Capa da publicação Execução criminal provisória após segundo grau de jurisdição é constitucional?
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Da execução criminal provisória após segundo grau de jurisdição e sua (in)constitucionalidade

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4. Problematização. Críticas à defesa da constitucionalidade

4.1 Dos tratados internacionais envolvendo a matéria

Como já dito alhures, o Brasil é signatário de, ao menos, três tratados internacionais nos quais a presunção de inocência encontra-se enunciada: a Declaração Universal de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (1948), o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (1966) e a Convenção Americana de Direitos Humanos de 1969 (Pacto de São José da Costa Rica). Aludidos tratados, por anteriores ao RE 466.343-SP, julgado em 2007, possuem validade supralegal, mas infraconstitucional.

Os três instrumentos internacionais, no entanto, trazem redação similar, a ver: “Todo ser humano acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei [...]” (Declaração Universal de Direitos Humanos, artigo 11.1), “toda pessoa acusada de um delito terá direito a que se presuma sua inocência enquanto não for legalmente comprovada sua culpa” (Pacto Internacional dos Direitos Civis, no artigo 14.2) e “Toda pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto não se comprove legalmente sua culpa” (Convenção Americana de Direitos Humanos, artigo 8.2).

Dessa maneira, todos os tratados internacionais que prevêem a matéria consubstanciam-se, em última análise, em normativa “em branco”, haja vista dependerem, para sua complementariedade e aplicabilidade, da definição processual interna de cada um dos signatários do momento da formação da culpa.

4.2 Do momento de formação da culpa e conceito de trânsito em julgado

Conforme acima constatado, os tratados internacionais que tratam da presunção de inocência prevem-na até o momento paradigmático da formação da culpa. A Constituição Federal, por outro lado, assevera que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado, sendo a redação dotada de notável literalidade.

Dessa feita, é cristalino que o instante do trânsito em julgado é o marco constitucionalmente posto para formação da culpa, não podendo, jamais, sob pena de quebra de garantia fundamental, ela encontrar-se formada anteriormente a esse ponto processual. Cabe-nos, à vista disso, averiguar o que se entende pela expressão “trânsito em julgado”:

A noção de ‘trânsito em julgado’ como momento processual em que sentença ou acórdão torna-se imutável, criando, por conseguinte, coisa julgada, seja pela não interposição de recurso ou pelo exaurimento da via recursal, é tradicional e encontra fundamento legal no artigo 6º, § 3º, da Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (Decreto-Lei nº 4.657/42), que dispõe: § 3º Chama-se coisa julgada ou caso julgado a decisão judicial de que já não caiba recurso.

O dispositivo ora mencionado, como se é permitido ao leitor perceber muitíssimo claramente, é de literalidade aguda, não exigindo, e nem possibilitando, por sua delimitação semântica manifesta, praticamente qualquer desenvolvimento hermenêutico para sua compreensão. Trata-se, pois, de conceito do tipo “fechado”, desvalida a norma de qualquer abertura textual significativa, o que não lhe evita, contudo, determinada incorreção técnica, abaixo vista.

Não cabendo-nos aprofundar a diferenciação entre coisa julgada formal (para dentro do processo) ou material (para fora do processo), pois despicienda, uma vez que toda sentença ou acórdão criminal condenatório tem de, obrigatoriamente, analisar o mérito e, portanto, produzir coisa julgada material, parece-nos interessante esclarecer a dessemelhança entre ‘coisa julgada’ e ‘preclusão’, porquanto nem toda decisão judicial da qual já não caiba recurso produz coisa julgada.

A preclusão, em tradicional lição (CINTRA, 2012, p. 341), é entendida como perda ou consumação das faculdades processuais, seja pelo decurso do tempo, pela consumação do ato processual ou por sua incompatibilidade com atos processuais anteriormente realizados pela parte. Aplica-se, portanto, a todo ato processual já superado, independentemente de qual seja; seus efeitos esgotam-se intra-autos.

A coisa julgada, pelo contrário, diz respeito apenas à imutabilidade de sentença ou acórdão, constituindo, por tal razão, uma “preclusão qualificada”, um master daquele instituto. Com isso, é possível dizer que a coisa julgada tem efeito preclusivo, pois impossibilita rediscussão da matéria, ao menos, no mesmo processo. A recíproca, todavia, não é verdadeira, dado que, nas palavras de Cintra, “a preclusão é o antecedente de que a coisa julgada é o subsequente”.

