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Alterações na Lei Maria da Penha trazem menos avanços do que poderiam

07/03/2019 às 14:30
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Por enxergar reserva de jurisdição onde não existia, um veto do Executivo desprotegeu a mulher violentada. Ela continuará a sair da delegacia com um boletim de ocorrência na mão, cabendo-lhe torcer para que algo mais grave não ocorra enquanto aguarda por uma medida protetiva judicial e a disponibilidade de oficial de justiça para intimar o agressor.

Recentemente a Lei 11.340/06 (Lei Maria da Penha), que traz mecanismos para o combate à violência doméstica e familiar contra a mulher, foi alterada pelas Leis 13.641/18 e 13.505/17. Houve avanços, porém o progresso poderia ter sido maior.

No que tange à Lei 13.505/17, acrescentou os arts. 10-A, 12-A e 12-B na Lei 11.340/06, com o intuito de fortalecer a proteção à mulher vítima de violência doméstica e familiar.

É direito da mulher em situação de violência doméstica e familiar o atendimento policial e pericial especializado, ininterrupto e prestado por servidores previamente capacitados, preferencialmente do sexo feminino (art. 10-A). O atendimento pode abranger providências como proteção policial, tratamento médico e transporte.

A inquirição de vítima ou testemunha de violência doméstica e familiar contra a mulher deve ter como diretrizes (art. 10-A, §1º):

a) salvaguarda da integridade física, psíquica e emocional da depoente;

b) garantia de a vítima e testemunha (bem como familiares) não ter contato direto com investigados ou pessoas a ele relacionadas: para tanto, é imprescindível investimento do Estado nas Polícias Judiciárias, dotando-as de recursos humanos (efetivo policial) e materiais (espaço físico adequado) suficientes;

c) não revitimização[1] da depoente, evitando sucessivas inquirições sobre o mesmo fato nos âmbitos criminal, cível e administrativo, bem como questionamentos sobre a vida privada: a reinquirição da vítima ou testemunha só ocorrerá diante de surgimento de fato novo, e indagações sobre a privacidade da mulher deve se limitar ao indispensável para o esclarecimento do fato.

A oitiva de vítima ou testemunha de violência doméstica e familiar contra a mulher deve trilhar o seguinte procedimento (art. 10-A, §2º):

a) realização em recinto especialmente projetado, com equipamentos próprios à idade da mulher e à gravidade da violência sofrida;

b) quando for o caso, intermediação por profissional especializado em violência doméstica e familiar designado pela autoridade judiciária ou policial;

c) registro em meio eletrônico ou magnético, devendo a degravação e a mídia integrar o inquérito.

Como se percebe, a inquisição especial da mulher possui semelhanças com aquela da criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência.[2]

Os Estados e o Distrito Federal, na formulação de suas políticas e planos de atendimento à mulher em situação de violência doméstica e familiar, darão prioridade, no âmbito da Polícia Civil, à criação de Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher, de Núcleos Investigativos de Feminicídio e de equipes especializadas para o atendimento e a investigação das violências graves contra a mulher (art. 12-A).

A autoridade policial poderá requisitar os serviços públicos necessários à defesa da mulher em situação de violência doméstica e familiar e de seus dependentes (art. 12-B, §3º). Trata-se de mais um dispositivo que reforça o poder requisitório do delegado de polícia na presidência da investigação criminal.

Todavia, o principal avanço, que faria a Lei 13.505/17 ser chamada de Lei da Proteção Imediata, foi vetado. Trata-se do art. 12-B caput e §§1º e 2º, que permitiria que o delegado de polícia concedesse algumas medidas protetivas de urgência, submetendo ao escrutínio do magistrado no exíguo prazo de 24 horas (sistemática semelhante à da prisão em flagrante).

Alegou o Chefe do Executivo “inconstitucionalidade material, por violação aos artigos 2º e 144, §4º, da Constituição, ao invadirem competência afeta ao Poder Judiciário e buscarem estabelecer competência não prevista para as polícias civis."

Errou feio o Presidente, pois:

Não existe reserva de jurisdição para a decretação de medidas cautelares, ou seja, a Constituição não exigiu prévia decisão judicial para a adoção dessas providências. Isso significa que o legislador possui margem para outorgar a outras autoridades o poder de decisão. Não é inédita, portanto, a outorga legal de poder cautelar ao delegado de polícia. Muito pelo contrário, a lei atribuiu à autoridade policial a possibilidade de adotar manu propria uma série de medidas, tais como prisão em flagrante (art. 304 do CPP), liberdade provisória com fiança (art. 322 do CPP), apreensão de bens (art. 6º, II do CPP), ação controlada no crime organizado (art. 8º, §1º da Lei 12.850/13), dentre outras.[3]

