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O controle dos mandatos populares pelo Legislativo no Direito brasileiro.

O instituto do "recall" e dos referendos revogatórios

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26/08/2005 às 00:00
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Na atual discussão da necessidade de uma reforma política e eleitoral no Brasil, o controle do exercício dos mandatos parlamentares e dos cargos executivos é um aspecto não tão focado.

Antes de mais nada, esclareçamos que já existem formas de controle político que podem abreviar os mandatos de ocupantes do Poder Executivo, em qualquer esfera (União, Estados, Municípios) no Brasil. A mais antiga e conhecida é o "impeachment" (impedimento), dendatário público pelo Poder Legislativo, aplicável, pela Constituição de 1988 em relação ao Presidente da República e o Vice-Presidente (Art. 85); contra os Ministros de Estado (Art. 52, I); os Ministros do Supremo Tribunal Federal (Art. 52, II), e contra o Procurador-Geral da República e o Advogado Geral da União (Art. 52, II), sendo também extensivamente aplicável às autoridades equivalentes em plano Estadual ou Municipal, sendo expressamente previsto nos textos das Constituições Estaduais (todas, sem exceção) e Leis Orgânicas Municipais. É conhecido pela Constituição brasileira desde 1824; na Constituição Imperial, o instituto somente era aplicável aos Ministros de Estado e não para outras autoridades, como veio a acontecer posteriormente, nas Constituições republicanas a partir de 1891.

De origem inglesa, o instituto do impeachment foi mais largamente utilizado durante o Século XVII, não sendo mais registrado sua ocorrência após 1806; foi recepcionado pelas Constituições dos Estados Unidos da América (Art. 2º, section 4), e de alguns de seus Estados Federados, como a Virgínia e o Massachussets.

PAULO BROSSARD, no seu referencial estudo sobre o impeachment [1], destaca o fato de que a Lei Complementar n. 15, de 1827, regulou-o em termos penais, e foi utilizada apenas em 06 ocasiões, sem que se tenha chegado à condenação. Todas as Constituições posteriores, do período republicano, previram-no, para que somente tenha sido efetivamente aplicada no ano de 1992, quando da destituição do Presidente Fernando Collor de Mello. Para a maioria, sua natureza é política, enquanto que outros entendem-no como de natureza penal, ou mesmo mista. Tem uma Lei Ordinária que o regula (Lei n. 1.079/50), sendo que as deliberações visando ou não o impedimento desenvolvem-se nos plenários das Casas Legislativas, sempre se garantindo a ampla defesa. É aplicado em relação às condutas anticonstitucionais dos mandatários ou de comportamentos políticos indesejáveis. Além da punição do afastamento imediato, o sancionado fica inabilitado por 05 anos para o exercício de qualquer função pública.

De uso parcimonioso no Brasil e nos Estados Unidos (raros os exemplos de sua utilização, mas o exemplo mais conhecido em tempos recentes foi em relação aos ex-presidentes Richard Nixon, em razão do escândalo no caso Watergate, terminando por renunciar antes da conclusão do processo, e do ex-presidente Bill Clinton, após o episódio Monica Lewinski, contra o qual não se conseguiu o quorum qualificado para destituí-lo), o impeachment ainda resiste como um instrumento válido para destituir-se o chefe do Executivo em um sistema presidencialista.

A perda antecipada do mandato eletivo no direito pátrio é em caráter excepcional, desde que por determinação judicial; pela infringência de uma das vedações constitucionais, ou legais, pelas incompatibilidades negociais, políticas (como o exercício simultâneo de algumas funções públicas), ou em decorrência de função (CF, Art. 54), extensivas aos Deputados Estaduais, distritais e aos Vereadores. Algumas Constituições Estaduais e até mesmo as Leis Orgânicas Municipais, ampliam as incompatibilidades enumeradas no texto constitucional para abarcar outras hipóteses, geralmente em relação ao impedimento funcional.

Note-se que as incompatibilidades negociais hão de se interpretar de forma restritiva, apenas à pessoa dos parlamentares, não se aplicando aos seus parentes, familiares de qualquer grau ou amigos. Tenta-se evitar que o parlamentar utilize o mandato para proveito próprio. Se constatada a dita incompatibilidade, também o plenário, por maioria absoluta é quem decide.