Superada essa sintética introdução, é devido asseverar que, entre o exaurimento dos recursos ordinários e o julgamento de recursos extraordinários interpostos, não há coisa julgada, senão preclusão. Isto porque, ainda que de modalidade extraordinária, os recursos especial e extraordinário ainda assim são meios de impugnação do tipo ‘recurso’, e não do tipo ‘sucedâneo recursal’, o que, tecnicamente, é de crucial relevância, conforme explanado rapidamente a seguir.

4.2.1 Entrementes: diferenciação entre recursos e sucedâneos recursais

Espécie do gênero ‘meios de impugnação’, recurso, nas palavras de LIMA (2017, p. 1631):

é o instrumento processual voluntário de impugnação de decisões judiciais, previsto em lei federal, utilizado antes da preclusão e na mesma relação jurídica processual, objetivando a reforma, a invalidação, a integração ou o esclarecimento da decisão judicial impugnada.

Noutra senda, para NEVES (2016, p. 1443/1444), a partir da perspectiva processual civil, não muito diferente da apresentada pelo douto processualista penal acima mencionado, o conceito de recurso deve ser erigido a partir de cinco características essenciais: i) voluntariedade, ii) expressa previsão em lei federal, iii) desenvolvimento no próprio processo no qual a decisão impugnada foi proferida – o que não significa identidade de autos, podendo correr apartado –, iv) ser manejável pelas partes, terceiros prejudicados e Ministério Público e v) conter o objetivo de reformar, anular, integrar ou esclarecer decisão judicial.

Dentre tais características essenciais, continua o professor, a tipicidade é fundamental para diferenciar os recursos dos sucedâneos recursais, outra espécie do gênero ‘meios de impugnação’, os quais, por sua vez, podem ser de natureza interna ou externa.

Em síntese, enquanto os internos – v.g., reexame necessário e pedido de reconsideração – se desenvolvem no seio da mesma relação jurídico-processual que emana a decisão impugnada, os externos, também chamados de ações autônomas de impugnação – v.g., habeas corpus, mandado de segurança e revisão criminal – se desenvolvem fora da relação jurídico-processual na qual a decisão impugnada foi proferida.

4.2.2 Conclusão do subitem

Logo, com o esgotamento do segundo grau de jurisdição, não há trânsito em julgado, apenas preclusão. Nesse diapasão, é sempre preeminente relembrar que o inciso LVII do artigo 5º da Constituição Federal exige, para formação da culpa, o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, não cabendo, por tratar-se de garantia fundamental individual, sua interpretação ampliativa em desfavor do indivíduo.

Quanto ao argumento trazido pelo ministro Luiz Fux, de que o acórdão penal condenatório transitaria em julgado por capítulos e que, mesmo pendente recurso aos tribunais superiores, a matéria fático-probatória constituiria coisa julgada parcial, com pertinente formação da culpa e cumprimento antecipado da pena, parece-nos tecnicamente correto tal raciocínio apenas se o recurso interposto não trouxer em seu bojo pretensão incompatível com a formação da culpa.

É dizer, somente se a extensão do efeito devolutivo se limitar a questões que não controvertam, mesmo que indiretamente, a culpabilidade do condenado – v.g., pedido de restituição de coisas, pedido de fixação de regime carcerário mais brando, pedido de aplicação, na dosimetria, de causas de redução de pena, etc.

Do contrário, estando controvertida a culpabilidade por questão de direito, do ministro discordamos, pela simples razão que, ao contrário do cumprimento de sentença provisório cível, que corre por responsabilidade do exequente e onde se presta caução para reparar graves danos (art. 520, IV, do CPC), a liberdade de locomoção, quando restringida, é absolutamente irreversível.

Dessa maneira, o dogma constitucional da liberdade de locomoção não comporta aprisionamento do sujeito, que não a título cautelar, na pendência de recurso aos tribunais superiores que contenha pretensão que controverta a culpabilidade. Caso a extensão do efeito devolutivo, no entanto, diga respeito a questões que não possuam esse condão, o trânsito em julgado por capítulos parece-nos tecnicamente adequado.

4.3 Da falta de efeito suspensivo próprio nos recursos extraordinários

Os recursos extraordinários, é consabido, não possuem efeito suspensivo próprio. Isso, em outros termos, significa que a lei, ao prever taxativamente o recurso especial, o recurso extraordinário e os embargos de divergência, a eles não concedeu efeito suspensivo automático (concessão ope legis), o que ocorre, por exemplo, com o recurso de apelação criminal (art. 597 do CPP), em que pese algumas ressalvas oportunamente elencadas no próprio dispositivo legal.

