1. A Lei 7492/86
A Lei nº 7.492, de 16 de junho de 1986, cuida dos crimes contra o sistema financeiro nacional e do procedimento a estes relativos. Seu título já põe em relevo o objeto da tutela penal, isto é, o bem jurídico protegido, o sistema financeiro nacional, que pode ser conceituado como:
O conjunto articulado de instituições financeiras, ou entes a ela equiparados, públicos ou privados, que correspondem ao modelo expressamente definido em lei e estruturados com o escopo de ‘promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade’, instituições em atuação na captação, gestão e aplicação de recursos financeiros e valores mobiliários de terceiros – quer entes públicos ou privados – sob a fiscalização do Estado, bem como as relações jurídicas existentes entre tais instituições, seus usuários, seus funcionários e o poder público
Nesse sentido, à Lei 7.492/86, também chamada de lei do "colarinho branco", é reservada a importantíssima missão de proteger a salubridade do sistema financeiro nacional, o que, em última análise, significa a proteção de toda a economia brasileira contra práticas espúrias que possam afetá-la de modo especialmente danoso.
Os sujeitos ativos dos crimes descritos na lei estão elencados em seu art. 25: o controlador e os administradores (ou seja, os diretores e gerentes). Discutiremos aqui se, no caso das cooperativas de crédito, essas pessoas podem ser sujeitos ativos do tipo descrito no art. 17, que dispõe:
Art 17. Tomar ou receber, qualquer das pessoas mencionadas no art. 25 desta lei, direta ou indiretamente, empréstimo ou adiantamento, ou deferi-lo a controlador, a administrador, a membro de conselho estatutário, aos respectivos cônjuges, aos ascendentes ou descendentes, a parentes na linha colateral até o 2º grau, consangüíneos ou afins, ou a sociedade cujo controle seja por ela exercido, direta ou indiretamente, ou por qualquer dessas pessoas:
Pena - Reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos, e multa.
Na hipótese de a mãe do presidente de uma cooperativa receber um empréstimo da mesma, a conduta se subsumiria formalmente ao tipo penal em questão, na modalidade deferir empréstimo a ascendente de administrador. A questão que se coloca é: a tipicidade conglobante também se faria presente? Para responder essa pergunta precisamos entender a sistemática das cooperativas, especialmente as de crédito. Vejamos.
2. Das cooperativas de crédito
Inicialmente, cabe definir o objeto central da apreciação: a cooperativa. De acordo com a Organização das Cooperativas Brasileiras (OCB), "Cooperativa é uma associação autônoma de pessoas que se unem, voluntariamente, para satisfazer aspirações e necessidades econômicas, sociais e culturais comuns, por meio de uma empresa de propriedade coletiva e democraticamente gerida" [02].
As cooperativas também contam com seu núcleo de princípios, quais sejam: adesão voluntária e livre; gestão democrática e livre; participação econômica dos membros; autonomia e independência; educação, formação e informação; intercooperação e interesse pela comunidade [03].
O art. 4° da Lei 5.746/71 (que define a política nacional de cooperativismo), nesse mesmo sentido, destacou as peculiaridades das sociedades cooperativas, especialmente com relação às sociedades comerciais:
As cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas a falência, constituídas para prestar serviços aos associados, distinguindo-se das demais sociedades pelas seguintes características:...
A citada lei estabelece também (art. 47):
A sociedade será administrada por uma Diretoria ou Conselho de Administração, composto exclusivamente de associados
Percebe-se, preliminarmente, que as cooperativas perfazem um tipo societário único, claramente distinto dos demais, regulado por normas e princípios próprios, adequados a seus fins e atividades.
De acordo com o art. 6° da mencionada lei, o gênero cooperativa se divide primeiramente em três grandes espécies: as cooperativas singulares, constituídas geralmente por pessoas físicas e que se destinam a prestar serviços diretamente a seus associados; as cooperativas centrais e as confederações de cooperativas.
A partir dessas espécies, infinitas variações são possíveis, pois "As sociedades cooperativas poderão adotar por objeto qualquer gênero de serviço, operação ou atividade..." (art. 5° da lei 5.746/71). Dentre essas variantes, destacamos, por suas particularidades, a cooperativa de crédito, que é uma instituição financeira, formada por uma sociedade de pessoas, com forma e natureza jurídica própria, de natureza civil, sem fins lucrativos e não sujeita à falência [04].
3. Dos empréstimos nas cooperativas de crédito
Do exposto, vê-se que a aplicação da vedação de empréstimos aos dirigentes das cooperativas de crédito (art. 17 da lei 7.492/86) levaria ao absurdo de fazer com que o associado, ao assumir função administrativa, seja privado exatamente daquilo que o levou a associar-se, ou seja, a obtenção dos serviços prestados pela cooperativa. Mais teratológico ainda seria vedar empréstimos aos parentes desses administradores, que, assim, teriam a inusitada situação de cooperados sem direito algum. Conseqüências, aliás, vedadas pelo art. 37, III da lei cooperativista:
Art. 37. A cooperativa assegurará a igualdade de direitos dos associados
(...)
III - estabelecer restrições de qualquer espécie ao livre exercício dos direitos sociais.
Sobre esse dispositivo disserta Plínio Antonio Machado:
Dispositivo basilar da filosofia cooperativista, este inciso garante a igualdade de direitos de todos os associados, vedada qualquer discriminação ou restrição. É um autêntico dogma: na cooperativa todos têm direitos iguais.
Assim, não se aplicam às cooperativas de crédito quaisquer disposições legais ou regulamentares que vedam empréstimos a cooperados (sejam eles simples associados ou mesmo os que exercem funções administrativas) e também a seus cônjuges ou parentes.
Além disso, o art. 9°, II, b da Resolução CMN 2771/2000 preceitua:
As cooperativas de crédito podem praticar as seguintes operações:
...
II – concessão de créditos, exclusivamente a seus associados, incluídos os membros de órgãos estatutários
...
b) operações de empréstimos e financiamentos.
Portanto, entendemos que os empréstimos concedidos a associado que seja membro da diretoria ou seu parente, apesar de se enquadrarem formalmente no tipo do art. 17 da Lei 7.492/86, são atípicos, pois a tipicidade conglobante é explicitamente afastada por normas permissivas, constantes principalmente da Lei 5764/71, e pela interpretação sistêmica do Direito Cooperativista.
Notas
01
Rodolfo Tigre Maia Dos Crimes Contra o Sistema Financeiro Nacional – Anotações à Lei Federal n. 7.492/86, São Paulo: Malheiros, pág. 28.02
A identidade do cooperativismo. Disponível na internet: http://www.ocb.org.br.03
Princípios cooperativistas. Idem.04
Cooperativa de crédito. Disponível na internet: http://www.sebraemg.com.br/geral/visualizadorConteudo.aspx?cod_areasuperior=2&cod_areaconteudo=73&cod_pasta=7605
Comentários à Lei do Cooperativismo, 1° edição, São Paulo: Editoras Unidas, 1975, p. 113.