Entenda-se que tais vedações hão de se reputar como fundamentais para que se mantenha a independência do legislativo. No apropriado comento de MANOEL GONÇALVES FERREIRA FILHO, "sua proteção só se pode assegurar impedindo-se que exerçam certas outras funções ou de praticar determinados atos que alienariam, restringiriam ou ameaçariam sua liberdade de ação".[2]

São ainda sancionadas com a perda de mandato outras condutas, como exceder as faltas possíveis às reuniões do Plenário [3] (CF, Art. 55, III); neste caso, do parlamentar que exceder o tempo de licença concedida, ou faltar mais da terça parte das Sessões, importando em ato declaratório da Mesa para, de ofício, extinguir o mandato, deverá certamente ser observado o direito, ou melhor, o requisito da ampla defesa, como bem decidiu o STF (MS n. 20.992-DF – Relator do Ac. Min. Carlos Velloso, j. em12/12/1990, RTJ n; 146/77-105). A punição ao parlamentar faltoso se escuda em óbvia questão de interesse público.

A Constituição Federal estabelece outra forma de controle social, que pode levar à perda do mandato popular, ainda desta vez o parlamentar. O artigo 55, a CF legitima aos partidos políticos com representação na Casa, ou a qualquer parlamentar, a possibilidade de, por quebra do decoro parlamentar, ou o desidioso (vide parágrafo anterior), iniciar representação que poderá levar à perda do mandato, por decisão de uma maioria qualificada (absoluta) dos pares (CF, Art. 55, §2º), configura-se em sanção político-administrativa.

Em relação aos Vereadores, embora o Decreto-Lei n. 201/67 atribua a legitimidade para iniciar a representação ao simples cidadão (Art. 2º), prevalecerá sempre, onde forem aplicáveis, as Leis Orgânicas Municipais, e os Regimentos das Câmaras Municipais, sendo, em geral, os mesmos legitimados pela Constituição Federal, e pelas Constituições Estaduais, por simetria.

O texto constitucional prevê que o abuso das prerrogativas asseguradas a membros do Congresso Nacional ou a percepção de vantagens indevidas, por disposição expressa, são procedimentos incompatíveis com o decoro parlamentar (Art. 55, §1º); tais condutas também são vedadas aos vereadores (CF, Art. 29, IX); outrossim, o chamado "decoro parlamentar" não restringe a apenas a essas condutas, mas outros casos de quebra do decoro são tipificados nos Regimentos Internos, desde que com parâmetro nas próprias regras constitucionais.

O Código da Câmara Baixa distingue os procedimentos incompatíveis com o decoro, puníveis com a perda do mandato (Art. 4º, Resolução n. 25), dos atos que atentam contra o decoro parlamentar (Art. 5º da mesma Resolução n. 25), perfazendo nove condutas, que somente serão apreciadas mediante prova.

O conceito de decoro corresponde a um padrão de desempenho moral, um comportamento próprio que o parlamentar deve guardar enquanto estiver investido nessa função; no dizer de JOSÉ AFONSO DA SILVA, "porque o parlamento é uma instituição de representação popular que reclama conduta irrepreensível de seus membros".[4]

Há sem dúvida, outra fonte do direito aplicável nos casos da perda de mandato parlamentar no Brasil, além da Constituição Federal, das Cartas Estaduais ou mesmo das Leis Orgânicas. São os Regimentos Internos das Casas Legislativas, que estabelecem melhor as hipóteses do que se constitui a quebra do decoro, como vimos, e o devido procedimento para sua apuração (desde a Constituição de 46, Art. 48, §2º), fazendo com que tal conceituação fique menos ao sabor das conveniências políticas, e os chamados Códigos de Ética, de adoção recente pelo Senado Federal (1993) e na Câmara dos Deputados (2001). Nas Assembléias Legislativas, o pioneirismo cabe ao Estado de São Paulo (1994) registrando-se que o Rio de Janeiro somente veio a conhecer seu próprio Código de Ética e Decoro Parlamentar quase dez anos depois.