Com isso, a partir da perspectiva recursal, intrinsicamente considerada, tem-se que a recorribilidade – trata-se da mera existência de possibilidade recursal, em plano realmente abstrato – dos recursos extraordinários não suspende a eficácia da decisão impugnada, uma vez que “o que suspende a eficácia da decisão não é a interposição do recurso, mas sim sua recorribilidade, ou seja, a mera previsão de que um recurso cabível contra aquela decisão é dotado de efeito suspensivo [próprio]” (LIMA, 2017, p. 1691).

Em outras palavras, caso o recurso previsto a impugnar determinada decisão não possua efeito suspensivo ope legis, tal decisão, pela sistemática processual, deve produzir seus efeitos imediatamente à publicação. Do contrário, se o recurso previsto pelo ordenamento possuir efeito suspensivo automático, a decisão não produzirá efeito senão depois de precluso o recurso interposto. [7]

Todavia, o raciocínio assim alinhado não merece prosperar, ao menos para efeitos criminais, visto que a técnica recursal encontra seu foco de positivação na legislação infraconstitucional, devendo, dessa feita, absoluta correspondência às proposições constitucionais.

E nessa toada, embora os recursos extraordinários não possuam efeito suspensivo próprio – assim, a decisão guerreada, em tese, deveria produzir efeitos imediatamente –, aludidas consequências, ao menos no campo penal, não se podem espargir do decisório em imediato, uma vez que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da decisão criminal condenatória.

Em outras palavras, é no preceito constitucional da presunção de inocência até o trânsito em julgado que reside o efeito obstaculizador da produção de prontos efeitos do acórdão criminal condenador, fundamento que, por si só, revela imensurável excepcionalidade da lógica processual penal, ao menos neste ponto, de outros espécimes processuais

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O argumento aqui rechaçado, esforçamo-nos para que o leitor compreenda, mostra-se em claríssimo desvio de perspectiva, pois o efeito recursal dos recursos extraordinários em nada se comunica com o conceito de trânsito em julgado, nele jamais influindo.

E, nessa senda, tomado o trânsito em julgado como marco constitucional para a formação da culpa, o efeito dos recursos extraordinários não exerce qualquer função lógica, sendo de total inutilidade para resolução da questão jurídica posta.

Noutra senda, é reconhecido que os recursos extraordinários, por força do artigo 1.029, § 5º, do CPC, possuem efeito suspensivo impróprio (ope judicis), podendo ser concedida pelo juízo caso haja, pela parte, comprovação “dos requisitos da probabilidade do direito e do perigo de suportar grave lesão de difícil ou incerta reparação” (NEVES, 2016, p. 1642).

Tocantemente à determinação de aprisionamento do indivíduo para cumprimento da pena em caráter provisório, a possibilidade de concessão de efeito suspensivo impróprio, assim nos parece, não pode ser parâmetro de medida apta a enxotar atos abusivos por parte do Poder Judiciário, pelo simples motivo que a decisão condenatória de forma alguma pode produzir efeitos, senão após o trânsito em julgado.

Logo, retomamos o raciocínio a bem de alicerçar nossas conclusões, como a não produção imediata de efeitos da decisão criminal condenatória decorre de enunciado constitucional, e não da própria lógica recursal interna, a dicotomia ‘efeito suspensivo próprio’/’efeito suspensivo impróprio’ prejudica-se em absoluto, não havendo viabilidade técnica de aplicação do efeito suspensivo impróprio, que nem deve se cogitar.

4.4 Do encerramento do duplo grau de jurisdição e da impossibilidade de análise fático-probatória nos recursos extraordinários

4.4.1 Do duplo grau de juridição. Introdução do tema

O duplo grau de jurisdição, embora não previsto expressamente na Carta Magna Brasileira de 1988, é exigência emanada da Convenção Interamericana de Direitos Humanos, em seu artigo 8.2, alínea ‘h’ [8], da qual o Brasil é signatário e que possui, por anterior à Emenda Constitucional nº 45/04, validade supralegal.

Outrossim, ministra-nos LIMA (2017, p. 1633), “parte da doutrina entende que o direito ao duplo grau de jurisdição encontra-se inserido de maneira implícita na garantia do devido processo legal (CF, art. 5º, inciso LIV) e no direito à ampla defesa (CF, art. 5º, inciso LV), com os meios e recursos a ela inerentes”.

