1. Introdução
Questão de exacerbada controvérsia nos meios sociais, políticos e jurídicos nacionais, desde 2016, a (in)constitucionalidade da execução criminal provisória, após o segundo grau de jurisdição, ganhou contornos de dramaticidade no ano de 2018, com o julgamento de Habeas Corpus preventivo impetrado pelo ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva no Supremo Tribunal de Federal, transmitido minuto a minuto pelos grandes meios de comunicação, alcançando repercussão mundial.
Tal tema, extravasando os limites do âmbito jurídico, mobilizou os mais diversos agentes sociais, inundando a opinião pública de ‘pitacos’ dos mais diversos. No entanto, sóbria e tecnicamente, qual a adequação constitucional de tal medida? Feriria ela a presunção de não culpabilidade, advinda do art. 5º, LVII, da Constituição Federal, que consagra texto, a rigor, literal e de fácil compreensão – o de que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória” ?
Para além disso, a presunção de não culpabilidade seria um postulado estático ou dinâmico? Ela se esvairia um tanto a partir de cada grau de jurisdição ou permaneceria igualmente energizada até o efetivo trânsito em julgado?
Estas, basicamente, são as respostas que se deseja obter ao final deste artigo.
2. Princípio da presunção de inocência
A Carta Maior, no artigo 5º, inciso LVII, assegura: LVII - ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. A presunção de não-culpabilidade encontra origem nos escritos de Cesare Beccaria e nos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, posteriormente incorporada ao preâmbulo da Constituição Francesa de 1791.
Aquela Declaração, em seu artigo 9º, assim dispunha: “Art. 9º. Todo acusado é considerado inocente até ser declarado culpado e, se julgar indispensável prendê-lo, todo o rigor desnecessário à guarda da sua pessoa deverá ser severamente reprimido pela lei”. Desse instante em diante, carregado pelos ventos do iluminismo, o movimento de reconhecimento de tal presunção disseminou-se pelo ocidente.
Em 1948, muitíssimo impactada pelas atrocidades da Segunda Guerra Mundial, a comunidade internacional, através da Organização das Nações Unidas, erigiu a Declaração Universal dos Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário, vindo a consagrar, em seu artigo 11: “1.Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias à sua defesa.”[1]
Mais tarde, em 1969, a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), da qual o Brasil é signatário, estabeleceu, em seu artigo 8º, II: “Toda pessoa acusada de um delito tem direito a que se presuma sua inocência, enquanto não for legalmente comprovada sua culpa”.
Assim, em síntese, a presunção de não culpabilidade surgiu fruto do espírito revolucionário e, ao inverter a presunção de culpabilidade anteriormente posta, consubstanciou-se marco solapador da inquisição. A liberdade de locomoção, então elevada ao patamar de direito natural e inviolável do homem, tornou-se dogma. Para aprisionamento do indivíduo, agora era imprescindível que sua culpa ficasse cabalmente provada, mediante devido processo legal.
Intimamente a ele ligado, é princípio fundante do processo penal liberal e implica, socorre-nos LOPES JR. (2013, p. 72/73), “diversas consequências no tratamento da parte passiva, inclusive na carga da prova (ônus da acusação) e na obrigatoriedade de que a constatação do delito e a aplicação da pena ocorrerão por meio de um processo com todas as garantias e através de uma sentença”.
Ainda segundo o autor, desta vez em outra obra (2009, p. 47/48), da presunção de inocência derivam duas regras fundamentais: a regra probatória – incumbência do acusador de demonstrar a culpabilidade além de qualquer dúvida razoável – e a regra de tratamento – dever imposto ao magistrado de fazer cumprir o ônus da prova, favorecer o acusado em caso de dúvida e decretar as prisões cautelares somente em situações excepcionais, comprovados os requisitos legais, além do dever imposto erga omnes de respeito à dignidade e à privacidade do acusado, em proteção contra a publicidade abusiva e a estigmatização do réu.
Nesse mesmo sentido, assevera BENTO (2007, p. 26) que a presunção de inocência desdobra-se em três faces:
Primeiro, quanto ao tratamento dispensado ao cidadão submetido a uma investigação policial, onde deve ser preservado o estado inicial em que se encontrava antes do início da persecução penal, qual seja, inocente; segundo momento, quanto à utilização das prisões provisórias que, dependendo do caso, pode refletir uma antecipação da pena [regras de tratamento]; e terceiro momento, quanto à valoração de provas na instrução criminal [regra probatória].
Isso posto, é possível concluir-se que o postulado da presunção de inocência enseja a obrigatoriedade da cabal demonstração delitiva pelo órgão acusatório a um magistrado neutro, que jamais poderá presumir a culpabilidade do acusado sem a devida comprovação, devendo, em dúvida, absolver, e que deverá, por presumir a inocência do réu, servir-lhe como juiz de garantias, porquanto o rompimento desta presunção só se pode dar com a formação da culpa, mediante transcurso de escorreito instrumento processual que concretize todas os princípios constitucionais correlatos (ampla defesa, inadmissibilidade provas ilícitas, publicidade, não produção de provas contra si, etc).
