Trabalho com condições análogas à escravidão em cruzeiros de luxo

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09/01/2019 às 17:29
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4 INDÚSTRIA DE CRUZEIROS E AS CONDIÇÕES ANÁLOGAS À ESCRAVIDÃO

Aproximadamente no ano de 2000, o número de pessoas que buscavam o serviço de turismo marítimo cresceu absurdamente e de acordo com estatísticas da Organização Mundial do Turismo, é o tipo de turismo que mais cresce no mundo.

Com esse crescimento exponencial da indústria de cruzeiros marítimos foram gerados milhares de empregos. De acordo com dados da Cruise Lines Internacional Association (CLIA), “na temporada de 2016/2017 foram gerados 25.279 postos de trabalho na economia brasileira”. (CLIA BRASIL, 2017, p. 24).

Ressaltando ainda, que “de acordo com a legislação de cabotagem brasileira, as operadoras de Cruzeiros têm a obrigação de preencher um mínimo de 25% de suas vagas com tripulação brasileira”. (CLIA BRASIL, 2015, s.p).

Com isso, os trabalhadores se vêem tentados com as vagas de emprego nesse ramo de turismo. Porém, muitos só conhecem as vantagens: o salário é atrativo, pago em moeda estrangeira, sem descontos, alimentação gratuita no local, seguro de vida e também a oportunidade de conhecer diversos países.

Os processos de seleção geralmente ocorrem no Brasil, por um agente intermediário, onde é realizada a entrevista e assinado os contratos com prazos determinados de seis a nove meses. Toda a formalização do contrato ocorre em solo Brasileiro, porém é comum embarcarem no estrangeiro.

Todas essas condições parecem atrativas, porém, o Ministério Público do Trabalho recebe inúmeras denúncias de trabalho escravo em navios de cruzeiro. Em 2014, o MPT resgatou cerca de onze tripulantes em um navio de luxo da empresa MSC Cruzeiros (BRASIL, 2015, s.p).

Quem opta pelo trabalho como tripulante, portanto, deve ter em mente também que muitas vezes esse trabalho possui condições degradantes e jornadas extenuantes, de doze a dezessete horas diárias. Sem direito ao descanso semanal remunerado ou férias.

É importante ressaltar que em contratos nacionais, o trabalhador marítimo está sujeito à legislação brasileira. O art. 248 da CLT prevê a jornada dos trabalhadores marítimos, a qual não poderá ultrapassar 8 (oito) horas diárias. Além disso, o parágrafo 2º ainda trata que qualquer serviço que possa prejudicar a saúde do marítimo deve ser executado com intervalos de no mínimo, 4 (quatro) horas.

Em contrapartida, nas embarcações estrangeiras, é comum a realização de jornada de 11 (onze) horas regulares mais 3 (três) horas extraordinárias por dia.

Além disso, quando o marítimo é embarcado em navios de bandeira estrangeira, geralmente se utiliza a Lei do Pavilhão.

4.1 Lei do pavilhão

O Código de Bustamante de 1928, vigente no Brasil desde 1929, foi o primeiro código internacional que passou a regular as relações jurídicas em naves, no ar e em mares internacionais. Determinou em seus  arts. 274 e seguintes a aplicação da legislação referente à nacionalidade da embarcação, a chamada Lei do Pavilhão.

A lei do pavilhão dispõe que todas as relações de trabalho da tripulação de navios, devem ser regidas pela Lei do país do registro da embarcação.

Theophilo de Azeredo Santos conceitua (1968, p.43):

O pavilhão nacional, simboliza sua nacionalidade e indica o Estado a cujo regime jurídico está submetido e é nessa ideia que se considera o navio como porção flutuante ou como prolongamento do país a que pertence, e de que defluem consequências consideráveis. Primordialmente, tem direito à proteção das autoridades administrativas, civis e militares, do país a que pertence, assistência dos navios de sua marinha de guerra, devendo reciprocamente, obediência às ordens do Governo, submissão à vigilância dos navios de guerra e às instruções dos seus agentes consulares. 

Sendo assim, as embarcações ou aeronaves são extensões fictícias do território do país ao qual pertence e, deste modo, devem ter suas respectivas legislações aplicadas.

Porém, nem sempre essa lei será adotada, devido a hipótese denominada bandeira de favor. A Bandeira de favor se verifica quando o país onde está matriculado o navio não guarda qualquer relação com aquele que explora a atividade econômica, atrelada à embarcação. 

Para Valentim Carrion (2007, p. 27):

a lei da bandeira do navio não é o critério definitivo em matéria de competência jurisdicional trabalhista; é que a relação do emprego se estabelece entre o tripulante e a empresa que explora o navio, e não entre aquele e o proprietário da embarcação [...] o que também é verdade em face do Direito Brasileiro, não só pelos princípios que o iluminam como pelo direito posto em geral quanto ao armador, inclusive no que se refere às embarcações pesqueiras [...] e pelas possíveis fraudes da 'bandeira de favor' [...]. Por isso, mesmo os que aderem àquele critério [...] estabelecem exceções importantes; é o caso de empresa sediada no Brasil que arrenda navio estrangeiro. Russomano refere-se à nacionalidade da empresa, mas no Brasil o que pesa é o lugar onde são desenvolvidas as atividades ou onde se deu a contratação, a fim de que, sempre que possível, prevaleçam a norma e a jurisdição nacionais, evitando-se artifícios que deixem o trabalhador desprotegido quanto ao direito material específico e previdenciário, assim como quanto ao processual.