Independentemente da origem, trata-se de princípio recursal penal, devendo ser garantido à parte a faculdade de acionar o segundo grau de jurisdição, para reanálise integral (matéria fática e de direito, em profundidade plena do efeito devolutivo) da decisão do juízo a quo; vinculada, por óbvio, à extensão do efeito devolutivo, em caso de recurso pelo Ministério Público (vedação da reformatio in pejus e aceitabilidade da reformatio in mellius).

Não obstante, o princípio não encontra aplicação aos réus com foro por prerrogativa de função, hipótese em que o primeiro e único grau de jurisdição dá-se perante os Tribunais de Justiças dos Estados, os Tribunais Regionais Federais, o Superior Tribunal de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, a depender do cargo exercido pelo acusado, por inexistência de recurso ordinário para tanto, o que impede o reexame da integralidade da matéria, uma vez que os recursos extraordinários, por não reanalisarem o conjunto fático-probatório, não perfazem a garantia do duplo grau de jurisdição.

4.4.2 Da impossibilidade de análise fático-probatória nos recursos extraordinários. Introdução do tema

Os recursos extraordinários, é tradicional a lição, são os que, nas palavras de NEVES (2016, p. 1457), “têm como objeto imediato a proteção e a preservação da boa aplicação do Direito”, tendo “o objetivo de viabilizar no caso concreto uma melhor aplicação da lei federal e constitucional, permitindo que por meio deles se preservem tais normas legais”, estando de fora do enfoque recursal a proteção do direito subjetivo da parte, que apenas será tutelado indiretamente. Seu objetivo, como visto, é o resguardo do direito objetivo, “entendendo-se sua preservação como significativa para toda a sociedade, e não só para a parte sucumbente”.

Em decorrência dessa natureza, considerando que o interesse observado nos recursos extraordinários não é diretamente o das partes, que apenas o logra reflexamente, mas sim atinente a preceito de ordem pública, o Superior Tribunal de Justiça sumulou, sob nº 7, o seguinte entendimento: “A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”, seguido do Supremo Tribunal Federal, que editou súmula sua, sob o nº 279: “Para simples reexame de prova não cabe recurso extraordinário”.

Dessa maneira, sedimentou-se, nos tribunais superiores, o consenso que os recursos extraordinários são meios inaptos à revisão fático-probatória do processo, estando vinculada sua cognição à verificação da correta aplicação da lei federal ou da norma constitucional, a tutelar a inquebrantabilidade do ordenamento e do Estado Democrático de Direito.

4.4.3 Das considerações quanto a este argumento

Tal fato, já mencionamos, acabou por ser encampado como argumento pelos defensores da constitucionalidade da execução penal provisória, sob o fundamento agregado de que, a uma, por se encerrar o duplo grau de jurisdição – estando preenchido, dessa forma, tal exigência – com o exaurimento da segunda instância e, a duas, pelo fato dos tribunais superiores não poderem revisar o já precluso quadro fático-probatório dos autos: a culpa já estaria formada.

Em outros termos, defende-se que apenas a primeira e segunda instâncias, por cumprirem com a exigência do duplo grau de jurisdição e por não compartilharem da grande restritividade devolutiva dos recursos extraordinários, isto é, por conhecerem integralmente a matéria sob sua jurisdicionalidade, em amplitude cognitiva de fato e de direito, adentrando afundo o mérito criminal e desenvolvendo proximidade com os contornos do caso concreto, são o locus de formação da culpa pelo juízo.

Devidas todas as vênias, não se pode concordar com tal raciocínio, pelas simples razões de que, primeiramente, todos os recursos penais, quaisquer que sejam, possuem efeito obstativo, tendo o condão de impedir a geração de preclusão da matéria questionada. Logo, havendo questão pendente de julgamento que possa vir a inocentar o réu ou declarar nulo determinado ato processual, o trânsito em julgado está impedido de se verificar, até ulterior decisão.

Aliado a isso, importa dizer, ainda que o STJ e o STF não analisem questões fático-probatórias, a controvérsia de direito é essencial à plena formação da culpa, uma vez que o direito de defesa não se limita à controvérsia fática existente nos autos, senão atende ao somatório de questões de fato e questões de direito (material e processual), devendo o tribunal julgador aplicar o direito à espécie, ainda que a controvérsia seja somente dogmático-jurídica, nos termos da súmula 456 do STF. [9]

Em terceiro, e aqui repisamos uma vez mais, o momento processual constitucionalmente posto para formação da culpa é o trânsito em julgado. Ainda que nos Tribunais Superiores se averigue apenas a correta aplicação da lei federal ou norma constitucional, tal pressuposto não serve para antecipar a formação da culpa, porquanto ela apenas se dá com o trânsito em julgado, o qual, acaso interposta impugnação para tanto, somente se dará com o exaurimento da instância extraordinária, que atualmente possui natureza recursal, e não rescisória.

