Capa da publicação Execução criminal provisória após segundo grau de jurisdição é constitucional?
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Da execução criminal provisória após segundo grau de jurisdição e sua (in)constitucionalidade

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5. Possíveis soluções:

5.1 Reconhecimento do abuso do direito de recorrer

Neste momento, faz-se mister a abertura de novo tópico para tratar de tema pouco discutido nos meios jurídicos, em que pese a urgente necessidade de produção científica sobre: o abuso do direito de recorrer no âmbito processual penal.

Antes de adentrarmos o tema propriamente dito, denota-se bastante interessante a transcrição dos registros de BARBAGALO, citado por Teori Zavascki na relatoria do HC nº 126.292/SP:

Interessante lembrar, quanto a isso, os registros de Fernando Brandini Barbagalo sobre o ocorrido na ação penal subjacente ao já mencionado HC 84.078 (Relator(a): Min. EROS GRAU, Tribunal Pleno, DJe de 26/2/2010), que resultou na extinção da punibilidade em decorrência da prescrição da pretensão punitiva, impulsionada pelos sucessivos recursos protelatórios manejados pela defesa. Veja-se: “Movido pela curiosidade, verifiquei no sítio do Superior Tribunal de Justiça a quantas andava a tramitação do recurso especial do Sr. Omar. Em resumo, o recurso especial não foi recebido pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, sendo impetrado agravo para o STJ, quando o recurso especial foi, então, rejeitado monocraticamente (RESP n. 403.551/MG) pela ministra Maria Thereza de Assis. Como previsto, foi interposto agravo regimental, o qual, negado, foi combatido por embargos de declaração, o qual, conhecido, mas improvido. Então, fora interposto novo recurso de embargos de declaração, este rejeitado in limine. Contra essa decisão, agora vieram embargos de divergência que, como os outros recursos anteriores, foi indeferido. Nova decisão e novo recurso. Desta feita, um agravo regimental, o qual teve o mesmo desfecho dos demais recursos: a rejeição. Irresignada, a combativa defesa apresentou mais um recurso de embargos de declaração e contra essa última decisão que também foi de rejeição, foi interposto outro recurso (embargos de declaração). Contudo, antes que fosse julgado este que seria o oitavo recurso da defesa, foi apresentada petição à presidente da terceira Seção. Cuidava-se de pedido da defesa para – surpresa – reconhecimento da prescrição da pretensão punitiva. No dia 24 de fevereiro de 2014, o eminente Ministro Moura Ribeiro, proferiu decisão, cujo dispositivo foi o seguinte: ‘Ante o exposto, declaro de ofício a extinção da punibilidade do condenado, em virtude da prescrição da pretensão punitiva da sanção a ele imposta, e julgo prejudicado os embargos de declaração de fls. 2090/2105 e o agravo regimental de fls. 2205/2213’” (Presunção de inocência e recursos criminais excepcionais, 2015).

O caso concreto acima narrado, para que não se perca na cronologia, contou com a seguinte sequência recursal: Recurso Especial > Agravo em Recurso Especial > Agravo Regimental > Embargos de Declaração > Embargos de Declaração > Embargos de Divergência > Agravo Regimental > Embargos de Declaração. Foram interpostos, ao todo, 8 recursos, um dentro do outro – ou em cima do outro, se a metáfora mais familiar ao leitor for a de empilhamento recursal. Nesse interregno, a pretensão punitiva foi alvejada pela prescrição. Com esse exemplo do cotidiano, prossigamos.

O abuso do direito, consoante firme lição do artigo 187 do Código Civil, é ato ilícito em que o titular de um direito, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. Lado outro, o processo, ensina-nos NEVES (2016, p. 100), em resumo de todas as clássicas linhas evolutivas, é “relação jurídica em contraditório”.

Nele, as partes ostentam pretensões diversas, utilizam-se de determinadas faculdades e encontram-se vinculadas por deveres, dentre os quais, ao menos no âmbito civil, por determinação expressa do CPC, os imperativos de cooperação, lealdade e boa-fé objetiva, o que enseja o debate, a uma, se as regras do CPC se aplicam ao CPP subsidiariamente, ou se os códigos são, como diz GAJARDONI, “compartimentos estanques, ilhas legislativas capazes de, sem recurso a influência de outros diplomas, darem respostas a todos os problemas do processo” [15], e, a duas, se o instituto civil consagrado do abuso de direito se aplica à relação processual penal.