O que o Executivo fez com esse veto, além retirar a proteção imediata das mulheres vítimas, foi cercear a livre escolha do Legislativo, que já havia se manifestado tecnicamente pela constitucionalidade da mudança:

Portanto, não sendo explícita a reserva de jurisdição quanto a atribuições protetivas da vítima mulher em situação de violência doméstica e familiar, não há cogitar a inconstitucionalidade material da presente proposta. Mesmo porque a concessão de cautelares pela autoridade policial, além de necessária, deverá ser referendada, complementada ou revogada pela autoridade judicial a posteriori e a qualquer tempo. (...) Ora, reconhecemos o papel fundamental da autoridade policial. Os Delegados de Polícia Civil são os primeiros garantidores dos direitos do cidadão vítima de delitos penais. Sua atuação é pautada pelo comprometimento com a legalidade dos procedimentos, a acuidade na apuração dos fatos e o embasamento jurídico técnico e imparcial das investigações.[4]

Com efeito, por enxergar reserva de jurisdição onde não existia, o Chefe do Executivo acabou jogando no lixo a proteção mais robusta à mulher violentada, que continuará a sair da delegacia de polícia com um papel de boletim de ocorrência na mão, cabendo-lhe fugir, ou retornar para casa e torcer para que algo mais grave não ocorra, enquanto aguarda por uma medida protetiva judicial e a disponibilidade de oficial de justiça para intimar o agressor.

Noutro giro, no que se refere à Lei 13.641/18, criminalizou a conduta de descumprir medidas protetivas de urgência.

Historicamente, o Superior Tribunal de Justiça[5] entendia que o descumprimento da medida de proteção não configurava crime de desobediência (art. 330 do CP), pois a lei desobedecida prevê sanção civil, administrativa ou processual penal para o descumprimento sem ressalvar a incidência de sanção criminal.

Com a mudança na Lei Maria da Penha, ocorreu a chamada superação legislativa da jurisprudência ou reação legislativa. Agora a conduta inequivocamente configura crime (art. 24-A). Claro, desde que o agressor tenha sido intimado e ainda assim resolva desrespeitar a medida protetiva imposta.

A infração penal se aperfeiçoa embora a medida protetiva descumprida tenha sido imposta em um processo civil (art. 24-A, §1º). Vale lembrar que a violência doméstica nem sempre configura crime, e as medidas protetivas são autônomas em relação à persecução criminal, ocasião em que ostentam natureza cautelar civil satisfativa.[6]

O delito é de menor potencial ofensivo, possuindo pena máxima de 2 anos. Todavia, lavra-se o auto de prisão em flagrante normalmente, e não o termo circunstanciado de ocorrência, pois o art. 41 da Lei 11.340/06 afasta a incidência da Lei 9.099/95 (e portanto de seu art. 69, parágrafo único, que concede o benefício de não ser custodiado em flagrante àquele que comete infração de menor potencial ofensivo).

Há quem possa alegar que o crime de desobediência de medida protetiva não é praticado com violência doméstica e familiar, pois a vítima imediata é o Estado, que teve a decisão descumprida; e que por isso a Lei 9.099/95 deveria incidir normalmente, afastando-se a prisão em flagrante. Contudo, além de o delito atingir sim a ofendida, ainda que indiretamente, a intenção do legislador de impor a custódia do agressor ficou clara quando, de forma excepcional, autorizou apenas ao juiz o arbitramento da fiança (art. 24-A. §2º).

Quanto à liberdade provisória com fiança, em princípio poderia ser concedida pelo delegado, pois a pena máxima do delito está dentro do patamar de 4 anos que autoriza a autoridade policial a atuar (art. 322 do CPP). Todavia, o legislador criou uma exceção no §2º do art. 24-A em que somente o magistrado pode conceder a fiança, nada obstante o crime se encaixar no critério que serve como regra geral.

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Norma desarrazoada, que busca o simbolismo de manter o agressor preso por algumas horas a mais até que o juiz delibere sobre a prisão em flagrante. Retira indevidamente o poder cautelar do arbitramento da fiança das mãos do delegado, que age stricto sensu em nome do Estado[7], integra carreira jurídica[8] e preside a investigação criminal (art. 2º, caput da Lei 12.830/13) com livre convencimento técnico-jurídico.[9]

Afirma a doutrina:

Vislumbramos uma violação ao princípio da proporcionalidade nessa inovação.

Explicamos. O novo crime em estudo representa um tipo penal preventivo, cujo foco é evitar a prática de condutas que possam atingir bens jurídicos mais relevantes. Trata-se de crime de perigo, pois ao descumprir uma medida protetiva, o agente coloca em risco a integridade física, psicológica, patrimonial, sexual e moral da vítima.

Desse modo, nos parece desproporcional a vedação de fiança pelo delegado de polícia em um crime de perigo, quando o benefício pode ser concedido nos crimes de dano, tais como lesão corporal, ameaça, injúria etc.