Há, na doutrina, severa divergência se a expressão ‘presunção de não culpabilidade’ equivale à expressão ‘presunção de inocência’, isto é, se o acusado, desde o início do processo, deve ser presumido inocente (postura positiva por parte do juízo) ou não culpado (postura neutra por parte do juízo, catapultando o réu, por ficção jurídica, ao limbo entre os estados de ‘inocente’ e ‘culpado’). O tema será devidamente aprofundado no próximo capítulo, assim como todas as pertinentes problematizações.
3. Da presunção de inocência e sua atual problematização constitucional
Neste capítulo, aprofundaremos os atuais contornos da discussão acerca da (in)constitucionalidade da execução criminal provisória após o exaurimento do segundo grau de jurisdição, abordando os argumentos de ambas as partes e problematizando, posteriormente, as considerações auferidas, procurando lograr entendimento personalíssimo, ainda que embasado aqui ou acolá em autores outros.
3.1 Execução penal provisória: entendimentos
Precedentemente a atermo-nos ao atual entendimento do STF, analisaremos cada um dos principais fundamentos jurídicos defendidos pela corrente favorável e pela corrente contrária à constitucionalidade da execução criminal provisória. Comecemos pela corrente favorável.
3.1.1. Entendimento favorável
Favoravelmente à constitucionalidade, conforme nos foi dado apurar a partir do compêndio bibliográfico e jurisprudencial obtido [2], os principais argumentos apresentados são: i) que a condenação em segunda instância bem respeita e encerra o duplo grau de jurisdição, espaço de desenvolvimento pleno da tese acusatória e dos mecanismos de defesa, ii) que os recursos extraordinários não possuem efeito suspensivo, iii) que os Tribunais Superiores são insuscetíveis de reanálise fático-probatória, iv) que, como corolário de todos os anteriores, o locus de formação da culpa é a primeira e segunda instâncias, v) que a presunção de inocência deve ser ponderada ante outros bens juridicamente tutelados, sobretudo a efetividade e celeridade da justiça.
Para demonstração do acima afirmado, trazemos as principais passagens correlatas a cada um dos argumentos:
Inaugurando as manifestações favoráveis, realçamos parcela do voto do já falecido ministro Teori Zavascki, relator do HC nº 126.292/SP [3], no qual assim se manifesta:
Para o sentenciante de primeiro grau, fica superada a presunção de inocência por um juízo de culpa – pressuposto inafastável para condenação –, embora não definitivo, já que sujeito, se houver recurso, à revisão por Tribunal de hierarquia imediatamente superior. É nesse juízo de apelação que, de ordinário, fica definitivamente exaurido o exame sobre os fatos e provas da causa, com a fixação, se for o caso, da responsabilidade penal do acusado. É ali que se concretiza, em seu sentido genuíno, o duplo grau de jurisdição, destinado ao reexame de decisão judicial em sua inteireza, mediante ampla devolutividade da matéria deduzida na ação penal, tenha ela sido apreciada ou não pelo juízo a quo.
[…] Ressalvada a estreita via da revisão criminal, é, portanto, no âmbito das instâncias ordinárias que se exaure a possibilidade de exame de fatos e provas e, sob esse aspecto, a própria fixação da responsabilidade criminal do acusado. É dizer: os recursos de natureza extraordinária não configuram desdobramentos do duplo grau de jurisdição, porquanto não são recursos de ampla devolutividade, já que não se prestam ao debate da matéria fático-probatória. Noutras palavras, com o julgamento implementado pelo Tribunal de apelação, ocorre espécie de preclusão da matéria envolvendo os fatos da causa. Os recursos ainda cabíveis para instâncias extraordinárias do STJ e do STF – recurso especial e extraordinário – têm, como se sabe, âmbito de cognição estrito à matéria de direito. Nessas circunstâncias, tendo havido, em segundo grau, um juízo de incriminação do acusado, fundado em fatos e provas insuscetíveis de reexame pela instância extraordinária, parece inteiramente justificável a relativização e até mesmo a própria inversão, para o caso concreto, do princípio da presunção de inocência até então observado. (grifos nossos)
Prosseguindo no voto, para promoção de propriedade técnica em seu entendimento, traz à baila o ministro relator as significativas lições de Gilmar Mendes, citado pelo ministro Marco Aurélio em livro seu:
O que se tem, é, por um lado, a importância de preservar o imputado contra juízos precipitados acerca de sua responsabilidade. Por outro, uma dificuldade de compatibilizar o respeito ao acusado com a progressiva demonstração de sua culpa. Disso se deflui que o espaço de conformação do legislador é lato. A cláusula não obsta que a lei regulamente os procedimentos, tratando o implicado de forma progressivamente mais gravosa, conforme a imputação evolui.