Em matéria penal, sobretudo tratando-se de determinação do trânsito em julgado, pelo que nos foi conseguido apurar, há precedentes de reconhecimento do abuso do direito de recorrer, como nos embargos de declaração nos embargos de declaração nos embargos de declaração nos embargos de declaração na medida cautelar nº 11.877/SP, em que o ministro Rogério Schietti assim manifestou-se:

Primeiramente, não obstante a clareza das decisões anteriormente proferidas por este órgão colegiado, diante da obstinação do ora embargante, reputo necessário trazer à memória da defesa o evento esgotamento da prestação jurisdicional operado nesta colenda Corte Superior, para a análise dos pedidos feitos dessa forma tão reiterada e, adianto, abusiva. A solução destes embargos é simples, mas chamo atenção para o abuso que o ora embargante faz do seu, reconheço, direito de recorrer. […] Certifique a Coordenadoria da Sexta Turma o trânsito em julgado, caso não haja recurso extraordinário interposto para o Supremo Tribunal Federal. (STJ - EDcl nos EDcl nos EDcl nos EDcl na MC: 11877 SP 2006/0171028-8, Relator: Ministro ROGERIO SCHIETTI CRUZ, Data de Julgamento: 03/12/2013, T6 - SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJe 13/12/2013) [16] (grifo nosso)

Há, ainda, pelo menos outros dois precedentes no STJ e um do STF do reconhecimento do abuso do direito de recorrer em matéria criminal, julgados os quais não se conseguiu acesso, assim noticiados pela Revista Conjur:

RE nº 839.163/DF – Abuso do direito de recorrer. Risco iminente da prescrição. Possibilidade de o relator decretar o trânsito em julgado. Determinação de baixa imediata dos autos para execução da pena. Por iniciativa do ministro Dias Toffoli, a Primeira Tuma do STF afetou o exame desse caso ao Plenário. No julgamento das questões de ordem, o Pleno concluiu, à unanimidade, pela legitimidade do Relator decidir monocraticamente sobre a determinação de baixa dos autos independentemente da publicação de seus julgados seja quando haja o risco iminente de prescrição, seja no intuito de repelir a utilização de sucessivos recursos, com nítido abuso do direito de recorrer, cujo escopo seja o de obstar o trânsito em julgado de condenação e, assim, postergar a execução dos seus termos. [17] (grifo nosso)

No Recurso Especial 731.024, em 2010, o ministro Gilson Dipp, depois de julgar o recurso, o Agravo Regimental e cinco Embargos de Declaração, aplicou multa por protelação. Ele também determinou a imediata devolução dos autos à origem para execução do acórdão do Recurso Especial. Neste caso, houve ainda novo embargo de declaração, de outra parte, que foi igualmente rejeitado, já em 2013, pela ministra Regina Helena Costa, que sucedeu o relator.

[…] O mesmo réu já havia tido o cumprimento provisório da pena convertido em definitivo pelo STJ nos Embargos de Declaração nos Embargos de Declaração no Agravo Regimental no Agravo de Instrumento 1.001.473. Naquele julgamento, os ministros da 6ª Turma entenderam que a intenção da defesa era meramente protelatória, devendo ser executada a condenação independentemente da publicação do acórdão ou da pendência de outros recursos. [18] (grifo nosso)

Independentemente do entendimento jurídico que se venha a tomar, certo é que na sistemática processual civil, os atos meramente protelatórios são veementemente repudiados, através da condenação das partes em litigância de má-fé e da caracterização de atos atentatórios à dignidade da justiça, com as pertinentes sanções processuais e pecuniárias.

A nosso ver, sendo aplicáveis as disposições do Código de Processo Civil ao Código de Processo Penal, os recursos manifestamente protelatórios devem ser igualmente rejeitados, inclusive com a cominação das pertinentes sanções, determinação de ofício do trânsito em julgado e imediata baixa dos autos para início da execução penal.

Se, por um lado, o direito fundamental da liberdade de locomoção não comporta, sob as perspectivas da necessidade e da conveniência, uma restrição tão severa quanto a mitigação da presunção de inocência, por outro, a devida inibição ao abuso do direito de interpor recursos – fato processual ilícito, reconheça-se – parece ser meio adequado a sanear a praxe processual penal, libertando-a das abjeções processuais diárias a que o operador do direito e, sobretudo, a sociedade estão expostos.