Apenas para ilustrar, se o agente descumpre uma medida protetiva de não se aproximar da vítima com o objetivo de lhe entregar flores, pratica o crime do artigo 24-A, inafiançável na esfera policial; mas se a agredir efetivamente, causando-se lesões corporais de natureza leve, responde pelo crime do artigo 129, §9º, do CP, e poderá ser beneficiado com a fiança, desde que, obviamente, não pratique tal agressão depois de ter contra si decretada medida protetiva, senão seria caso de concurso de crimes e a presença da desobediência impediria a fiança.[10]

O que se evidencia é a intenção de mais uma esquizofrenia legislativa, posto que no discurso sobre audiência de custódia nosso legislador quer ampliar o cárcere e retirar a função materialmente judicial do delegado de polícia de avaliar a liberdade provisória que lhe é conferida pelo artigo 322 do CPP. (...)

Determinar o legislador vedação a ex lege de liberdade provisória em casos previstos na atribuição do delegado de se conceder tal medida viola a separação dos poderes, além de ter uma norma totalmente desarrazoada, o que violaria o devido processo legal em seu aspecto substancial.[11]

Por fim, interessante grifar que a configuração do delito do art. 24-A não impede a imposição de sanções de outra natureza, como a execução de multa eventualmente imposta e a decretação da prisão preventiva caso esteja presente algum de seus requisitos (art. 313, III do CPP).

Como visto, as modificações na Lei Maria da Penha trouxeram progresso no tratamento da matéria, mas poderiam ter ido além.


Notas

[1] FONTES, Eduardo; HOFFMANN, Henrique. Criminologia. Salvador: Juspodivm, 2018, p. 190.

[2] HOFFMANN, Henrique; LÉPORE, Paulo Eduardo. Lei protege criança e adolescente vítima ou testemunha de violência. Revista Consultor Jurídico, abr. 2017. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-abr-06/lei-garante-protecao-menor-vitima-ou-testemunha-violencia>. Acesso em: 6 abr. 2017

[3] HOFFMANN, Henrique. Concessão de medidas protetivas por delegado amplia direitos da mulher. Revista Consultor Jurídico, nov. 2017. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2017-nov-01/concessao-medida-protetiva-delegado-amplia-direitos-mulher>. Acesso em: 1 nov. 2017.

[4] Parecer 613/16 acerca do Projeto de Lei 7/16 (que após aprovação foi convertido na Lei 13.505/17, alteradora da Lei 11.340/06), Rel. Senador Aloysio Nunes Ferreira, DP 29/06/17.

[5] STJ, REsp 1.374.653, Rel. Min. Sebastião Reis Júnior, DJ 11/3/2014;  RHC 41.970, Rel. Min. Laurita Vaz, DJ 07/08/2014.

[6] STJ, REsp 1419421 Rel. Min. Luis Felipe Salomão, DJ 11/02/2014.

[7] STJ, RMS 43172, Rel. Min. Ari Pargendler, DJe 22/11/2013.

[8] STF, Tribunal Pleno, ADI 3441, Rel. Min. Carlos Britto, DJ 09/03/2007.

[9] LIMA, Renato Brasileiro de. Legislação criminal especial comentada. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 180.

[10] SANNINI, Francisco. Descumprir medidas protetivas de urgência agora é crime. Canal Ciências Criminais, abr. 2018. Disponível em: < https://canalcienciascriminais.com.br/medidas-protetivas-urgencia-crime>. Acesso em: 6 abr. 2018.

[11] BARBOSA, Ruchester Marreiros. Cabe fiança pelo delegado no descumprimento de medida protetiva. Revista Consultor Jurídico, abr. 2018. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2018-abr-10/cabe-fianca-delegado-descumprimento-medida-protetiva. Acesso em: 10 abr. 2018.

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Sobre o autor
Henrique Hoffmann

Professor e coordenador de pós-graduação do CERS. Autor de livros e coordenador de coleção pela Juspodivm. Colunista do Conjur e da Rádio Justiça do STF. Professor da Escola da Magistratura Mato Grosso, Escola da Magistratura do Paraná, Escola Superior de Polícia Civil do Paraná e SENASP. Coordenador do IBEROJUR no Brasil. Mestre em Direito pela UENP. Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela UGF. Bacharel em Direito pela UFMG. Delegado de Polícia Civil do Paraná. Premiado como melhor Delegado de Polícia do Brasil na categoria jurídica. Publicou mais de 25 livros e 70 artigos, e proferiu mais de 60 palestras em 17 estados. www.henriquehoffmann.com

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CASTRO, Henrique Hoffmann. Alterações na Lei Maria da Penha trazem menos avanços do que poderiam. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5727, 7 mar. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/71801. Acesso em: 16 abr. 2024.

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