4.5 Sobre os limites da mutação constitucional

No julgamento do HC nº 126.292/SP, o ministro Luís Roberto Barroso aventou a ocorrência de mutação constitucional quanto ao inciso LVII, do art. 5º, da CF. Como fundamento, asseverou que a impossibilidade da execução antecipada da pena: i) “produziria poderoso incentivo à infindável interposição de recursos protelatórios”, ii) “reforçaria a seletividade do sistema penal”, iii) “contribuiria significativamente para agravar o descrédito do sistema de justiça penal junto à sociedade” [10].

Logo, segundo o ministro, “tornou-se evidente que não se justifica no cenário atual a leitura mais conservadora e extremada do princípio da presunção de inocência”, sendo necessário “conferir ao art. 5º, LVII interpretação mais condizente com as exigências da ordem constitucional no sentido de garantir a efetividade da lei penal, em prol dos bens jurídicos que ela visa resguardar, tais como a vida, a integridade psicofísica, a propriedade”. Nenhuma menção realizou concernentemente aos limites da mutação constitucional.

Com a devida vênia ao ministro da mais alta Corte, de envergadura erudita infinitamente superior à nossa, há de se discordar quanto à viabilidade técnica da mutação constitucional. Para tanto, imprescindível que se prefixem noções fundamentais das clássicas lições de Konrad Hesse.

Para HESSE (2009, p. 73/100), as normas constitucionais, estruturalmente, dentro de seu amplo conteúdo de normatividade, comportam, necessária e cumulativamente, o “programa normativo” e o “domínio normativo”, também chamado de “âmbito normativo”, a saber: enquanto o “programa normativo” é o ordenamento semântico e abstrato do texto, o “domínio normativo” ou “âmbito normativo” é o conjunto de singularidades fáticas que dão concreção ao “programa normativo”, “realizando”, por consequência, a Constituição em suas funções desenhadas na vida da comunidade.

Nessa toada, visto que as realidades históricas transformam-se pela variabilidade de componentes políticos e volubilidades axiológicas do corpo social, o plano da “realização da Constituição”, por sua indispensável vinculação à eficácia da Carta, igualmente submete-se a readequações, tendo de ser reanalisada sua tópica interpretativa pelo juízo na construção da norma em face do caso concreto.

Desse modo, cabe aqui pontuar, em breve resumo propedêutico, a norma constitucional, nos ilustra RODRIGUES (2018, aula 1, p. 1), ao contrário do pensava a corrente juspositivista, “não está dada, cabendo ao intérprete descobri-la e aplicá-la”, mas se constrói paulatinamente ao longo do tempo, a partir de seu componente textual semântico (programa normativo; primeiro estágio de construção) e dos contornos e limites concretos adotados pelo juízo no processo de realização da Constituição (domínio normativo; segundo estágio de construção).

Como, por fundamental postulado de separação de poderes, é vedado ao intérprete alterar o programa normativo do enunciado constitucional, cabe-lhe a mera interpretação do componente textual segundo os métodos hermenêuticos tradicionais: literal, histórico, lógico, teleológico e sistemático (HESSE, 2009, p. 105-109/112) e, a partir da compreensão do programa normativo à luz do problema concreto, a readequação dos meios de materialização da norma. Em outras palavras, encontra-se disponível ao poder criativo do juiz somente a esfera de realização da norma (domínio normativo, segundo estágio de construção), não podendo ele modificar a conjugação linguística explicitada no enunciado constitucional.

Aliado a essa pressuposto de atuação jurisdicional, revela-se imperativo que a norma cuja mutação se averígue tenha suficiente amplitude exegética, isto é, que se constitua textualmente de conceitos abertos, de termos amplos e vagos, porquanto “onde não se suscitam dúvidas não se interpreta” (HESSE, 2009, p. 94/95-102).

