4. Transplantes de órgãos, tecidos e partes do corpo humano em vida: os limites legais
Entre as exceções previstas em lei para a prática de atos que podem resultar na diminuição permanente da integridade física, encontram-se os transplantes. No Brasil, a Lei n. 9.434/97 cuidou de regulamentar o problema dos transplantes de tecidos, órgãos e partes do corpo humano, em vida ou post mortem – embora, para fins deste estudo, apenas os primeiros interessem.
Tanto no preâmbulo quanto em seu art. 1º, nota-se que a Lei n. 9.434/1997 contempla duas possibilidades, em se tratando de intervenções sobre a integridade física em vida: admite-se a disposição gratuita de tecidos, órgãos e partes do corpo humano tanto para fins terapêuticos quanto de transplantes. Enquanto na primeira hipótese o consentimento do indivíduo implica uma autorização para a intervenção corporal que tem o único intuito de tratá-lo e curá-lo, sem que tal implique qualquer vinculação a outrem, há, na segunda, um interesse direto de terceiro, ou seja, do receptor dos órgãos ou tecidos. Naquela hipótese, justifica-se a intervenção corporal, mesmo que lesiva à integridade física, para prover a sobrevivência do próprio paciente; na derradeira, contudo, o doador de órgãos não obtém qualquer benefício com a intervenção, mas antes consente com a prática de um ato que resultará num agravamento da sua condição, restando todo o benefício em favor de um terceiro. Não obstante as considerações dirigidas a uma questão sejam extensíveis à outra, a matéria que interessa mais de perto é a dos transplantes, precisamente porque, quanto a eles, caberá encontrar alguma justificativa capaz de legitimá-los num fundamento exterior ao próprio sujeito, que só vê sua incolumidade física abalada ao anuir com a prática do ato.
Quando se coloca em questão a possibilidade de se dispor do corpo humano para fins de transplantes, três fundamentais princípios jurídicos são postos à prova: a autonomia privada, a solidariedade e a intangibilidade corporal. Sob o prisma estritamente deste último, a necessidade de se preservar a incolumidade física de uma pessoa poderia valer como impedimento à prática dos transplantes; no entanto, analisado o problema em cotejo com aqueles outros dois valores, constata-se que o ato voluntário de disposição do próprio corpo para fins de transplante não apenas decorre do direito à autodeterminação dos indivíduos, mas se presta, precipuamente, à preservação da vida e da saúde de outrem. Poucas condutas podem ser tão nobres, e o ato, por isso, encontra fundamento na inegável solidariedade que move uma pessoa a dar de si mesma aos outros.
É possível ir além: o altruísmo que impele o doador à realização de um transplante não é, ainda, o argumento final. Ao se proceder a uma ponderação entre os princípios em pauta, é perfeitamente possível o sacrifício (parcial e cautelosamente limitado, como se verá) da integridade corporal, porque o ato se revela necessário à salvaguarda de bens jurídicos do mais elevado escalão. Sendo possível manter vivo e saudável o doador, apesar da redução permanente da sua integridade física, não há que proibir o ato do transplante, posto que animado pelo propósito de também preservar viva e saudável outra pessoa.
Importa atentar para a utilização, no próprio texto da lei, das expressões “doação” e “doador”, para exprimir, respectivamente, o ato de dispor do próprio corpo em vida e o indivíduo que se dispõe a praticá-lo. Naturalmente, é inadequado confundir a doação de tecidos, órgãos e partes do corpo humano vivo com a doação a que se referem os 538 a 564 do Código Civil.3 O doador a que se reporta a Lei n. 9.434/1997 seria, em terminologia mais adequada, o disponente de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo. Entretanto, por serem as expressões “doador” e “doação” reiteradamente empregadas para tais fins, seja na legislação ou no meio doutrinário e jurisprudencial, serão também utilizadas nas considerações que se seguem.
Embora a lei admita expressamente a disposição de partes do corpo humano para atender aos transplantes, há diversos limites para a prática do ato, mediante a salvaguarda da vida e da saúde tanto do doador quanto do receptor.