Outrossim, a perda do mandato pode-se dar ainda pela condenação criminal em sentença transitada em julgado (CF, Art. 55, VI; Art. 15, III) ou ainda em relação ao Deputado ou Senador que perder ou tiver suspensos os direitos políticos (inciso IV do mesmo artigo), ou quando for decretado pela Justiça Eleitoral (inciso V).

Observe-se que o STF e os doutrinadores lecionam que a perda do mandato, em razão de condenação criminal não se opera automaticamente: depende de um juízo político do plenário de cada Casa parlamentar[5]. A Constituição estabelece no §2º, do inciso VI do citado Art. 55, que a perda "será decidida pela Câmara dos Deputados ou pelo Senado Federal, por voto secreto e maioria absoluta". Já a hipótese da perda dos direitos políticos comportará apenas uma decisão declaratória da Mesa (CF, Art. 55, IV).

Tal conduta é extensiva aos Deputados Estaduais e Distritais, mas não ocorrerá com os vereadores, auto-aplicável o Art. 15, III da CF [6], que perderão os mandatos automaticamente, sendo atribuído ao Presidente da Câmara competência para declarar a extinção do mandato (Decreto-Lei n. 201/67, Art. 8º, I), pela condenação transitada em julgado nos crimes comuns ou eleitorais.

O Artigo 15 da Carta Maior enumera as causas da perda ou suspensão dos direitos políticos, que podem ser o cancelamento da naturalização por sentença transitada em julgado; a incapacidade civil absoluta (Código Civil, Art. 3º); a condenação criminal com trânsito em julgado, como vimos; a recusa em cumprir obrigação a todos imposta ou a prestação alternativa, conforme o artigo 5º, VIII, da Carta Maior ou a improbidade administrativa, nos termos do artigo 37, §4º, também da CF. Entende-se que a primeira hipótese é de perda, sendo todas as outras de suspensão, pois os casos importam em situação temporária, e não definitiva.

Também a Justiça Eleitoral pode decretar a abreviação dos mandatos parlamentares, mesmo depois da diplomação dos eleitos ou da posse efetiva. Os institutos de Direito Eleitoral, ligados ao tema (i.e., que envolvem cassação de candidatos diplomados ou posteriormente empossados), são relacionados ao cometimento de faltas graves durante o processo eleitoral, como o abuso do poder econômico, a inelegibilidade constitucional, a fraude, o cometimento de condutas vedadas aos administradores públicos, na qualidade de agente ou beneficiário, ou a captação de votos ocorrida durante o processo eleitoral. São instrumentos legais para apuração dessas infrações, a Ação constitucional de Impugnação de Mandato Eletivo (CF, Art. 14, §§ 6º e 7º) [7], o Recurso contra a expedição de Diploma (art. 262 do Código Eleitoral), as representações estabelecidas pelo artigo 96 e 73 da Lei n. 9.504/97, além da representação estabelecida pelo Artigo 41-A dessa última Lei, introduzida por Lei de iniciativa popular, a Lei n. 9.840, de 1999 [8].

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Os institutos introduzidos na lei que rege as eleições, a Lei n. 9.504/97 (Artigos 41-A e 73) produzem efeito imediato, isto é, destituem os sancionados imediatamente após a decisão, mesmo em primeiro grau, não se conferindo aos recursos cabíveis efeito suspensivo, o que tem gerado críticas, tendo em vista a subjetividade inerente à concessão de liminares em sede de medida cautelar para emprestar o almejado efeito suspensivo aos recursos eleitorais, em face aos outros institutos que reclamam o trânsito em julgado para a efetiva cassação do diplomado, o que é moroso, no mínimo levando a metade do mandato de quatro anos, na prática.

Além dessas hipóteses, registre-se que o Brasil já admitiu a perda do mandato pela infidelidade partidária, introduzida pela Constituição de 1967/69[9] (Art. 35, §5º), até o advento da Emenda Constitucional n. 25, de 15 de maio de 1985.

Os processos que levam à perda de mandato, como já reiteramos, de caráter político-administrativo, somente poderão sofrer o reparo ou a apreciação pelo Poder Judiciário, pelo aspecto da correção procedimental, verificando-se a correta adoção do princípio constitucional da ampla defesa e do contraditório, não se imiscuindo nos motivos ou a gradação correta na aplicação da sanção pelas Casas Legislativas.