Caso contrário, se o preceito constitucional tiver redação “fechada”, restringida aos curtos parâmetros semânticos estará a atuação do intérprete, sendo defeso, em absoluto, a hipótese da mutação constitucional que contrarie flagrantemente o texto da norma. Nesse sentido, afirma HESSE (2009, p. 168/169):

Se as modificações da realidade social só devem ser consideradas relevantes para o conteúdo da norma enquanto fazem parte do âmbito normativo, se o “programa normativo” resulta determinante a esse respeito e se para este último resulta fundamental o texto da norma, então o conteúdo da norma constitucional só poderá modificar-se no interior do marco traçado pelo texto. A fixação desse marco é uma questão de interpretação, valendo também para ela o que se aplica a toda interpretação constitucional: onde termina a possibilidade de uma compreensão lógica do texto da norma ou onde uma determinada mutação constitucional apareceria em clara contradição com o texto da norma; assim encerram-se as possibilidades de interpretação da norma e, com isso, também as possibilidades de uma mutação constitucional.

Ao mesmo tempo é esta a única solução que permite a manutenção das funções essenciais da Constituição, concretamente as de estabilização, racionalização e limitação do poder, que, como já se indicou (III,2,c), exigem por princípio, em um sistema de Constituição escrita, a estrita vinculação ao texto da Constituição. Portanto, o texto da Constituição se erige em limite absoluto de uma mutação constitucional não só do ponto de vista da relação entre “Direito” e “realidade constitucional”, a qual encontra expressão na estrutura da norma constitucional, como também do ponto de vista das funções da Constituição. (grifos nossos)

Ante todo o exposto, é dado concluir que o art. 5º, LVII, da CF, sobretudo pelo termo jurídico empregado: “trânsito em julgado”, conceitualmente “fechado”, conforme já se deslindou nos subitens anteriores, não comporta amplitude semântica suficiente para sua reinterpretação no sentido de legitimar a execução criminal provisória, a qual se dá, por anterior ao trânsito em julgado, em manifesta contradição com o programa normativo do preceito constitucional, desencadeando imposição da faticidade à normatividade e, consequentemente, ruptura constitucional.

4.6 Da efetivação da justiça criminal

Ponto levantado pelos ministros Teori Zavascki, Edson Fachin e Luís Roberto Barroso, a efetivação da justiça criminal seria, em juízo de ponderação, bem de interesse público justificador da execução penal antecipada, já que nenhum direito ou garantia fundamental é absoluto, nem mesmo a presunção de inocência.

Para enfrentamento desta questão, necessária breve abordagem dos limites dos direitos fundamentais, sendo aqui seguida a teoria externa – segundo a qual há efetiva distinção entre o corpo de direitos fundamentais e o conjunto de restrição a eles impostos, que atuaria posteriormente à norma prima facie (SARLET, 2018, p. 408) –, em contraposição à teoria interna – segundo a qual o direito fundamental sempre teria seu conteúdo determinado, já “nascendo” com seus limites estabelecidos (SARLET, 2018, p. 407).

Estruturalmente, a norma de direito fundamental possui o “âmbito de regulação” e o “âmbito de proteção”. Por âmbito de regulação, professa GOMES CANOTILHO (1992, p. 210), “entende-se a globalidade dos casos jurídicos eventualmente regulados por uma norma jurídica”. Assim, exemplifica RODRIGUES (2018, aula 5, p. 1), “o art. 5º, IV [da CF] protege a “manifestação do pensamento”, o art. 5º, X [da CF] protege a “intimidade”, a “vida privada”, a “honra” e a “imagem das pessoas””.

Tal “âmbito de regulação” pode sofrer limitações pelo próprio texto constitucional, de forma explícita ou implícita, ou por reserva de lei. Sendo explícita, a limitação virá prevista expressamente no texto da Carta; sendo implícita, se vislumbrará em discrepâncias ou contradições entre normas; sendo por reserva de lei, se instituirá por lei esparsa. Logo, por exemplo, forte no art. 5º, IV, da CF, é protegida a manifestação do pensamento (âmbito de regulação) somente pela via do não-anonimato (limitação expressa), a liberdade de expressão artística (âmbito de regulação) não abrange a possibilidade de homicídio em pleno palco (limitação implícita) (RODRIGUES, 2018, aula 5, p. 2).

Realizado este procedimento de autocontenção do direito fundamental, eliminando-se de pronto as hipóteses fáticas que nele não se amoldem, chega-se ao “âmbito de proteção normativo”, pelo qual, voltamos a Gomes Canotilho, entende-se a “delimitação intensional e extensional dos bens, valores e interesses protegidos por uma norma. Este âmbito é, tendencialmente, o resultado proveniente da delimitação dogmática feita pelos órgãos ou sujeitos concretizadores através do confronto de normas do direito vigente”.