Quando cogitados os limites para as intervenções corporais, ainda que em sede de transplantes – atos consentidos, portanto – vêm à tona, em primeiro lugar, os princípios da beneficência4 (que significa usar todos os conhecimentos e habilidades profissionais a serviço do paciente, com vistas à minimização dos riscos e à maximização dos benefícios) e da não-maleficência (a impor, sobretudo aos profissionais da saúde, o dever de não causar mal e/ou danos a seus pacientes).5 A beneficência, portanto, deve ser encarada como um princípio de cariz comissivo, a impor um comportamento ativo, mediante o emprego do esforço que se revele possível para obter os melhores resultados; a não-maleficência, por sua vez, se reveste de um tom passivo, ao determinar a omissão de comportamentos que possam ser lesivos à integridade física, numa manifesta derivação da determinação de Hipócrates, segundo a qual é imprescindível “antes de tudo, não fazer mal” (“primum non nocere”). Analisados em conjunto, estes princípios implicam a vedação de toda e qualquer intervenção danosa, exceto se puder resultar na melhoria da qualidade de vida do paciente.
Transposto este raciocínio para a seara dos transplantes, é possível traduzir o sentido dos princípios expostos numa única formulação: o ato do transplante deve ser necessário para salvaguardar a vida e a saúde do receptor, e o seu benefício deve também ser superior ao sacrifício da integridade corporal do doador. Beneficência e não maleficência atuam, aqui, com o propósito de minimizar as lesões ao doador e potencializar ao máximo o proveito ao receptor.
Postas estas questões prévias, compete analisar em que termos o legislador brasileiro disciplinou a matéria dos transplantes. Em se tratando da disposição de tecidos, órgãos e partes do corpo humano vivo, ponto que merece particular consideração para os fins destas notas, a disposição nuclear contida na Lei n. 9.434/1997 é o art. 9º, cujo teor se transcreve:
“Art. 9o É permitida à pessoa juridicamente capaz dispor gratuitamente de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge ou parentes consangüíneos até o quarto grau, inclusive, na forma do § 4o deste artigo, ou em qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial, dispensada esta em relação à medula óssea. (Redação dada pela Lei n. 10.211/2001)
§ 1º (VETADO)
§ 2º (VETADO)
§ 3º Só é permitida a doação referida neste artigo quando se tratar de órgãos duplos, de partes de órgãos, tecidos ou partes do corpo cuja retirada não impeça o organismo do doador de continuar vivendo sem risco para a sua integridade e não represente grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação ou deformação inaceitável, e corresponda a uma necessidade terapêutica comprovadamente indispensável à pessoa receptora.
§ 4º O doador deverá autorizar, preferencialmente por escrito e diante de testemunhas, especificamente o tecido, órgão ou parte do corpo objeto da retirada.
§ 5º A doação poderá ser revogada pelo doador ou pelos responsáveis legais a qualquer momento antes de sua concretização.
§ 6º O indivíduo juridicamente incapaz, com compatibilidade imunológica comprovada, poderá fazer doação nos casos de transplante de medula óssea, desde que haja consentimento de ambos os pais ou seus responsáveis legais e autorização judicial e o ato não oferecer risco para a sua saúde.
§ 7º É vedado à gestante dispor de tecidos, órgãos ou partes de seu corpo vivo, exceto quando se tratar de doação de tecido para ser utilizado em transplante de medula óssea e o ato não oferecer risco à sua saúde ou ao feto.
§ 8º O auto-transplante depende apenas do consentimento do próprio indivíduo, registrado em seu prontuário médico ou, se ele for juridicamente incapaz, de um de seus pais ou responsáveis legais”.