Detenhamo-nos também para a análise dos efeitos para os que perdem o mandato antecipadamente. Se já vimos os efeitos atribuídos no caso do impeachment, cumpre-nos registrar que o parlamentar que perder o mandato com base no Artigo 55 da CF, em seus dois incisos, também se tornará inelegível. A Lei Complementar n. 64, de 1990 criou a previsão infraconstitucional de inelegibilidade para os parlamentares afastados, em qualquer grau, no seu Artigo 1º, I, alínea "b.

Afinal, há o caso específico dos vereadores, que possuem outro regramento que também ampliou as hipóteses constitucionais para a possibilidade da perda antecipada do mandato. Esse regramento é o Decreto-Lei n. 201/67, que estabelece o rito e as tipificações pelos quais a Câmara Municipal pode expelir um de seus membros por cometer alguma infração político-administrativa. Na verdade, a ocorrência de qualquer uma das incompatibilidades previstas em lei, ou uma falta de caráter ético. Também requer o citado Decreto a maioria qualificada de 2/3 dos membros da Casa Legislativa para afastar um de seus pares.

Registre-se que, após o advento da Constituição de 1988, com o Município elevado à condição de ente federativo, sempre prevalecerá dispositivo de Lei Municipal, como da Lei Orgânica Municipal ou do Regimento da Câmara, por exemplo, sobre o próprio Decreto, utilizado de forma subsidiária, geralmente no rito estabelecido no seu Artigo 5º.

Em todos esses casos, o controle e o processo de investigação e decisão passa pelo seio do parlamento, e não pela população. Várias questões, todas elas de natureza ética ou política, sobrevieram com o passar dos anos e pela análise dos casos concretos na utilização desses institutos, como, por exemplo: o que fazer diante de um parlamento dominado por uma clara maioria governamental, diante de um prefeito ou presidente que seja odiado pela população, ou mesmo diante de comprovada improbidade? Essa certamente é a questão que nos aflige.

Ocorre que o controle dos mandatos do Poder Executivo e do Legislativo pelos próprios Corpos Parlamentares, como no Brasil e na maior parte do mundo, nem sempre atingem sua finalidade, que é de manter a estabilidade democrática [10]. No sistema presidencialista, com o Poder Executivo forte, um Governo fraco por dois ou três anos, sem legitimidade política, é sinônimo de crise certa. Indiscutível é a questão posta da crise de legitimidade e da democracia representativa, frente aos desafios e demandas da sociedade moderna.

O sistema partidário tem sofrido mudanças constantes no Brasil e no mundo, sendo corrente a queixa que os partidos muitas vezes não transmitem a voz das aspirações populares. Além das demandas coletivas, há as demandas que envolvem a ética, os princípios de ordem individual e religiosa, como na questão do aborto, irrespondível pelo modelo tradicional da representação partidária, ficando ao alvitre da opinião de cada legislador.

A ficção conceitual da democracia representativa, somada a outros conceitos legais ou constitucionais (como no caso português), no qual os deputados representam a nação, concepções estas que esbarram em outras diversas dificuldades, como ao se conflituar os interesses do representante de uma cidade ou região face aos desafios de ordem ou de interesses genuinamente nacionais, ou então o representante a partidos que tenham menos rigidez sobre as posições individuais ou não (como nos partidos comunistas que adotam e adotavam o princípio do centralismo democrático)[11]. Os regimes democráticos têm procurado aperfeiçoar os instrumentos de participação, com elementos de democracia direta ou semidireta, apresentando resultados variados, para que se permita uma melhor sintonia entre representantes e representados, politicamente falando.

No comento de RENATO VENTURA RIBEIRO :

"(..) A democracia representativa não tardou a apresentar algumas falhas. Uma delas, a desvirtuação do conceito de mandato, tal como praticado no direito privado desde o direito romano (sobre as regras basilares do contrato de mandato nas suas origens, muitas delas aplicáveis hodiernamente, cf. Arangio-Ruiz, Il mandato in Diritto Romano, Napoli, Jovene, 1949). Enquanto no contrato de mandato do direito privado o mandante pode, a qualquer tempo, destituir o mandatário e este último tem como obrigações, entre outras, a execução fiel das instruções do mandante e a prestação de contas, no direito público possibilita-se uma enorme dissociação entre representante e representado, permitindo a diversos detentores de mandato eletivo atuar impunemente contra vontade de seus eleitores e em sentido diverso do defendido e prometido em campanha eleitoral.