Trata-se, portanto, do resultado obtido a partir da adição do âmbito de regulação às garantias que lhe dotem eficácia e a subtração das limitações traçadas pelo próprio corpo de direitos fundamentais (RODRIGUES, 2018, aula 5, p. 4).

No caso da presunção de inocência (garantia), o bem juridicamente tutelado é a liberdade de locomoção (direito). Esta, por óbvio, não é absoluta, comportando limitação, em hermenêutica a contrário sensu do art. 5º, LXI, da CF [11], em caso de flagrante delito ou ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente [12]. Esse, portanto, o âmbito de proteção da liberdade de locomoção.

Atingido o “âmbito de proteção” do direito fundamental, aplicam-se sobre ele, ao seu turno, as restrições ou intervenções estatais na liberdade. Nesse ponto – incisão sobre o âmbito de proteção – afigura-se a viabilidade de restrições “decorrentes da colisão de um direito fundamental com outros direitos fundamentais ou bens jurídico-constitucionais, ainda que não expressamente autorizadas pela Constituição” (SARLET, 2018, p. 412).

Tratando-se da presunção de inocência, considerando o conceito “fechado” de trânsito em julgado, para negar sua eficácia nos moldes textuais hoje postos e harmonizá-los a preceitos de ordem pública, o magistrado tem de necessariamente restringir o “âmbito de proteção” da liberdade de locomoção.

Após a restrição de dito “âmbito de proteção” do direito fundamental, há de se perquirir se se viola o núcleo essencial do direito fundamental e se há admissibilidade em juízo de proporcionalidade.

Em breve esboço, a garantia do núcleo essencial dos direitos fundamentais é a defesa de “parcela do conteúdo de um direito sem a qual ele perde a sua mínima eficácia, deixando, com isso, de ser reconhecível como um direito fundamental”. Se busca, portanto, “impedir restrições que tornem o direito tutelado sem significância para a vida social como um todo” (SARLET, 2018, p. 421/423).

De outra banda, o juízo de proporcionalidade atende a duas funções – proibição do excesso e proibição de proteção insuficiente – e a três critérios: i) “a adequação ou conformidade, no sentido de um controle da viabilidade (isto é, da idoneidade técnica) de que seja em princípio possível alcançar o fim almejado por aquele determinado meio”: trata-se da relação de causalidade; ii) “da necessidade, em outras palavras, a opção pelo meio restritivo menos gravoso para o direito objeto da restrição”. Nesta etapa indaga-se, sucessivamente, se não há outro meio que promova igualmente o fim (passo 1) ao custo de menor intervenção sobre o direito fundamental (passo 2); iii) a conveniência ou “proporcionalidade em sentido estrito, que exige a manutenção de um equilíbrio (proporção e, portanto, de uma análise comparativa) entre os meios utilizado e os fins colimados”: (SARLET, 2018, p. 414/418). Neste último critério, segundo RODRIGUES (2018, aula 6, p. 6), “trata-se de aceitar os resultados dentro de uma relação de custo e benefício: a medida é restritiva, porém é aceitável e/ou conveniente a partir dessa relação”.

No caso da execução criminal provisória, seguindo o raciocínio da corrente favorável, poderia se concluir: i) denota-se ela adequada para fins de efetivação da sanção penal, eliminando os incentivos à interposição de recursos meramente protelatórios e encarcerando o acusado desde o exaurimento do segundo grau de jurisdição; ii) é o único meio, sem alteração de texto – o que demandaria deliberação legislativa –, para alcançar, no almejado patamar, o interesse público da maior efetividade do sistema processual penal – o mero reconhecimento do abuso do direito de recorrer não parece atingir suficientemente o mesmo fim, uma vez que o lapso temporal até o seu reconhecimento pode dar ensejo à prescrição criminal e fomentar a atividade delitiva em razão da forte percepção de impunidade; iii) o nível de conveniência é satisfatório, porquanto atingiria um ponto ótimo entre a presunção de inocência – que se daria nas instâncias ordinárias – e o interesse público da efetivação da justiça; e iv) não atinge o núcleo essencial do direito fundamental, visto que a restrição à liberdade de locomoção não se dá fortuitamente, mas a partir do exaurimento do segundo grau de jurisdição, já tendo o réu sido julgado por um juiz singular e três desembargadores – ou cinco, havendo interposição de embargos infringentes –, número suficiente para verificação de sua mínima eficácia, em consonância com as aspirações magnas do Estado Constitucional.

Afinal, se a hermenêutica constitucional se pauta, entre outros, nos princípios da unidade da Constituição, da harmonização e da máxima efetividade das normas, natural que se tentasse um ponto ótimo na conciliação de bens constitucionais conflitantes.