A análise da disposição provoca uma série de questionamentos, alguns deles, aliás, carentes de preenchimento ora pelo intérprete, ora pelo próprio legislador, que, para regulamentar a Lei n. 9.434/1997, editou, no mesmo ano, o Decreto n. 2.268, de 30 de junho. O primeiro e mais primordial aspecto a salientar consiste na indicação dos requisitos erigidos em lei para a realização de transplantes no Brasil. É possível, consoante o conteúdo destes requisitos, classificá-los em três grupos, a seguir indicados:
De início, a lei estabelece determinados requisitos subjetivos, posto que respeitam aos próprios agentes envolvidos.
Em primeiro lugar, o doador deve ser juridicamente capaz, consoante preveem o caput da disposição transcrita e o art. 15. do Decreto n. 2.268/1997. Como estas normas não fazem distinção entre os absolutamente e os relativamente incapazes, impõe-se o entendimento de que nenhum deles poderá dispor do seu corpo para fins de transplante, à exceção da hipótese contemplada no § 6º acima transcrito, que permite a doação de medula óssea, desde que previamente consentida pelos representantes legais e autorizada judicialmente e, em acréscimo, desde que o ato não venha a comprometer a vida e a saúde do doador. Ao regulamentar a questão, o art. 15, § 8º do Decreto n. 2.268/1997 estatui que “a extração de parte da medula óssea de pessoa juridicamente incapaz poderá ser autorizada judicialmente, com o consentimento de ambos os pais ou responsáveis legais, se o ato não oferecer risco para a sua saúde”.
Quanto ao receptor, a lei exige, como regra, que seja cônjuge ou parente consanguíneo até o quarto grau, inclusive, do doador. Se o beneficiário não estiver enquadrado neste restritivo rol, a lei admitirá o transplante, desde que precedido de autorização judicial, procedimento somente dispensado em relação aos transplantes de medula óssea.
O texto legal revela preocupação com a higidez da manifestação de vontade dos interessados. Isto vale não apenas para o disponente dos órgãos e tecidos, mas também para o receptor, como registra o art. 10. da Lei n. 9.434/1997: “o transplante ou enxerto só se fará com o consentimento expresso do receptor, assim inscrito em lista única de espera, após aconselhamento sobre a excepcionalidade e os riscos do procedimento”. Os parágrafos 2º e 3º do art. 22. do Decreto n. Decreto n. 2.268/1997, por sua vez, explicitam as exigências do consentimento prestado pelo receptor, ao determinar que a autorização para o procedimento conterá informações a ele concernentes e as perspectivas de êxito ou insucesso e que os riscos considerados aceitáveis pela equipe de transplante ou enxerto serão informados, com indicação das sequelas previsíveis. O descumprimento do aludido dever de informar sujeitará o infrator às penas do art. 14. da Lei n. 9.434/1997, que sanciona a conduta de remover tecidos, órgãos ou partes do corpo de pessoa ou cadáver, em desacordo com as disposições deste diploma.
Na sequência, é possível enumerar a presença de requisitos objetivos, que respeitam ao ato em si, descritos pelo § 3º do art. 9º.
Quanto aos órgãos, tecidos ou partes do corpo que podem ser transplantados, exige a lei que sejam duplos (como os pulmões) ou que possam ser retirados do organismo do doador sem que daí advenha risco sua à integridade. Aqui, a disposição não pode ser tomada em sua acepção literal: evidentemente, toda intervenção que tenha o propósito de retirar partes do corpo humano pata fins de transplante derivará, necessariamente, de uma redução da integridade corporal, que restará definitivamente comprometida. Quer-se estabelecer, com a reserva em apreço, que a recolha do órgão ou tecido não poderá resultar num prejuízo à saúde e à funcionalidade do organismo do doador, ou seja, que a intervenção não impedirá que ele continue a viver nas mesmas condições em que se encontrava no período pré-operatório.
Além disso, exige a lei que o ato não represente grave comprometimento das aptidões vitais e da saúde mental do doador, nem cause mutilação ou deformação inaceitável. Não se admite que, com a cirurgia, determinadas capacidades sejam suprimidas, como também não se tolera que a intervenção termine por desfigurar a fisionomia do doador. É o que impede a retirada de órgãos que, apesar de duplos, ocasionariam mutilação grave se ausentes, como as córneas. Colocadas todas estas ressalvas, servem como exemplos de órgãos e tecidos passíveis de transplante inter vivos a pele e a medula óssea e, entre as partes de órgãos, o fígado.6 Em suma, o transplante, nos casos em que a lei o permite, não compromete o núcleo duro dos direitos à vida e à saúde.
