figueiredo Dias.

A obra “Acordos sobre a sentença em Processo Penal. O ‘fim’ do Estado de Direito ou um novo ‘princípio’?” é de autoria do Catedrático Jubilado da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Doutor Jorge de Figueiredo Dias, editado pela Ordem dos Advogados Portugueses - Conselho Distrital do Porto, em novembro de 2011.

O autor, que é reconhecido investigador das Ciências Jurídicas, no campo do Direito Penal e Processual Penal, apresenta, neste estudo, uma visão crítica e ao mesmo tempo sugestiva de melhoria do sistema luso, pois retrata a necessidade de reformulação do processo penal português, em especial o fortalecimento de linhas de consenso entre as partes.

A obra, de cento e quatorze páginas, é muito técnica e possui nítidos contornos doutrinários, está organizada em dez capítulos, os quais sintetizam o pensamento jurídico-criminal do autor: I. Do necessário reforço de estruturas de consenso no processo penal. Os acordos sobre a sentença; II. Invalidade ou validade dos acordos sobre sentença? Os termos gerais da controvérsia; III. Um processo penal funcionalmente orientado: uma exigência irrenunciável do Estado de Direito; IV. Conteúdo e feitos, constitucional e legalmente admissíveis, dos acordos sobre a sentença; V. Acordos sobre a sentença e princípio da publicidade; VI. Acordo sobre a sentença e princípio da lealdade processual; VII. O âmbito subjetivo dos acordos sobre a sentença; VIII. Acordos sobre a sentença e renúncia aos recursos; IX. Capacidade de extensão do pensamento fundamental dos acordos sobre a sentença; e, X. Uma consideração final.

Com uma certa dose de exagero, formula duras críticas ao sistema quando retrata a existência de uma grave crise no sistema de justiça penal em Portugal, a qual está a se perpetuar no tempo, em que pese a ocorrência de inúmeras reformas legislativas ao longo dos anos, o que, inclusive, está a causar a perda de confiança dos portugueses.

Para isso, ele se utiliza do método de investigação dedutivo, com boa técnica redacional e sistematização de seu pensamento, ao produzir conhecimento, embasado em dados que conduz a uma séria reflexão sobre o problema tratado.

Para o autor, a situação é tão grave que o próprio Estado de Direito estaria abalado em seus fundamentos, pois todas as funções públicas e instituições estariam à mercê desta crise, precisando encontrar solução, não para exterminá-la completamente, mas ao menos amenizá-la.

Por essa razão, através desta obra, ele apresenta uma sugestão jurídica que poderia ser incorporada ao sistema penal português, sem necessidade de ser alterada a essência do processo penal pátrio, mas o próprio agir dos operadores e participantes processuais.

Em face da amplitude do tema, é certo afirmar que o autor não o esgotou totalmente e embora domine o assunto, utilizou-se de citações indiretas e das fontes tradicionais baseadas principalmente na legislação e na doutrina de origem nacional e estrangeira.

Entretanto, deixou de utilizar fontes jurisprudenciais, pois quase nenhuma menção a decisões dos tribunais é referida, tanto de Portugal quanto dos países utilizados como paradigma, o que enriqueceria o debate com a análise de alguns casos concretos.

Suas críticas são dirigidas, em especial, à demasiada procrastinação dos processos criminais em Portugal, os quais, segundo sua óptica, se arrastam interminavelmente e isso faz com que a população perca o interesse na própria Justiça, o que está a causar um sentimento até de desconfiança popular.

Mesmo que se admita ser necessário reformular o processo penal luso, o autor sustenta que o modelo acusatório integrado por um princípio subsidiário e supletivo de investigação oficial deve continuar como é hoje, mas prega o fim da característica adversarial e implementação da possibilidade de consenso entre as partes, para a efetivação de um processo penal dotado da eficiência funcionalmente orientada.

Ele recorre a, em sua argumentação, algumas experiências jurídicas criminais adotadas no exterior, como nos Estados Unidos da América, na Grã-Bretânha, na Alemanha e no Brasil, onde são admitidos, em certos casos, acordos sobre as sentenças. Menciona o exemplo norte-americano do pleabargaining, onde o promotor público e o arguido podem negociar, tanto na fase preliminar como na fase de julgamento. 

Refere-se, especialmente, ao instituto da transação penal no Brasil, onde na fase preliminar de um processo por crimes de menor potencial ofensivo, o Ministério Público pode propor a aplicação imediata da pena restritiva de direitos ou multas, e desde que aceita a proposta pelo arguido, após homologada pelo tribunal, ela entrará imediatamente em execução.