Portanto, nesses casos, o registro do navio traduz fraude, ou seja, viaja com determinada bandeira, mas a empresa na verdade pertence a outra nacionalidade.

Com isso, as empresas de cruzeiros marítimos podem tentar se esquivar de suas obrigações. Tal motivo se dá para se beneficiar das legislações de determinado local e favorecer unicamente o empregador.

Em 2006, como forma de regular e padronizar os patamares mínimos dos direitos assegurados aos trabalhadores marítimos em águas internacionais entrou em vigor a Convenção Internacional dos Marítimos (Maritime Labour Convention - MLC 2006).

Mas o maior problema surge quando o trabalhador brasileiro é contratado por uma agência de cruzeiros estrangeira, e labora em diversos países, incluindo o Brasil. Neste momento existe o conflito de leis trabalhistas no espaço, que explicaremos adiante.

4.2 Convenção do Trabalho Marítimo

A Convenção do Trabalho Marítimo foi aprovada durante a 94ª Conferência Internacional do Trabalho, assinado em Genebra em 2006.

Tem como objetivo regular, de forma igualitária, a atividade dos trabalhadores marítimos contratados de diferentes países, para laborar em águas nacionais e internacionais.

Com a advinda desta Convenção, os trabalhadores obtiveram muitos direitos e garantias fundamentais, como a questão da idade mínima, intervalo entre as jornadas, direito ao descanso, questões relativas ao pagamento, férias, entre outros.

Além dos direitos e garantias exclusivas do trabalhador, a Convenção ainda conta com orientações a respeito da prevenção de acidentes e segurança do trabalho, e cooperação internacional a respeito do tema.

É, portanto, uma enorme vitória para os trabalhadores marítimos, tendo em vista que, antes de 2006 só existiam algumas normas esparsas. Essa Convenção surgiu também para evitar desigualdades tendo em vista que os tripulantes do navio são de diversas nacionalidades diferentes.

Rodrigo de Lacerda Carelli estabelece (2017, pg. 2):

Com o fim de estabelecer efetivamente esse patamar mínimo de direitos globalmente, e ser o quarto pilar da regulação internacional marítima, juntamente com as convenções chaves da Organização Marítima Internacional, a OIT teve a preocupação de, ao contrário das demais convenções, que entram em vigor doze meses após a ratificação pelo país membro, que a MLC entrasse em vigor após grande parte do setor marítimo ser atingido efetivamente. Estabeleceu-se, assim, que entraria em vigor após ser atendido o mínimo de 30 países ratificantes, bem como fossem representados 33 por cento da tonelagem bruta mundial da navegação nas ratificações. A MLC entrou em vigor em 30 de agosto de 2013.

A análise da legislação internacional evidencia assim, a existência de dispositivos específicos e até mais benéficos que atendem a situações peculiares.

4.3 Lei aplicável aos tripulantes

Há uma grande discussão pela jurisprudência, sobre qual legislação deve-se aplicar nos casos dos marítimos, com árduos trabalhos para aplicar sempre a lei mais benéfica ao trabalhador,  seja brasileira ou estrangeira.

A Justiça Brasileira somente vai ser competente para julgar reclamatórias trabalhistas dos marítimos quando a prestação de serviço ocorrer no Brasil ou quando o contrato for celebrado em território nacional.

O art. 651 da CLT demonstra:

Art. 651 - A competência das Juntas de Conciliação e Julgamento é determinada pela localidade onde o empregado, reclamante ou reclamado, prestar serviços ao empregador, ainda que tenha sido contratado noutro local ou no estrangeiro. § 2º - A competência das Juntas de Conciliação e Julgamento, estabelecida neste artigo, estende-se aos dissídios ocorridos em agência ou filial no estrangeiro, desde que o empregado seja brasileiro e não haja convenção internacional dispondo em contrário.  § 3º - Em se tratando de empregador que promova realização de atividades fora do lugar do contrato de trabalho, é assegurado ao empregado apresentar reclamação no foro da celebração do contrato ou no da prestação dos respectivos serviços.

Outro requisito muito importante é a naturalidade, o trabalhador deve ser brasileiro nato ou naturalizado, e, além disso, não pode haver tratado internacional dispondo contra a interposição de reclamatória trabalhista em país diverso.

Quando o trabalhador foi contratado no Brasil, mas presta labor no estrangeiro, a jurisprudência entende que é aplicável a lei de execução do local da prestação de serviço. No caso dos tripulantes, geralmente aplica-se a lei do pavilhão.