Ademais, o transplante deve corresponder a uma comprovada necessidade terapêutica do receptor. Segundo a lei, portanto, condutas de mero capricho (como seria o de dispor do corpo sem que a medida seja indispensável) ou mesmo de heroísmo (feito disponibilizar um órgão vital, como o coração, para salvar a vida alheia) não se admitem: há que demonstrar, em relação ao receptor, a imprescindibilidade do ato (que, em reforço, deverá ser inadiável, consoante os termos do § 2º do art. 15. Decreto n. 2.268/1997). O transplante, portanto, não deve ser apenas recomendável ou conveniente, mas verdadeiramente indispensável. Tal representa não apenas uma decorrência de um dos reflexos do princípio da dignidade da pessoa humana, que não permite a sua instrumentalização (ou seja, não é legítimo pretender sacrificar uma “vida-meio” para salvar uma “vida-fim”), mas também significa que deve ser inviável a cura por outra intervenção médica, preferencialmente menos invasiva, ou mesmo pela obtenção de órgãos de cadáveres, porque se estas soluções forem suficientes, dispensa-se a necessidade de se recorrer ao transplante entre vivos. Com este mesmo propósito de recorrer aos transplantes como derradeira e imprescindível medida, o art. 23. do Decreto n. 2.268/1997 estipula que “os transplantes somente poderão ser realizados em pacientes com doença progressiva ou incapacitante, irreversível por outras técnicas terapêuticas (...)”.
Finalmente, impõe-se a gratuidade do ato. Esta é uma decorrência não apenas da determinação contida no art. 1º da Lei n. 9.434/1997, mas pelo próprio caráter extrapatrimonial do direito à integridade física. Como se viu a propósito do estudo da relativa disponibilidade dos direitos da personalidade em geral, alguns deles são compostos também de uma região periférica, dotada de um conteúdo econômico; não é, contudo, o caso do direito ao próprio corpo, em relação ao qual se rejeita a prática de todo ato jurídico de cunho patrimonial. Precisamente em virtude disso, o art. 15. da Lei n. 9.434/1997 tipifica como criminosa não apenas a compra e venda de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano, mas também o ato de promover, intermediar, facilitar ou auferir qualquer vantagem com a transação.7
Finalmente, atesta-se a presença de requisitos formais, concernentes à maneira de exercer o ato. Neste particular, há duas normas dignas de nota. A primeira delas é o § 4º do art. 9º da Lei em questão, outrora reproduzido, a determinar que o doador deva especificar, preferencialmente por escrito e diante de testemunhas, qual o tecido, órgão ou parte do corpo a sofrer a colheita. A outra, contida no art. 10. da Lei, estipula que “o transplante ou enxerto só se fará com o consentimento expresso do receptor, assim inscrito em lista única de espera, após aconselhamento sobre a excepcionalidade e os riscos do procedimento”.
As referidas disposições, manifestamente lacunosas, terminaram por ser preenchidas por outras normas, contidas no Decreto n. 2.268/1997. Enquanto o texto da Lei n. 9.434/1997 previu que o consentimento do doador deveria ser firmado “preferencialmente” por escrito e “diante de testemunhas”, sem determinar ao certo o seu número, o art. 15, § 4º do aludido Decreto precisou estas exigências:
“O doador especificará, em documento escrito, firmado também por duas testemunhas, qual tecido, órgão ou parte do seu corpo está doando para transplante ou enxerto em pessoa que identificará, todos devidamente qualificados, inclusive quanto à indicação de endereço”.