[…] Como observado por Eduardo Espínola Filho, ‘a presunção de inocência é vária, segundo os indivíduos sujeitos passivos do processo, as contingências da prova e o estado da causa’. Ou seja, é natural à presunção de não culpabilidade evoluir de acordo com o estágio do procedimento. Desde que não se atinja o núcleo fundamental, o tratamento progressivamente mais gravoso é aceitável. (…) Esgotadas as instâncias ordinárias com a condenação à pena privativa de liberdade não substituída, tem-se uma declaração, com considerável força de que o réu é culpado e a sua prisão necessária. Nesse estágio, é compatível com a presunção de não culpabilidade determinar o cumprimento das penas, ainda que pendentes recursos” (in: Marco Aurélio Mello. Ciência e Consciência, vol. 2, 2015). (grifos nossos)
E, nelas calcado, arremata:
Realmente, a execução da pena na pendência de recursos de natureza extraordinária não compromete o núcleo essencial do pressuposto da não-culpabilidade, na medida em que o acusado foi tratado como inocente no curso de todo o processo ordinário criminal, observados os direitos e as garantias a ele inerentes, bem como respeitadas as regras probatórias e o modelo acusatório atual. Não é incompatível com a garantia constitucional autorizar, a partir daí, ainda que cabíveis ou pendentes de julgamento recursos extraordinários, a produção dos efeitos próprios da responsabilização criminal reconhecida pelas instâncias ordinárias. (grifo nosso)
Quanto à morosidade do sistema recursal extraordinário e sua ingerência na efetivação da justiça, asseverou:
Cumpre ao Poder Judiciário e, sobretudo, ao Supremo Tribunal Federal, garantir que o processo - único meio de efetivação do jus puniendi estatal -, resgate essa sua inafastável função institucional. A retomada da tradicional jurisprudência, de atribuir efeito apenas devolutivo aos recursos especial e extraordinário (como, aliás, está previsto em textos normativos) é, sob esse aspecto, mecanismo legítimo de harmonizar o princípio da presunção de inocência com o da efetividade da função jurisdicional do Estado. Não se mostra arbitrária, mas inteiramente justificável, a possibilidade de o julgador determinar o imediato início do cumprimento da pena, inclusive com restrição da liberdade do condenado, após firmada a responsabilidade criminal pelas instâncias ordinárias (grifo nosso)
Também no julgamento do HC nº 126.292/SP, o ministro Luís Roberto Barroso perfaz crítica à mudança de posicionamento do STF em 2009, afirmando que tal câmbio de entendimento ensejou “poderoso incentivo à infindável interposição de recursos protelatórios”, reforçou a seletividade do sistema penal, uma vez que “a ampla (e quase irrestrita) possibilidade de recorrer em liberdade aproveita sobretudo aos réus abastados, com condições de contratar os melhores advogados para defendê-los em sucessivos recursos”, e “contribuiu significativamente para agravar o descrédito do sistema de justiça penal junto à sociedade”, em virtude do “enorme distanciamento temporal entre a prática do delito e a punição definitiva. Em ambos os casos, produz-se deletéria sensação de impunidade, o que compromete, ainda, os objetivos da pena, de prevenção especial e geral”.
Ao final, lança três outros argumentos: o da mutação constitucional, o da ordem judicial fundamentada como único pressuposto da prisão no direito brasileiro, excepcionando, por óbvio, a prisão em flagrante, e a necessidade de ponderação do princípio com outros bens jurídicos constitucionais:
Segundo o ministro:
Enquanto o inciso LVII define que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”, logo abaixo, o inciso LXI prevê que “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente”. Como se sabe, a Constituição é um conjunto orgânico e integrado de normas, que devem ser interpretadas sistematicamente na sua conexão com todas as demais, e não de forma isolada. Assim, considerando-se ambos os incisos, é evidente que a Constituição diferencia o regime da culpabilidade e o da prisão.
[…]Para fins de privação de liberdade, portanto, exige-se determinação escrita e fundamentada expedida por autoridade judiciária. Este requisito, por sua vez, está intimamente relacionado ao monopólio da jurisdição, buscando afastar a possibilidade de prisão administrativa (salvo as disciplinares militares). Tal regra constitucional autoriza (i) as prisões processuais típicas, preventiva e temporária, bem como outras prisões, como (ii) a prisão para fins de extradição (decretada pelo STF), (iii) a prisão para fins de expulsão (decretada por juiz de primeiro grau, federal ou estadual com competência para execução penal) e (iv) a prisão para fins de deportação (decretada por juiz federal de primeiro grau).
Em todas as hipóteses enunciadas acima, como parece claro, o princípio da presunção de inocência e a inexistência de trânsito em julgado não obstam a prisão. Muito pelo contrário, no sistema processual penal brasileiro, a prisão pode ser justificada mesmo na fase pré-processual, contra meros investigados, ou na fase processual, ainda quando pesar contra o acusado somente indícios de autoria, sem qualquer declaração de culpa. E isso não esvazia a presunção de não culpabilidade. (grifos nossos)
Acerca da necessidade de ponderação e da intensidade da presunção de não culpabilidade no decorrer do processo, anuncia:
Na discussão específica sobre a execução da pena depois de proferido o acórdão condenatório pelo Tribunal competente, há dois grupos de normas constitucionais colidentes. De um lado, está o princípio da presunção de inocência […] e de outro lado, encontra-se o interesse constitucional na efetividade da lei penal, em prol dos objetivos (prevenção geral e específica) e bens jurídicos (vida, dignidade humana, integridade física e moral, etc.) tutelados pelo direito penal.