Aliás, vale ressaltar um recente avanço a que o autor não faz menção, uma vez que posterior à edição da sua obra (2011), que é a vigência, no Brasil, da Lei n. 12.850/2013, ao prever a figura da colaboração premiada no combate aos crimes cometidos por organizações criminosas, em que o juiz poderá, a requerimento das partes, conceder o perdão judicial, reduzir em até 2/3 (dois terços) a pena privativa de liberdade ou substituí-la por restritiva de direitos daquele que tenha colaborado efetiva e voluntariamente com a investigação e com o processo criminal.

Nestes casos, ao considerar  a relevância da colaboração prestada, o Ministério Público, a qualquer tempo, e o delegado de polícia, nos autos do inquérito policial, poderão requerer ou representar ao juiz até mesmo pela concessão de perdão judicial ao colaborador, e até deixar de ser oferecida denúncia, pelo Ministério Público, em algumas hipóteses (se o colaborador não for o líder da organização criminosa).

Vale lembrar: os acordos de colaboração premiada, após 2014, passaram a fazer parte do cotidiano jornalístico dos brasileiros, os quais  se tornaram  principal meio de obtenção de provas no transcorrer da Operação Lava Jato, que investiga vários crimes, mas principalmente de corrupção, cujos investigados são ex-funcionários da petrolífera Petrobras, vários políticos dos mais diversos partidos brasileiros e até Presidentes da República.

Neste sentido, a tese principal do autor é de que em Portugal se estabeleça uma discussão teórica sobre a possibilidade de implantação de acordos nos processos penais, com a implantação em seu sistema judicial criminal de meios de consensualização, o que, aliás, já sucede na Alemanha, desde 2009, com o chamado Urteilsabsprachen.

Exterioriza sua preocupação com a efetivação da realização da justiça penal, sobre tudo em delitos  econômico-financeiros, abusos sexuais de infantes, réus com grande notoriedade e de casos de corrupção, em que os processos se arrastam por anos, sem resposta adequada à comunidade.

É transparente em suas colocações ao referir que maior parte da doutrina europeia continental entende que eventuais validações de acordos processuais atentariam contra princípios fundamentais, tanto jurídico-constitucionais, como ordinários do processo penal, e comportaria em si mesma o perigo de uma violação do princípio geral do igual tratamento processual.

Por outro lado, afirma que um dos argumentos que mais sustenta a validade dos “tais acordos” seria a celeridade para solução processual, o que há de se concordar, pois justiça criminal tardia, poderá representar injustiça.

Para isso, invoca o que chama de processo penal funcionalmente orientado, o que se traduz em uma exigência irrenunciável do Estado de Direito, ante o dever estatal da segurança dos cidadãos portugueses e da sua confiança na funcionalidade das instituições estaduais, e consequentemente o dever de que esta pretensão seja levada a cabo de maneira perfeita e rápida quanto possível.

Isto porque, na sua forma de colocar o problema, o Estado de Direito só pode realizar-se quando o agente criminoso, absolutamente dentro das normas vigentes, for perseguido, sentenciado e punido em tempo razoável com uma pena justa.

No desenvolver de sua construção doutrinária, considera o elemento relacionado com a culpabilidade essencial para a ocorrência dos acordos sobre sentença, afirma que um cuidado especial deva ser dispensado às confissões, que deveriam ser comprovadas pelo tribunal, com a obrigatoriedade que elas fossem livres e não de qualquer modo extorquidas ou coagidas.

Identicamente demonstra preocupação com relação à imposição da sanção, ao argumentar que somente o tribunal, e somente a ele, competiria ponderar todas as circunstâncias do caso e encontrar o exato quantum da pena.

Embasa-se no princípio jurídico-constitucional imperativo da culpa e na obrigatoriedade constitucional de atuação do juiz no processo, por ser indelegável sua participação e para que não ficasse restrito ao papel de mero fazedor de uma operação aritmética.

Com relação a esta assertiva, com devido respeito, o autor entra em certa contradição, pois ao mesmo tempo em que prega uma justiça penal célere, consensualizada e funcionalmente orientada, mantém amarras processuais para formulação do acordo, ao sustentar a indisponibilidade às partes do resultado final do processo criminal (sanção penal).