Em acréscimo, o § 5º do art. 15. do Decreto n. 2.268/1997 prevê que o documento escrito, em que o doador manifesta seu consentimento, deverá ser expedido em duas vias, “uma das quais será destinada ao órgão do Ministério Público em atuação no lugar de domicílio do doador”, exigência somente dispensada em se tratando de doação de medula óssea, por força do § 6º do mesmo dispositivo.
Para além dos mencionados requisitos, o art. 2º da Lei n. 9.434/1997 determina que os transplantes só podem ser realizados por estabelecimentos de saúde, sejam eles públicos ou privados, e por equipes médico-cirúrgicas previamente autorizados pelo órgão de gestão nacional do Sistema Único de Saúde (SUS). O parágrafo único do dispositivo prevê, em complemento, que a realização de transplantes deve ser precedida de testes de triagem sobre o doador, para diagnóstico de infecção e infestação exigidos em normas regulamentares expedidas pelo Ministério da Saúde.
Outro aspecto digno de relevo diz respeito à previsão dos autotransplantes, também designados transplantes autoplásticos. Ao contrário das transplantações heteroplásticas, que envolvem a remoção de partes de um organismo e a inserção em outro,8 o autotransplante supõe a transferência de tecidos de um lugar para outro, no mesmo organismo, como ocorre com as cirurgias de “ponte de safena”.9 Por se tratar de ato unilateral, independente de vinculação com terceiros, o § 8º do art. 9º da Lei n. 9.434/1997 determina que “o auto-transplante depende apenas do consentimento do próprio indivíduo, registrado em seu prontuário médico ou, se ele for juridicamente incapaz, de um de seus pais ou responsáveis legais”.
Cabe ainda salientar um aspecto crucial: a autorização do doador para a realização de transplantes é plenamente revogável. Nos termos do art. 9º, § 5º da Lei n. 9.434/1997, “a doação poderá ser revogada pelo doador ou pelos responsáveis legais a qualquer momento antes de sua concretização”. Por sua vez, o § 7º do art. 15. do Decreto n. 2.268/1997, que regulamenta aquela Lei, estabelece balizas mais precisas, ao estipular que “a doação poderá ser revogada pelo doador a qualquer momento, antes de iniciado o procedimento de retirada do tecido, órgão ou parte por ele especificado”.
Embora a lei nada disponha a respeito, é forçoso concluir que, ao contrário da autorização, que deverá ser prestada por escrito, a declaração de revogação do consentimento pode ser firmada inclusive oralmente, uma vez que a lei, ao admiti-la em qualquer momento que anteceda o início do procedimento de retirada do órgão ou tecido a ser transplantado, faculta que tal ocorra, inclusive, no momento em que se estiver prestes a começar a intervenção, circunstância em que já não se poderá exigir do indivíduo que se manifeste por escrito.
Tudo que se expôs acerca dos transplantes, enfim, serve como argumento para legitimá-los. Não poderia o legislador, com supedâneo no interesse de preservar a incolumidade física das pessoas, estabelecer empecilhos para que elas pudessem livremente escolher abdicar de parte do próprio corpo para, num gesto de inegável fraternidade, ajudar o próximo. Sendo a solidariedade um dos objetivos fundamentais da República e, inequivocamente, uma das mais expressivas dádivas inerentes ao comportamento humano, encontram-se, na lei e na alteridade, os fundamentos que, afinal, justificam que uma pessoa possa validamente consentir com tão significativa intromissão sobre seu corpo.
O legislador brasileiro, cautelosamente, soube dimensionar as questões éticas e jurídicas que o tema abarca, ao disciplinar os transplantes de forma a preservar a vida e a saúde dos doadores e, ao mesmo tempo, salvaguardar, em relação aos receptores, estes mesmos bens jurídicos. Não há, enfim, violação ao ordenamento: o núcleo duro dos direitos à vida e à integridade física permanece inabalado e, numa perspectiva ponderativa, o parcial sacrifício do corpo de uns é adequado ao proveito que se extrai dos transplantes; ao revés, antes há, sem dúvida, a promoção dos valores existenciais da pessoa humana e o reconhecimento de que sua dignidade também se concretiza, enfim, com a realização dos outros.