Segundo esse raciocínio, o marco da formação da culpa após o segundo grau de jurisdição se revela, na ponderação de bens juridicamente tutelados, o mais adequado, pois concretiza por um lado, a ampla defesa e a presunção de inocência, em seu núcleo essencial, que se assume nas instâncias ordinárias, o devido processo legal e o segundo grau de jurisdição a partir da cognição plena e fundamentada do juízo, e, por outro, a celeridade processual por evitar atos manifestamente protelatórios e a efetivação da justiça como esfera realizadora do preceito de ordem pública e de outros direitos fundamentais reflexamente tutelados (segurança, vida, patrimônio, etc, de todos indivíduos da coletividade), evitando a prescrição e, consequentemente, a impunidade de atos lesivos ao corpo social.

No entanto, há um problema essencial nesta forma de se pensar a questão: ela viola a  tradicional lição de que a 'má-fé deve ser provada, não presumida'. Com efeito, este raciocínio assume, necessariamente, a presunção de que os recorrentes à instância extraordinária têm, em quase a totalidade dos casos, interesse meramente protelatório e que, caso alguém, munido de “bom direito”, interponha os recursos Especial ou Extraordinário, o seu caso pontual não tem o condão de reverter a conveniência (relação custo-benefício) da execução penal antecipada.

Neste sentido, por exemplo, foi a manifestação ministro Luís Barroso no HC nº 152.752 (impetrado pelo ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva) [13], ao afirmar que:

Quando se vai verificar o percentual de recursos extraordinários acolhidos em favor dos réus, o número cai para 1,12%. Quando se vai examinar o percentual de absolvições, ele é de irrisórios 0,035% dos casos. Vale dizer: em mais de 25 mil recursos extraordinários, houve tão somente 9 (nove) casos de absolvição. Os outros casos de provimento se referiam à substituição da pena privativa de liberdade por medida alternativa (o que é relevante, pois afeta a liberdade), mudança de regime, progressão de regime, dosimetria e prescrição. Ao tema da prescrição se voltará mais adiante. 3. Veja-se, então, em resumo: aguardar-se o trânsito em julgado do recurso extraordinário produz impacto de 1,12% em favor da defesa, sendo que apenas 0,035% de absolvições. Subordinar todo o sistema de justiça a índices deprimentes de morosidade e ineficiência para produzir este resultado é uma opção que não passa em nenhum teste de razoabilidade ou de racionalidade. Eu entendo e respeito quem tem o entendimento de que bastaria um caso de reforma para justificar a exigência do trânsito em julgado. Mas por essa lógica, deveríamos fechar todos os aeroportos, porque apesar de todos os esforços, há uma margem mínima de acidentes. O mesmo vale para a indústria automobilística, para a construção civil e quase todas as atividades produtivas. Viver envolve riscos. E tornar a vida infinitamente pior não é capaz de eliminá-los.

De nossa parte, os limites da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito são altamente discutíveis. Pelo lado da necessidade, o abuso do direito de recorrer não poderia ser aperfeiçoado para negar seguimento ou provimento a recursos de chicana manifesta, seguidos da ordem de trânsito em julgado e baixa dos autos para início da execução penal, como nos julgados colacionados no item 5.1 (infra) deste trabalho?

Pelo viés da conveniência, é admissível que se proponha o encarceramento de um sujeito potencialmente inocente [14], considerando que, ao contrário do cumprimento de sentença provisório cível, que corre por responsabilidade do exequente e onde se presta caução para reparar graves danos (art. 520, IV, do CPC), a liberdade de locomoção, quando restringida, é absolutamente irreversível?

A resposta a este tópico, ao contrário das tão taxativamente dogmatico-jurídicas nos subitens anteriores, neste se torna, segundo nos parece, um tanto intangível, residindo mais na capacidade de persuasão do que na objetiva técnica jurídica. Por tudo, pendemos para a inconstitucionalidade, observados todos os fundamentos anteriormente expostos e as indagações indutivas acima levantadas, o que não garante que não possamos mudar o entendimento posteriormente, caso nos pareça tecnicamente mais adequado.

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Sobre o autor
Guilherme Santiago Menezes Agertt

Bacharel em direito pela Universidade Federal de Pelotas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AGERTT, Guilherme Santiago Menezes. Da execução criminal provisória após segundo grau de jurisdição e sua (in)constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5700, 8 fev. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/71868. Acesso em: 19 abr. 2024.

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