5.2 Reestruturação dos recursos extraordinários

Sendo garantia constitucional individual que guarnece a liberdade de locomoção, a presunção de não culpabilidade até o trânsito em julgado denota-se cláusula pétrea, insuscetível de extirpação ou esvaziamento de seu sentido, além do núcleo essencial, por reforma constitucional. Dessa feita, seria necessário, para modificar o preceito constitucional, nova constituinte originária.

A proposição normativa, no entanto, sendo de interesse público, pode fazer-se convergir aos atuais anseios da sociedade, que não mais tolera a criminalidade crônica vivenciada, através da reestruturação legislativa dos recursos extraordinários para sucedâneos recursais externos, solução muitíssimo bem apontada pelo insuperável professor LIMA (2017, p. 50).

Com isso, o trânsito em julgado, hoje condicionado ao exaurimento das instâncias superiores, seria realocado para o esgotamento da segunda instância, em consonância com o princípio do segundo grau de jurisdição e com o raciocínio de formação da culpabilidade nas instâncias ordinárias, onde o juízo conhece da integralidade da matéria (questões de direito e de fato) e a julga em seu mérito.

Com essa medida, os tribunais superiores da justiça comum, hoje tão abarrotados de recursos os mais diversos, em grande parte protelatórios, trabalhariam em regime de juízo rescisório, o que extirparia os recursos meramente protelatórios, uma vez que as ações autônomas de impugnação não possuem efeito suspensivo a obstar a execução penal.


6. Conclusão

É consenso, até mesmo entre alguns defensores da inconstitucionalidade da execução criminal provisória, que, aos olhos da sociedade, a ‘Constituição Cidadã’ tornou-se, em sua redação do inciso LVII, anciã.

Advinda de período pós regime de exceção, página histórica em que detenções arbitrárias eram comuns, seguidas, não raro, de interrogatórios, torturas, assassinatos e ocultações de cadáver, a Constituição de 1988 tinha claro objetivo de evitar ao máximo a eventualidade de despotismo em desfavor do cidadão, sobretudo em se tratando da liberdade de locomoção. Para tanto, assegurou diversas garantias de liberdade, tais como a inviolabilidade do domicílio, a ilegalidade de prisão salvo em flagrante delito ou por ordem motivada da autoridade judiciária e a presunção de inocência.

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A origem de seu texto, destarte, nos remete a um marco paradigmático da luta pela democracia. Com o avançar dos tempos, no entanto, as circunstâncias fáticas mudaram substancialmente, de modo que a realidade histórica de 1988 não é mais a mesma em 2018.

Hoje, enquanto nação, lidamos com a expansão incontrolável do crime organizado, o assoberbamento de processos do Poder Judiciário, a falência total do sistema penitenciário, entregue a um estado de coisas inconstitucional, e o combate feroz à corrupção governamental disseminada.

Citando GOMES (2016): “ninguém mais suporta a criminalidade e sua impunidade, sobretudo da delinquência econômica cleptocrata” [19]. Ou como diria BARROSO (2018): “A minha análise é a de que celebrou-se, e de longa data com renovação constante, um pacto oligárquico de saque ao Estado brasileiro, celebrado por parte da classe política, parte da classe empresarial e parte da burocracia estatal” [20].

Nestas condições, é natural que a sociedade cobre medidas de endurecimento do aparato sancionador, tendentes a maior efetividade na distribuição da justiça, para que o crime, naquela clássica lição, não compense. A pretensão justa da sociedade, no entanto, não pode dar-se de forma qualquer: deve respeitar os preceitos basilares da ordem constitucional e a técnica jurídica.

Pois as liberdades individuais consagradas em nossa Carta, dentre as quais a presunção de inocência, são marcos civilizatórios inabaláveis, cujo espírito de virtuosidade é a sustentação primária do pacto social que solapou as relações de poder inidôneas da barbárie. Atentar contra a presunção de não culpabilidade é, portanto, atentar contra a sublimidade do Estado Democrático de Direito.

O que não significa, no entanto, que o atual sistema recursal penal esteja adequado, e que não favoreça, pelo contrário, atitudes de extremada ignobilidade e repulsa social. São, portanto, assuntos diversos a serem tratados por vias técnicas escorreitas, sem que fins justifiquem meios e sem que institutos arraigados no valoroso espírito democrático sejam flexionados por mero decisionismo.