Em razão deste e de outros problemas da democracia representativa e do atual grau de desenvolvimento tecnológico, atualmente já é possível e deve ser feito um retorno à democracia direta, com consulta direta à população em relação às decisões mais importantes, até como forma de legitimá-las (..)" [12]

O recall, referendo revogatório e o abberufungsrechet

Em alguns países do mundo, essa necessidade foi respondida com novos institutos que utilizam, além dos meios já expostos, o controle popular sobre os mandatos, como o do recall, uma das modalidades da chamada "democracia direta" (ou mesmo semidireta, como classifica Dalmo de Abreu Dallari).

O recall é o instituto de direito político, de caráter constitucional ou não, possibilitando que parte do corpo eleitoral de um ente político (País ou a União Federal, Estados, Províncias, Distritos ou Municípios) convoque uma consulta popular para revogar o mandato popular antes conferido. No comento de PAULO BONAVIDES, o recall "é a forma de revogação individual. Capacita o eleitorado a destituir funcionários, cujo comportamento, por qualquer motivo, não lhe esteja agradando".[13] Outra conceituação colacionada, é a de que, o recall consiste em "forma de poder político exercido pelo povo para revogar a eleição de um Deputado ou Senador estadual, para destituir um funcionário eleito ou ainda para reformar uma decisão judicial sobre a constitucionalidade de uma lei"[14].

Seus defensores elencam razões diversas como o controle mais efetivo do eleitorado sobre seus representantes, a melhor educação política da população reduzindo a alienação, com o conseqüente aumento da participação popular no Governo.

Suas origens são controversas. Para alguns, tem correspondência com as votações gregas do ostracismo (deposição com exílio), mas outros pesquisadores atribuem-no aos suíços, como Haynes [15]. Como veremos, além da sua expressão positiva na América do Norte, ainda no Século XVII, enxergam a inspiração marxista, pelo fato do próprio Karl Marx citá-la, ao lembrar que a revogação dos mandatos dos Conselheiros Municipais era possível a qualquer momento, na Comuna de Paris. [16]

Mais comum em legislações que abrigam o voto distrital, para escolha do legislativo, sendo também utilizado quanto aos cargos do Poder Executivo, o "recall" (re-chamada) foi introduzida na legislação californiana no começo do Século XX (1911).

Recentemente testada no início do Século XXI, no processo que levou o astro de Hollywood Arnold Schwarzenegger ao Governo do Estado da Califórnia, em 2003, o instituto do recall, com a redação atual dada pela aprovação da Proposição n. 09, de novembro de 1974, é estabelecido pela Constituição Estadual (Art. II, Sections 13-20) e no Código Eleitoral californianos, que prevêem o início do processo através de representação firmada por um mínimo de 65 eleitores, seguindo-se de petição apoiada por 12% dos eleitores que tenham votado na última eleição, distribuído em pelo menos 1% dos eleitores em cada condado, colhidas num limite de 160 dias após a entrega da representação; no recall para os legisladores estaduais o número aumenta para 20% do corpo eleitoral[17]; de forma peculiar, ao mesmo tempo em que se decide a destituição do governante ou parlamentar, os eleitores escolhem seus eventuais substitutos, de forma simultânea, desde que ao final da primeira metade do mandato.

Esse sistema é criticado por diversos estudiosos, sobretudo por sua inaplicabilidade em regimes não tão estáveis, como nos países de terceiro mundo. Destaco a reflexão do jornalista HELIO SCHWARTSMAN, acerca do recall, durante os eventos de 2003 na Califórnia:

"(..) No fundo, o princípio do "recall" não é muito diferente do do "impeachment", que está consagrado na esmagadora maioria das constituições presidencialistas. Nesse sentido, o "recall" seria até mais democrático do que o "impeachment" pois é decidido diretamente pelos eleitores e não através de seus representantes."