[…] Há, desse modo, uma ponderação a ser realizada. Nela, não há dúvida de que o princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade adquire peso gradativamente menor na medida em que o processo avança, em que as provas são produzidas e as condenações ocorrem. […] O sacrifício que se impõe ao princípio da não culpabilidade – prisão do acusado condenado em segundo grau antes do trânsito em julgado – é superado pelo que se ganha em proteção da efetividade e da credibilidade da Justiça, sobretudo diante da mínima probabilidade de reforma da condenação, como comprovam as estatísticas. Essa conclusão é reforçada pela aplicação do princípio da proporcionalidade como proibição de proteção deficiente.
O princípio da proporcionalidade, tal como é hoje compreendido, não possui apenas uma dimensão negativa, relativa à vedação do excesso, que atua como limite às restrições de direitos fundamentais que se mostrem inadequadas, desnecessárias ou desproporcionais em sentido estrito. Ele abrange, ainda, uma dimensão positiva, referente à vedação à proteção estatal insuficiente de direitos e princípios constitucionalmente tutelados. A ideia é a de que o Estado também viola a Constituição quando deixa de agir ou quando não atua de modo adequado e satisfatório para proteger bens jurídicos relevantes. Tal princípio tem sido aplicado pela jurisprudência desta Corte em diversas ocasiões para afastar a incidência de normas que impliquem a tutela deficiente de preceitos constitucionais. (grifos nossos)
Incansável, desta vez sob a perspectiva do acautelamento da ordem pública, sedimenta o ministro:
No momento em que se dá a condenação do réu em segundo grau de jurisdição, estabelecem-se algumas certezas jurídicas: a materialidade do delito, sua autoria e a impossibilidade de rediscussão de fatos e provas. Neste cenário, retardar infundadamente a prisão do réu condenado estaria em inerente contraste com a preservação da ordem pública, aqui entendida como a eficácia do direito penal exigida para a proteção da vida, da segurança e da integridade das pessoas e de todos os demais fins que justificam o próprio sistema criminal. (grifo nosso)
Por fim, como se em ágora estivesse, profere:
O juiz de primeiro grau e o Tribunal de Justiça passaram a ser instâncias de passagem, porque o padrão é que os recursos subam para o Superior Tribunal de Justiça e, depois, para o Supremo Tribunal Federal. Porém, não se pode presumir, ou assumir como regra, que juízes e tribunais brasileiros profiram decisões equivocadas ou viciadas, de modo a atribuir às cortes superiores o monopólio do acerto. Em verdade, não há direito ao triplo ou quádruplo grau de jurisdição: a apreciação pelo STJ e pelo STF não é assegurada pelo princípio do devido processo legal e não constitui direito fundamental. […] A mudança de entendimento também auxiliará na quebra do paradigma da impunidade.
3.1.2 Entendimento contrário
Contrariamente à constitucionalidade, os argumentos aventados são: i) o momento processual de formação da culpa, por disposição constitucional, é o trânsito em julgado da sentença condenatória, ii) a Constituição Federal, inciso LVII, é literal, não cabendo malabarismos hermenêuticos a negar vigência ao que é cristalino, iii) os argumentos desenvolvidos pela corrente adversa são todos equivocados, devendo ser rechaçados em sua totalidade.
Dentre as principais passagens dignas de citação, destacamos o esclarecimento de GOMES (2016) de que há dois sistemas jurídicos antagônicos, com parâmetros distintos, no tratamento da presunção de inocência para definição do momento de início de execução da pena:
Há dois sistemas mundiais para se derrubar a presunção de inocência (possibilitando a imediata execução da pena). Primeiro: o do trânsito em julgado final. Segundo: o do duplo grau de jurisdição.
No primeiro sistema, somente depois de esgotados “todos os recursos” (ordinários e extraordinários) é que a pena pode ser executada (salvo o caso de prisão preventiva, que ocorreria teoricamente em situações excepcionalíssimas). No segundo sistema a execução da pena exige dois julgamentos condenatórios feitos normalmente pelas instâncias ordinárias (1º e 2º graus). Nele há uma análise dupla dos fatos, das provas e do direito, leia-se, condenação imposta por uma instância e confirmada por outra.