Porém Eliane Maria Octaviano Martins defende (2013, p.435):

Nos litígios internacionais, com fulcro no mesmo dispositivo, permite-se ao trabalhador marítimo optar por ajuizar a ação no país de celebração do contrato ou da prestação dos serviços. Permite-se, portanto, a ocorrência de forum shopping de lei ou de jurisdição. No contexto jurisdicional, o fórum shopping consiste em estratégia processual adotada por demandantes que buscam julgamento de seus litígios pela lei ou pelo tribunal, que por ventura resultem em uma decisão mais favorável à sua pretensão. Tal prática também é adotada pela parte demandada, quando esta procura tentar mudar o foro de julgamento para outro que eventualmente adotaria uma posição mais benéfica em relação à sua situação. 

O princípio da territorialidade deixou de ser unicamente utilizado com a advinda da Lei nº 7.064/1982 e posteriormente a Lei nº 11962/2009.

A referida lei, trouxe em seu artigo 3º:

Art. 3º - A empresa responsável pelo contrato de trabalho do empregado transferido assegurar-lhe-á, independentemente da observância da legislação do local da execução dos serviços: I - os direitos previstos nesta Lei; II - a aplicação da legislação brasileira de proteção ao trabalho, naquilo que não for incompatível com o disposto nesta Lei, quando mais favorável do que a legislação territorial, no conjunto de normas e em relação a cada matéria.

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Como consequência, a Súmula 207 do TST, que previa aplicação somente do princípio da territorialidade foi cancelada. A partir deste momento, os Tribunais têm adotado a norma mais favorável ao trabalhador.

Assim, há possibilidade da aplicação da norma mais favorável, pois o trabalhador é a parte mais frágil da relação, e, deste modo, deve-lhe aplicar a lei mais benéfica sempre que possível.

Hussek explica (2015, p.218):

Há necessidade de ponderar o caso concreto. Por exemplo, no caso de navio com a bandeira de outro país, de legislação trabalhista mais frágil, mas cujo proprietário é brasileiro e o empregado (marinheiro é também nacional, aqui contratado, seria absurda a aplicação de lei do domicílio do armador. Seria uma exceção à lei da bandeira, no caso de empresa sediada no Brasil que arrenda navio estrangeiro.

O Colendo Tribunal Superior do Trabalho, decidiu (TST, 2013):

"AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA. EMPREGADO CONTRATADO NO BRASIL E QUE DESENVOLVEU PARTE DO CONTRATO DE TRABALHO EM ÁGUAS TERRITORIAIS BRASILEIRAS. INCIDÊNCIA DA LEGISLAÇÃO BRASILEIRA. INAPLICABILIDADE DA ANTIGA SÚMULA 207/TST (HOJE, INCLUSIVE, JÁ CANCELADA). A jurisprudência trabalhista, sensível ao processo de globalização da economia e de avanço das empresas brasileiras para novos mercados no exterior, passou a perceber a insuficiência e inadequação do critério normativo inserido na antiga Súmula 207 do TST (lex loci executionis) para regulação dos fatos congêneres multiplicados nas duas últimas décadas. Nesse contexto, já vinha ajustando sua dinâmica interpretativa, de modo a atenuar o rigor da velha Súmula 207/TST, restringido sua incidência, ao mesmo tempo em que passou a alargar as hipóteses de aplicação das regras da Lei n. 7.064/1982. Assim, vinha considerando que o critério da lex loci executionis (Súmula 207) - até o advento da Lei n. 11.962/2009 - somente prevalecia nos casos em que foi o trabalhador contratado no Brasil para laborar especificamente no exterior, fora do segmento empresarial referido no texto primitivo da Lei n. 7064/82. Ou seja, contratado para laborar imediatamente no exterior, sem ter trabalhado no Brasil. Tratando-se, porém, de trabalhador contratado no País, que aqui tenha laborado para seu empregador, sofrendo subsequente remoção para país estrangeiro, já não estaria mais submetido ao critério normativo da Convenção de Havana (Súmula 207), por já ter incorporado em seu patrimônio jurídico a proteção normativa da ordem jurídica trabalhista brasileira. Em consequência, seu contrato no exterior seria regido pelo critério da norma jurídica mais favorável brasileira ou do país estrangeiro, respeitado o conjunto de normas em relação a cada matéria. Mais firme ainda ficou essa interpretação após o recente cancelamento da velha Súmula 207/TST. No caso concreto, ficou evidenciado que o Reclamante foi contratado no Brasil e que parte do tempo de duração do contrato de trabalho desenvolveu-se em águas territoriais brasileiras. Não há como assegurar o processamento do recurso de revista quando o agravo de instrumento interposto não desconstitui a decisão denegatória, que subsiste por seus próprios fundamentos. Agravo de instrumento desprovido".

Isto posto, observamos que a lei do pavilhão não é absoluta, podendo ser afetada quando ocorrer a chamada bandeira de favor, ou quando houver legislação mais favorável ao trabalhador marítimo, sempre devendo analisar o caso concreto.

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