Mas o mesmo colunista adverte, de forma crítica:

"(..) existe uma questão séria que pretendo agora abordar: o instrumento do "recall" é democrático? Em princípio, parece difícil discordar. Se "todo poder emana do povo e em seu nome é exercido", como dizia nossa velha Constituição, parece bastante justo que o povo possa retirar do poder os que nele colocou.

Como filósofo, aprazem-me discussões em torno de princípios, mas, como jornalista, sensível a manobras políticas, não posso deixar de reparar que há algo de errado com o mecanismo de "recall" californiano. Como diz o ditado, "o diabo mora nos detalhes". É exatamente pelos detalhes que se esvai boa parte do conteúdo democrático do "recall", do qual uma descrição possível é: Milionários republicanos inconformados com mais uma derrota para os democratas na Califórnia lançam uma maciça campanha paga contra o governador Davis nos meios de comunicação e contratam um exército de recrutadores para colher --prometendo sabe-se lá o quê-- as assinaturas convocando o referendo. Este "recall" lembraria um pouco o que, no Brasil, já foi chamado de "terceiro turno". Lembra também a campanha da classe média venezuelana contra o presidente Hugo Chávez.

Com efeito, mesmo um instrumento em princípio democrático como o é o do "recall" pode ter utilizações menos democráticas. Em casos como esse, a regulamentação costuma fazer a diferença entre o possível e o impossível, o justo e o injusto. Um "impeachment" que exija os votos de 6/7 do Parlamento para depor o presidente é um "impeachment" quase impossível; de modo análogo, um processo de "recall" que requeira assinaturas do equivalente a 12% dos eleitores para ser convocado pode ser considerado fácil demais, tornando-se no limite antidemocrático. (Agrava o problema o fato de serem americanos a contar e supostamente conferir as assinaturas. Eles já deram mostras de que não são muito bons para organizar processos eleitorais)." [18]

Ainda na Califórnia, o recall é aplicado aos cargos populares como o de prefeito, xerife, e mesmo o de juízes; ao contrário do que se propalara, já foram revogados os mandatos de 02 Senadores estaduais, em 1913 e 1914, além de dois deputados estaduais, em 1995, antes da revogação do Governador Democrata Gray Davis, em 2003 [19].

Aliás, os Estados Unidos foram pioneiros nesse tipo de legislação, desde as Leis da Corte Geral da Massachussets Bay Colony, em 1631 e na Carta de Massachussets em 1691. Embora debatida a idéia nos primórdios da nação americana, inicialmente só os Estados de New York e da Virginia previram o recall para seus Senadores Federais, pelas Assembléias Estaduais.[20] O instituto reapareceu com vigor no Século XIX, sendo a primeira destituição de Governador verificada no Oregon, em 1821 [21]. Um dos grandes entusiastas e adepto do recall foi o ex-Presidente Theodore Roosevelt, que pregava abertamente sua adoção, influindo pela sua aprovação no Estado do Colorado.

Além da Califórnia, o instituto tem aplicabilidade em pelo menos 26 Estados, em qualquer modalidade ou forma, e em mais de 1000 Municípios ou Condados (entre as municipalidades, a primeira foi a de Los Angeles, CA, em 1902). Os procedimentos variam de Estado para Estado. Geralmente é requerido o apoiamento de uma fração superior a 10% dos eleitores, com exceção de Montana, que exige um número mínimo de peticionários para deflagrar o processo.

O modelo norte-americano tem sido discutido e debatido em todo o mundo, tendo sido o recall legislativo recentemente adotado na província canadense da Columbia Britânica, em 1995. Nesta província, o recall é valido para destituir um parlamentar da legislatura provincial, desde que consiga o apoio de 40% dos eleitores que tenham votado no distrito na última eleição, desde que o deputado já possua 18 meses de mandato. O interessante é que a versão canadense assegura a destituição do parlamentar sem necessidade de votação, mas apenas com a apresentação e autenticação das assinaturas dos eleitores requeridos em lei.[22]

Destaque-se que a Alemanha, após a primeira Guerra, havia adotado parcialmente o instituto, nos länder (Estados) da Baviera (1919), Prússia e Saxe (1920), consagrando-o através da sua Constituição de 1926, de Weimar, que estabelecia a possibilidade de destituir-se o Presidente do Reich, a pedido do Reichstag (o parlamento alemão), através de consulta popular (Art. 71). Caso seu mandato não fosse renovado, o parlamento é que era dissolvido.