A quase totalidade dos países ocidentais segue o segundo sistema (duplo grau). A minoria, incluindo-se a Constituição brasileira (art. 5º, inc. LVII), segue o primeiro (do trânsito em julgado). O direito internacional deixa que cada país regule o tema da sua maneira (grifos nossos)
Corroborando essa posição são as lições de LOPES JR. (2016, p. 20), segundo o qual há de se diferenciar ‘culpabilidade normativa’ e ‘culpabilidade fática’, significando que ao condenado em segunda instância é assegurada a mesma presunção de inocência, isto é, na mesma intensidade, a quem nunca investigado foi:
Não adotamos o modelo norte-americano de processo penal, assentado no paradigma de controle social do delito sobre o qual se estrutura um conceito operacional de culpabilidade fática; todo o oposto, nosso sistema estrutura-se sobre o conceito jurídico de culpabilidade, que repousa na presunção de inocência.
Em apertada síntese, o conceito normativo de culpabilidade exige que somente se possa falar em (e tratar como) culpado, após o transcurso inteiro do processo penal e sua finalização com a imutabilidade da condenação. E, mais, somente se pode afirmar que está ‘comprovada legalmente a culpa’ como exige o art. 8.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos, com o trânsito em julgado da decisão condenatória.
Portanto, é errado afirmar-se que 'a culpa está provada' após a decisão de segundo grau. No nosso sistema, com o marco constitucional da presunção de inocência vinculada ao trânsito em julgado, é somente neste momento que se pode considerar 'estar provada a culpa'.
[…] Em suma, do ponto de vista da ordem jurídica, é correto afirmar que o acusado goza da mesma situação jurídica que um inocente. Esse é um ponto de partida do qual deve partir, tanto a lei, quanto a jurisprudência, de um Estado de Direito no regramento de sua persecução penal. E essa paridade ou igualdade substancial não se altera nos diversos momentos da persecução penal: o investigado, o acusado e o condenado enquanto pende recurso da sentença condenatória estão na mesma situação jurídica que o inocente, isto é, quem nunca foi investigado ou processado. (grifos nossos)
Já com relação à inexistência de efeito suspensivo próprio nos recursos extraordinários, prossegue o autor, destacando, também, que não se deve, no âmbito recursal penal, utilizar de atalhos mentais técnicos da processualística cível:
O caráter “extraordinário” dos recursos especial e extraordinário, bem como o fato de serem recursos de fundamentação vinculada e limitados ao reexame de questões de direito (sublinhando que essa dicotomia “questões de fato x questões de direito” é tênue, artificial e muitas vezes ilusória, sendo superada e manipulada quando querem os tribunais superiores (mais espaço fértil para o decisionismo), não é um argumento legítimo para sustentar a execução antecipada da pena. Porque o caráter “extraordinário” desses recursos não afeta o conceito de trânsito em julgado expressamente estabelecido como marco final do processo (culpabilidade normativa) e inicial para o “tratamento de culpado”.
[…] Recordemos Carnelutti, quando dizia que uma diferença insuperável entre o processo civil e o processo penal era exatamente essa: enquanto o processo civil se ocupa do “ter”, o processo penal lida como o “ser”. Portanto, é de outra coisa – que não mero “efeito” recursal – que estamos tratando ao discutir a eficácia temporal da garantia constitucional da presunção de inocência.
E, para finalizar, uma vez mais é preciso recordar: a Constituição expressamente estabelece a proibição de se tratar como culpado – e, portanto, há uma inconstitucional equiparação ao mandá-lo para a “mesma” prisão – aquele que ainda é simples acusado, antes do trânsito em julgado. Enfim, o conceito de trânsito em julgado não tem absolutamente nenhuma relação com o efeito recursal. (grifos nossos)
Quanto à pretensão de maior efetividade da prestação jurisdicional, assevera LIMA (2017, p. 48/49):
não negamos que se deva buscar uma maior eficiência no sistema processual penal pátrio. Mas a nosso juízo, essa busca não pode se sobrepor à Constituição Federal, que demanda a formação da coisa julgada para que se possa dar início à execução de uma prisão de natureza penal. E só se pode falar em trânsito em julgado quando a decisão se torna imutável, o que, como sabemos, é obstado [efeito obstativo] pela interposição dos recursos extraordinários, ainda que desprovidos de efeito suspensivo. Não há, portanto, margem exegética para que o art. 5º, inciso LVII, da Constituição Federal, seja interpretado no sentido de se concluir que o acusado é presumido inocente (ou não culpável) tão somente até a prolação de acórdão condenatório por Tribunal de 2ª instância.
3.1.3 Entendimento do Supremo Tribunal Federal
Desde a entrada em vigor da Constituição Federal de 1988 até início de 2009, o Supremo Tribunal Federal manteve entendimento de que a prisão decorrente de acórdão que, em sede de apelação, confirma a sentença penal condenatória era constitucional, não violando a presunção de inocência.