Outro aspecto interessante, caso aceita a tese de implantação de acordos sobre sentenças reportado pelo autor, diz respeito ao princípio da publicidade, ou seja, deveria ser o acordo realizado em audiência e se fora dela estaria a ser violado referido princípio?

Para ele, o acordo alcançado entre os sujeitos do processo deveria ser em audiência de julgamento, porém, conversas preliminares teriam lugar antes e fora do referido ato processual, porém, em qualquer hipótese o tribunal deveria tornar público em audiência o conteúdo e o resultado do acordo obtido sobre a sentença.

Com procedente preocupação, ele se atém, ainda, ao princípio da lealdade processual, uma vez que, nos acordos sobre sentença, factos supervenientes poderiam surgir, tanto omitidos involuntariamente como escamoteados pelo beneficiado, o que levaria o tribunal a ter que determinar a caducidade do acordo.

Quanto à homologação do consenso, o autor sustenta a ideia de que, caso realizado por tribunal coletivo ou do júri, seria obrigatória a concordância da totalidade dos seus membros, mesmo com as conversações preliminares ao encargo do presidente. Tal hipótese pensamos que possa ser aprimorada, como já ocorre hoje no Brasil em casos de colaborações premiadas, em que é sorteado um relator e, posteriormente, a decisão é tomada por maioria dos integrantes daquele órgão colegiado.

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Na continuidade da obra surge um ponto polêmico, pois a ideia do autor é que haveria a necessidade da participação no acordo do assistente de acusação, entretanto, somos contrários a esta formalidade, uma vez que o mesmo apenas representa a vítima, por não desempenhar uma participação ativa no feito criminal.

Ressalte-se que se em algum momento o assistente de acusação não concordar com o consenso (acordo), deverá ele recorrer conforme meios legais previstos no código de processo penal.

Ainda, é defendida a premissa de que seja vedada a renúncia ao recurso no âmbito dos acordos processuais, por não parecer estar subjacente qualquer interesse legítimo. Mas, pensamos que se for cláusula consensual, nada impediria de se renunciar prazo recursal, com exceção da hipótese da existência de assistente de acusação que não tenha participado do acordo.

Por fim, há uma última discussão a requerer um maior debate:  o acordo poderia ser realizado já no inquérito? O autor sustenta que somente poderia ocorrer conversações e consensos entre o Ministério Público e o arguido nesta fase, o que não constituiria uma forma de decidir o processo.

Neste ponto, somos da opinião de que o acordo possa sim ser formalizado já na fase investigativa, desde que haja posterior homologação judicial, conforme é aceito no caso paradigmático brasileiro, da Lei de combate às organizações criminosas.

O autor conclui que deve ser mudada radicalmente a atitude, o espírito e a mentalidade dos atores de administração da justiça, pois, sejam quais forem as razões, eles preferem, ainda, manter tudo como está. Clarifica não ser seu objetivo fomentar outra alteração de leis, mas sim modificar os hábitos, as atitudes e mentalidades destas pessoas. Encerra com uma mensagem de cunho jurídico-político muito interessante e conciliadora: a necessidade de cooperação dos sujeitos processuais em tudo quanto possa facilitar, simplificar, acelerar, fomentar, ou seja, favorecer o processo.

Assim, a tese proposta pelo autor faz sentido, porém, conforme ele mesmo escreve, já é adotada em outros países, de maneira que não é original. Por sua vez, o questionamento constante do título da obra, “Acordos sobre a sentença em Processo Penal. O ‘fim’ do Estado de Direito ou um novo ‘princípio’?” não nos parece ter sido suficientemente respondido, o que faz merecer aprofundamento nos estudos. 

Portanto, observa-se que o texto, em sua distribuição, se encontra bem equilibrado, há proporcionalidade entre introdução e conclusão, é claro e faz sentido no que se refere à metodologia utilizada. Da mesma maneira, a tese apresentada tem solo fértil para evolução dos debates, ante a relevância do assunto para aprimoramento da Justiça Criminal. Em resumo: o autor apresentou a questão de forma muito bem redigida e sustentada em conhecimento jurídico coeso e robusto, o que me faz recomendar sua leitura, especialmente no momento em que se discute intensamente o assunto em nosso país.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CAVALCANTI, Fabrício José. Uma recensão sobre o texto Acordos sobre a sentença em processo penal: o fim do Estado de direito ou um novo princípio?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5733, 13 mar. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/71277. Acesso em: 18 abr. 2024.

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