Muitos países do antigo Bloco Socialista seguiram o exemplo da União Soviética, que fez insculpir no artigo 105 [23] da Constituição da extinta U.R.S.S. a possibilidade de revogação do mandato dos deputados, que são obrigados, a qualquer momento a prestar contas aos eleitores. Tal dispositivo, análogo ao soviético, ainda perdura na Constituição Cubana (Art. 85). A perda do mandato popular dos deputados à Assembléia Nacional, de acordo com a Lei n. 89, de 14 de setembro de 1999 (Art. 85), é conferido à Assembléia do Município por onde o deputado nacional foi eleito (Art. 6º, b, da Lei n. 89), podendo ser iniciado o processo pelo Conselho de Estado, por outro deputado ou por um quarto dos delegados da Assembléia do Município, a qualquer tempo [24].

Outro país que recentemente vivenciou a utilização do controle popular, com pioneirismo no tema na América do Sul, foi na nova República Bolivariana da Venezuela, que contemplou, em sua nova Constituição de 15 de dezembro de 1999 (Art. 72) o referendo revogatório presidencial, que pela primeira vez foi realizado em 2004 [25], sagrando a vitória e a permanência do Presidente Hugo Chávez. O curioso é que o novo instituto constitucional venezuelano foi introduzido pelo Governo Chávez, mas foi promovida a sua realização por seus oposicionistas, como saída de uma grave crise política. No modelo venezuelano, são necessárias assinaturas de 20% do total de eleitores convocando o referendo para que este seja marcado pelo Conselho Nacional de Eleições (CNE), que também verificará a autenticidade das assinaturas [26], sendo válido "para qualquer cargo ou magistratura de eleição popular", decorrido metade do período do mandato[27].

Na América Latina, antes da Venezuela, a Constituição panamenha de 1972, reformada em 1978 e em 1983 (Art. 145), já previa a possibilidade de revogar mandatos através dos próprios partidos políticos, figurando, entre os motivos autorizadores para tal, a infidelidade partidária. Na Argentina, o referendo revogatório ou consulta revogatória, é previsto pelo Art. 67 do Estatuto da Cidade Autônoma de Buenos Aires, para o cargo de Chefe de Governo e seu substituto, como forma de cidadania participativa. É provocado mediante requerimento de 20% do eleitorado inscrito, devendo as firmas ser coletadas no prazo de um ano, no máximo. Na Grã-Bretanha, as consultas populares somente são realizadas desde 1975, sendo que no final da década de 90, as consultas locais têm se intensificado. Vários grupos, principalmente os dos eurocéticos, têm defendido a instituição do recall na Inglaterra.

No Brasil, para surpresa de muitos, a revogação antecipada do mandato popular foi previsto nas primeiras Constituições Estaduais de Goiás, São Paulo, Rio Grande do Sul e Santa Catarina. As Constituições de São Paulo (1892) e a do Rio Grande do Sul (1897) regulamentaram o recall, sem que, no entanto, chegassem a ser efetivamente aplicadas[28].

Menos conhecido, há outro instituto de revogação, desta vez não só de um mandato, individualmente, mas de toda uma Assembléia, coletivamente. É o Abberufungsrecht, pelo qual, desde que requerida a dissolução da Assembléia por um determinado número de eleitores, poderá se convocar o corpo eleitoral sobre a conveniência da conclusão ou não de uma legislatura, ou do Executivo. É aplicado em sete cantões (tais como Berna, Zürich e Aargau) e em um semicantão (distrito) suíços, além do vizinho Liechtenstein.

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Sobre o autor
Vinicius Cordeiro

advogado no Rio de Janeiro, especializado em direito eleitoral

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CORDEIRO, Vinicius. O controle dos mandatos populares pelo Legislativo no Direito brasileiro.: O instituto do "recall" e dos referendos revogatórios. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 10, n. 784, 26 ago. 2005. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/7200. Acesso em: 5 nov. 2024.

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