Neste, como em qualquer outro tema jurídico, a racionalidade técnica deve ser prestigiada, sob pena de imperar verdadeiro babel jurisdicional, com cada magistrado decidindo à moda que lhe convenha, por mais imperita que seja.

Ao final deste trabalho, concluímos o que segue:

a) a presunção de inocência, assim como outros direitos e garantias individuais conexos, é garantia fundamental, em consonância com os tratados internacionais firmados pelo Brasil e com a sedimentação axiológica de séculos;

b) a execução penal provisória é inconstitucional, uma vez que:

b.I) por enunciado constitucional categórico: ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, de modo que o trânsito em julgado é o único marco juridicamente válido de formação da culpa;

b.II) o trânsito em julgado somente se dá com o esgotamento da via recursal apta a controverter a culpabilidade do agente, através da impugnação de sentenças e acórdãos.

A contrario sensu, caso o recurso extraordinário não controverta a culpabilidade do agente, limitando-se a impugnar questões outras (v.g., pedido de restituição de coisas, pedido de fixação de regime carcerário mais brando, pedido de aplicação, na dosimetria, de causas de redução de pena, etc.), viável a formação da coisa julgada parcial, em decorrência da preclusão temporal da matéria não impugnada.

b.III) o fato de os Recursos Especial e Extraordinário não possuírem efeito suspensivo próprio em nada afeta a presunção de inocência do agente, porquanto esta se presume até o trânsito em julgado, por afirmação constitucional, superior à mera lógica processual interna;

b.IV) o fato de o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça não conheceram da matéria fático-probatória não tem o condão de antecipar a formação da culpa, visto que o direito de defesa não se limita à controvérsia fática existente nos autos, senão abrange tanto questões de fato quanto questões de direito, ainda que limitadas à correta aplicação da Constituição e da lei federal;

b.V) respondendo ao questionamento lançado no capítulo de introdução, como o sistema constitucional penal brasileiro adota a culpabilidade normativa, em despeito da culpabilidade fática, a presunção de inocência é um postulado estático, que permanece hígido até o trânsito em julgado da sentença condenatória, mantendo toda sua energização independentemente da instância recursal e dos juízos condenatórios anteriores;

b.VI) sendo o sistema de encarceramento do indivíduo um todo lógico que guarda obrigatório respeito aos pressupostos legitimantes na forma da lei (título IX do CPP, sobretudo o artigo 283) e da Constituição (sobretudo o art. 5º, LXI), a prisão, antes do trânsito em julgado, apenas pode ser de natureza em flagrante ou cautelar (preventiva e temporária);

b.VII) é inadmissível a hipótese alegada de mutação constitucional, porquanto em clara contradição ao programa normativo da Carta;

c) caso se pretenda reformular a sistemática processual penal em consonância com os legítimos anseios da sociedade, deve-se reformar, por deliberação legislativa, os Recursos Especial e Extraordinário, tornando-os sucedâneos recursais externos, similares à revisão criminal.

Dessa forma, por esgotamento das vias recursais, a condenação transitaria em julgado após o exaurimento do segundo grau de jurisdição, que seria o locus de formação da culpa, enquanto os tribunais superiores trabalhariam em caráter rescisório, e não mais recursal;

d) A hipótese de constitucionalidade da execução penal antecipada, contudo, não está absolutamente descartada nem constitui aberração jurídica, já que os direitos fundamentais são suscetíveis à limitação de seu “âmbito de proteção”, em prestígio a outros direitos fundamentais ou interesse público. O cerne da discussão, neste ponto, encontra-se nos “limites aos limites” dos direitos fundamentais, sobretudo no controle da proporcionalidade, a partir dos critérios da necessidade e da conveniência;

e) o abuso ao direito de recorrer, em matéria criminal, ainda é pouco explorado pela doutrina e até pelos próprios tribunais superiores, em que pese o pandemônio recursal criminal brasileiro. Em nossa visão, é uma medida que merece ser aprimorada, tendo relevante função na resolução desta problemática, posto que buscará a inibição do ilícito processual protelatório e ocasionará, em consequência, maior efetividade do poder punitivo, vindo ao encontro do interesse público.

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Sobre o autor
Guilherme Santiago Menezes Agertt

Bacharel em direito pela Universidade Federal de Pelotas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

AGERTT, Guilherme Santiago Menezes. Da execução criminal provisória após segundo grau de jurisdição e sua (in)constitucionalidade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5700, 8 fev. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/71868. Acesso em: 26 abr. 2024.

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