Nesse sentido, exemplificativamente, é a ementa do HC nº 68.726, julgado em 28/06/1991:
Habeas corpus. Sentença condenatória mantida em segundo grau. Mandado de prisão do paciente. Invocação do art. 5º, inciso LVII, da Constituição. Código de Processo Penal, art. 669. A ordem de prisão, em decorrência de decreto de custódia preventiva, de sentença de pronúncia ou de decisão e órgão julgador de segundo grau, é de natureza processual e concernente aos interesses de garantia da aplicação da lei penal ou de execução da pena imposta, após o devido processo legal. Não conflita com o art. 5º, inciso LVII, da Constituição. De acordo com o § 2º do art. 27 da Lei nº 8.038/1990, os recursos extraordinário e especial são recebidos no efeito devolutivo. Mantida, por unanimidade, a sentença condenatória, contra a qual o réu apelara em liberdade, exauridas estão as instâncias ordinárias criminais, não sendo, assim, ilegal o mandado de prisão que órgão julgador de segundo grau determina se expeça contra o réu. Habeas corpus indeferido.[4]
Posteriormente, revela-nos a evolução histórica o saudoso ministro Teori Zavascki, no julgamento do HC nº 126.292, por inúmeras oportunidades o Supremo Tribunal Federal reiterou o entendimento então vigente, acentuando a falta de efeito suspensivo dos recursos extraordinários e, especialmente, “que a superveniência da sentença penal condenatória recorrível imprimia acentuado “juízo de consistência da acusação”, o que autorizaria, a partir daí, a prisão como consequência natural da condenação”, o que acabou por ocasionar, no ano de 2003, a redação de duas súmulas pela Suprema Corte, de número 716 e 717. In verbis:
Súmula nº 716: Admite-se a progressão de regime de cumprimento da pena ou a aplicação imediata de regime menos severo nela determinada, antes do trânsito em julgado da sentença condenatória.
Súmula nº 717: Não impede a progressão de regime de execução da pena, fixada em sentença não transitada em julgado, o fato de o réu se encontrar em prisão especial
Aliado a isso, na redação do artigo 594 do Código de Processo anterior à reforma de 2008, era requisito de admissibilidade da apelação que o réu se recolhesse à prisão, em caráter visivelmente cautelar, assim como era vigente, à época, a prisão decorrente de pronúncia. Tais disposições legais eram acatadas regularmente pelo Supremo Tribunal Federal.
Em 05 de fevereiro de 2009, contudo, ao julgar o HC nº 84.078/MG, o plenário do Supremo Tribunal Federal reverteu sua jurisprudência, vindo a concluir que o princípio da presunção de inocência se mostra incompatível com a execução criminal provisória, lançando mão dos seguintes fundamentos:
A Constituição do Brasil de 1988 definiu, em seu art. 5º, inciso LVII, que “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”. [...] A prisão antes do trânsito em julgado da condenação somente pode ser decretada a título cautelar. […] A antecipação da execução penal, ademais de incompatível com o texto da Constituição, apenas poderia ser justificada em nome da conveniência dos magistrados --- não do processo penal. A prestigiar-se o princípio constitucional, dizem, os tribunais [leia-se STJ e STF] serão inundados por recursos especiais e extraordinários e subseqüentes agravos e embargos, além do que “ninguém mais será preso”. Eis o que poderia ser apontado como incitação à “jurisprudência defensiva”, que, no extremo, reduz a amplitude ou mesmo amputa garantias constitucionais. A comodidade, a melhor operacionalidade de funcionamento do STF não pode ser lograda a esse preço [5] (grifos nossos)
Em nova reviravolta, em 17 de fevereiro de 2016, a cúpula máxima do Poder Judiciário brasileiro reviu a posição adotada em 2009, retornando ao entendimento outrora vigente, ao julgar o HC nº 126.292/SP. Nesse julgado:
I. O relator do Habeas Corpus, Teori Zavascki votou pela constitucionalidade da execução penal provisória. As principais razões de sua lavra constam no item 3.1.1, ao qual se remete o leitor.
II. O revisor, Edson Fachin, acompanhou o relator. Em seu voto, inclinou-se pela harmonização da presunção de inocência com outras normas constitucionais, como a duração razoável do processo (art. 5º, LXXVIII, da CF) e a soberania dos vereditos do Tribunal do Júri (art. 5º XXXVIII, “c”, da CF). Sobrelevou o locus ocupado pelo Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça como guardiões do ordenamento jurídico, e não como “revisores das injustiças do caso concreto”. Nessa senda, afirmou:
O revolvimento da matéria fática, firmada nas instâncias ordinárias, não deve estar ao alcance das Cortes Superiores, que podem apenas dar aos fatos afirmados nos acórdãos recorridos nova definição jurídica, mas não nova versão. As instâncias ordinárias, portanto, são soberanas no que diz respeito à avaliação das provas e à definição das versões fáticas apresentadas pelas partes. Ainda, o acesso via recurso ao Supremo Tribunal Federal e ao Superior Tribunal de Justiça se dá em caráter de absoluta excepcionalidade. A própria definição constitucional da quantidade de magistrados com assento nessas Cortes repele qualquer interpretação que queria delas fazer instâncias revisoras universais. A finalidade que a Constituição persegue não é outorgar uma terceira ou quarta chance para a revisão de um pronunciamento jurisdicional com o qual o sucumbente não se conforma e considera injusto. (grifos nossos)
Ato contínuo, criticou o sistema recursal penal brasileiro:
Sabem todos que o trânsito em julgado, no sistema recursal brasileiro, depende em algum momento da inércia da parte sucumbente. Há sempre um recurso oponível a uma decisão, por mais incabível que seja, por mais estapafúrdias que sejam as razões recursais invocadas. Os mecanismos legais destinados a repelir recursos meramente protelatórios são ainda muito incipientes. Se pudéssemos dar à regra do art. 5º, LVII, da CF caráter absoluto, teríamos de admitir, no limite, que a execução da pena privativa de liberdade só poderia operar-se quando o réu se conformasse com sua sorte e deixasse de opor novos embargos declaratórios. Isso significaria dizer que a execução da pena privativa de liberdade estaria condicionada à concordância do apenado. (grifos nossos)
Ao final, convergindo com a relatoria, asseverou:
Se afirmamos que a presunção de inocência não cede nem mesmo depois de um Juízo monocrático ter afirmado a culpa de um acusado, com a subsequente confirmação por parte de experientes julgadores de segundo grau, soberanos na avaliação dos fatos e integrantes de instância à qual não se opõem limites à devolutividade recursal, reflexamente estaríamos a afirmar que a Constituição erigiu uma presunção absoluta de desconfiança às decisões provenientes das instâncias ordinárias.
[…] Para sanar essas situações [injustiças do caso concreto], como bem ressaltado no voto do eminente Relator, há instrumentos processuais eficazes, tais como as medidas cautelares para conferir efeito suspensivo a recursos especiais e extraordinários, bem como o habeas corpus, que a despeito de interpretação mais restritiva sobre seu cabimento, em casos de teratologia, são concedidos de ofício por esta Suprema Corte. (grifo nosso)
III. O Ministro Luís Roberto Barroso também seguiu o relator. Suas razões constam no 3.1.1, ao qual se remete o leitor.
IV. A ministra Rosa Weber, por seu turno, pediu vênia e posicionou-se contrariamente à constitucionalidade da execução criminal provisória. Em suma, assegurou não estar “à vontade para referendar a revisão de jurisprudência proposta”, uma vez que haveria “contraste bem vincado entre o texto expresso da Constituição do Brasil e a execução antecipada da pena”.
V. O ministro Luis Fux, quando de seu voto, trouxe relevantes argumentos à defesa da constitucionalidade. Por primeiro, problematizou:
Ninguém consegue entender a seguinte equação: o cidadão tem a denúncia recebida, ele é condenado em primeiro grau, é condenado no juízo da apelação, condenado no STJ e ingressa presumidamente inocente no Supremo Tribunal Federal.
[…] Então, se esse agente perpassa por todas as esferas do Judiciário, positivamente, é impossível que ele chegue, aqui, ao Supremo Tribunal Federal, na qualidade de presumido inocente. (grifo nosso)
Após, lançou intrigante questão jurídica, a de que haveria, no esgotamento do segundo grau de jurisdição, quanto à matéria fático-probatória, efetivo trânsito em julgado, mesmo que parcial, e não mera preclusão, dando a entender, segundo nos pareceu, que os tribunais superiores trabalhariam, na prática, em caráter rescisório, averiguador de nulidades. Disse o ministro:
Com relação àquela matéria fático-probatória, há uma coisa julgada singular, porque, aquilo ali, em regra, é imutável, indiscutível, porque não é passível de análise no Tribunal Superior. Só se devolvem questões constitucionais e questões federais. E, eventualmente, ad eventum, e à luz da realidade prática muito difícil, pode-se, eventualmente, constatar um vício de inconstitucionalidade.
Mas a verdade é que é possível se entrever uma imutabilidade com relação à matéria de mérito da acusação das provas e prosseguir-se o recurso por outro ângulo da análise constitucional. E isso porque o próprio Supremo Tribunal Federal já afirmou, recentemente, que se admite a coisa julgada em capítulos. (grifos nossos)
Ao término de seu voto, assentou que, hoje, a presunção de inocência até o esgotamento da instância extraordinária “não corresponde mais aquilo que se denomina de sentimento constitucional”, sendo fundamental, por vezes, “o abandono dos precedentes em virtude da incongruência sistêmica ou social”, isto é, em virtude de “uma relação de incompatibilidade entre as normas jurídicas e os standards sociais; corresponde a um vínculo negativo entre as decisões judiciais e as expectativas dos cidadãos”. Nesse diapasão, sinalizando aproximação com a expectativa do corpo social, acompanhou a relatoria pela constitucionalidade de execução penal antecipada.
VI. A ministra Carmén Lúcia igualmente acompanhou o relator, em sintético voto, sem destaques.
VII. O ministro Gilmar Mendes, de mesmo modo, votou favoravelmente, mantendo seu antigo entendimento, já exposado no voto de Teori Zavascki. Compete-nos destacar que, posteriormente ao julgamento desse HC nº 126.292, o ministro alterou seu entendimento, passando a refutar a constitucionalidade da execução penal provisória.
VIII. O decano, ministro Celso de Mello, preliminarmente, exaltou a presunção de inocência como “notável conquista histórica dos cidadãos em sua permanente luta contra a opressão do Estado e o abuso de poder” e, firme nesse tótem, divergiu da relatoria, concluindo que:
Há, portanto, segundo penso, um momento, claramente definido no texto constitucional, a partir do qual se descaracteriza a presunção de inocência, vale dizer, aquele instante em que sobrevém o trânsito em julgado da condenação criminal. Antes desse momento, o Estado não pode tratar os indiciados ou os réus como se culpados fossem. A presunção de inocência impõe, desse modo, ao Poder Público um dever de tratamento que não pode ser desrespeitado por seus agentes e autoridades. (grifo nosso)
IX. O ministro Ricardo Lewandowski votou contrariamente à execução provisória, asseverando “não conseguir ultrapassar a taxatividade” do artigo 5º, LVII, que prevê a presunção de inocência até o trânsito em julgado.
X. O ministro Dias Toffoli, que no HC nº 126.292, havia adotado posição intermediária, favorável à execução da pena enquanto houvesse pendência recursal no STJ, mas não no STF, adotou posição contrária no julgamento da medida cautelar das Ações Declaratórias de Constitucionalidade nº 43 e 44, afirmando que a execução antecipada violaria a presunção de inocência enquanto “norma de tratamento”, porquanto o réu deve ser, da perspectiva do juízo, presumidamente inocente até o trânsito em julgado, marco de formação da culpa. [6]
XI. Por último, o ministro Marco Aurélio, que divergiu da corrente majoritária no HC nº 126.292, afirmou, em decisão monocrática pela relatoria das Ações Declaratórias de Constitucionalidade nº 43 e 44, ajuizadas pelo Partido Ecológico Nacional:
Observem a organicidade do Direito, levando em conta o preconizado no artigo 5º, inciso LVII, da Lei Maior – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. A literalidade do preceito não deixa margem para dúvidas: a culpa é pressuposto da reprimenda, e a constatação ocorre apenas com a preclusão maior. O dispositivo não abre campo a controvérsias semânticas.
[…] O preceito, a meu ver, não permite interpretações. Há uma máxima, em termos de noção de interpretação, de hermenêutica, segundo a qual, onde o texto é claro e preciso, cessa a interpretação, sob pena de se reescrever a norma jurídica, e, no caso, o preceito constitucional. Há de vingar o princípio da autocontenção. (grifos nossos)
Essa, portanto, a posição do Pleno do Supremo Tribunal Federal, ministro a ministro. Cumpre-nos registrar, todavia, há precedentes posteriores ao julgamento do HC nº 126.292, de lavra da Segunda Turma do Tribunal Constitucional, em que se concedeu ordem de liberdade ao paciente recluso em virtude da execução antecipada da pena.
Tome-se, por exemplo, o HC nº 138. 337/SP, no qual o ministro Marco Aurélio expressou, como se em divã estivesse: “Ao tomar posse neste Tribunal, há 26 anos, jurei cumprir a Constituição Federal, observar as leis do País, e não a me curvar a pronunciamento que, diga-se, não tem efeito vinculante. De qualquer forma, está-se no Supremo, última trincheira da Cidadania, se é que continua sendo”.
3.2 Problematização terminológica. Da presunção de ‘não culpabilidade’ como expressão não correlata à ‘presunção de inocência’
Como certamente observado pelo leitor, no decorrer do presente trabalho, utilizou-se os termos ‘presunção de não culpabilidade’ e ‘presunção de inocência’ como termos correlatos. Nesse ponto, interessante o que nos adverte BENTO (2007, p. 22): que a Constituição Federal, em realidade, “não expressou claramente as condições para que se presuma a inocência, mas apenas declarou quando o cidadão passará a ser considerado culpado”.
A nosso ver, e aqui pontuamos haver divergência doutrinária acerca da equivalência dos termos, entre ‘inocente’ e ‘não culpado’ não há termo intermediário. O acusado, por óbvio, apenas pode ser culpado (não inocente) ou não culpado (inocente), não havendo outra possibilidade, uma vez que não há “meio-culpado” ou “meio-inocente”. Logo, não sendo considerado culpado (não inocente) senão após o trânsito em julgado, ínsito que, anteriormente a esse momento processual, não culpado (inocente) deve ser presumido e tratado o agente.
Ademais, e aqui cremos que a discussão é espancada em definitivo, os tratados internacionais de que o Brasil é signatário (item 4.1, infra) trazem clara redação de que o acusado, até comprovação de sua culpa, tem direito a ser presumido inocente (postura positiva – não neutra – por parte do juízo). Dessa maneira, mesmo que a CF não determine expressamente a presunção de inocência, esta adquire sua cogência pelos tratados internacionais de que o Brasil é signatário.