As constituições brasileiras nos anos de chumbo (1964-1985) e o caminho para a democracia

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São tortuosas as estradas do direito brasileiro, a começar pela trajetória constitucional que não é linear, havendo sempre uma luta entre as forças políticas e sociais estabelecidas no campo social.

1 INTRODUÇÃO

A História do Direito trata-se de uma disciplina que está presente no currículo dos cursos jurídicos desde 1891 (NADER, 2000, p.5), e que se ocupa em demonstrar como o fenômeno jurídico é construído por meio de camadas que não necessariamente se sobrepõem, mas que estão indissoluvelmente ligadas pela realidade social. Tal disciplina propõe um estudo de sentenças judiciais, doutrina, costumes e demais fontes do Direito, bem como de institutos jurídicos, com os quais estabelece relações de iguais institutos em diferentes épocas, condicionando-os a diferentes conjunturas sociopolíticas (MAGALHÃES, 2012).

O estudo histórico do Direito é abrangente, e, nas palavras de Flávia Lages de Castro: “O valor do estudo da História do Direito não está em ensinar-nos não somente o que o direito tem “feito”, mas o que o direito é. Tendo isto em mente, podemos avançar neste estudo, buscando compreender não somente as regras de povos que viveram no passado, mas sua ligação com a sociedade que a produziu para assim, e somente assim, entender o “nosso” Direito (CASTRO, 2007, p.5).

Confunde-se com a própria  história de um Estado, a sua história constitucional, em todos os seus aspectos, dentre os quais, podem-se destacar o sociológico, o político e o jurídico. Porém, a partir da concepção do constitucionalismo moderno, costuma-se estudar o desenvolvimento histórico de um Estado, através Cartas Constitucionais que vigeram no mesmo.

O constitucionalismo, de acordo com a lição Canotilho (2000, p. 51), é conceituado nos seguintes termos:

Teoria ou ideologia que ergue o princípio do governo limitado indispensável à garantia dos direitos em dimensão estruturante da organização político-social de uma comunidade. Neste sentido, o constitucionalismo moderno representará uma técnica específica de limitação do poder com fins garantísticos. O conceito de constitucionalismo transporta, assim, um claro juízo de valor. É, no fundo, uma teoria normativa da política, tal como a teoria da democracia ou a teoria do liberalismo.

O que buscou o constitucionalismo, basicamente, foi a limitação dos poderes do soberano absolutista e a garantia de direitos fundamentais explícitos em um texto escrito. No primeiro momento, foi um movimento liderado pela burguesia, classe social que ascendia economicamente e ansiava por liberdade, que era impossibilitada pelas ingerências dos governantes, durante o período da Idade Moderna.

A limitação do poder do soberano é formulada a partir da teoria da separação dos poderes, desenvolvida por Locke e Montesquieu, mas tendo, ainda, uma formulação alternativa elaborada por Benjamin Constant, que vai ter uma influência significativa na primeira Constituição brasileira. Os direitos fundamentais inseridos, neste primeiro momento, referem-se à questão da liberdade do indivíduo perante o Estado. Acontece que, na prática, a liberdade defendida pela burguesia é meramente formal. Constata-se que os princípios de que se revestia a sua revolta social eram ideológicos e classistas, como assevera Paulo Bonavides (2011b, p.42):

A burguesia, classe dominada, a princípio e, em seguida, classe dominante, formulou os princípios de sua revolta social.

E, tanto antes como depois, nada mais fez do que generalizá-los doutrinariamente como ideais comuns a todos os componentes do corpo social. Mas, no momento em que se apodera do controle político da sociedade, a burguesia já não se interessa em manter na prática a universalidade daqueles princípios, como apanágio de todos os homens. Só de maneira formal os sustenta, uma vez que no plano da aplicação política eles se conservam, de fato, princípios constitutivos de uma ideologia de classe.

A partir da teoria dos direitos fundamentais, pode-se entender o desenvolvimento do constitucionalismo. Neste primeiro momento, tem-se o que a doutrina chama de direitos fundamentais de primeira dimensão (ou geração). O Estado Liberal, garantindo a liberdade material apenas a uma classe social, a dominante, gerará concentração de renda e desigualdades sociais, que farão eclodir crises e revoltas, urgindo que o Estado seja chamado a atuar positivamente, assegurando “direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de coletividades [...] abraçados ao princípio da igualdade” (BONAVIDES, 2011a, p. 564). São estes os chamados direitos de segunda dimensão (ou geração) e que constituem o cerne do Estado Social. Documentos marcantes dos direitos de segunda dimensão são as Constituições do México de 1917 e a de Weimar de 1919, que vão exercer forte influência na nossa Constituição de 1934.

Com as alterações no cenário mundial decorrente do desenvolvimento científico e tecnológico, novos problemas surgem, clamando por garantias de novos direito que “não se destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, de um grupo ou de determinado Estado. Tem por destinatário o gênero humano mesmo” (BONAVIDES, 2011a, p. 569). São direitos fundados no princípio da fraternidade ou solidariedade e relacionados ao desenvolvimento, ao meio ambiente, à paz, à comunicação e ao patrimônio comum da humanidade e que constituem os direitos de terceira dimensão (ou geração). Estes direitos se passam a ganhar força a partir do final do século XX.

Para muitos, estas três dimensões dos direitos fundamentais são suficientes, mas Paulo Bonavides (2011a) acrescenta ainda a quarta e a quinta dimensão. Na quarta, estariam os direitos à democracia, à informação e ao pluralismo; na quinta, o direito à paz, que, para este, a colocação do direito à paz no rol dos direitos da fraternidade, por Karel Vasak, foi realizada de modo incompleto e lacunoso. Com todas estas dimensões efetivadas, estaria implementado o Estado Democrático de Direito.

Dito isto, cumpre, agora, adentrar à história constitucional brasileira especificamente no período da Ditadura Militar (1964-1985) e enxergar como este constitucionalismo influenciou e influencia a nossa formação jurídica, política e social, com a construção da Constituição Cidadã, de 1988.


2 AS CONSTITUIÇÕES DO BRASIL

Afirma-se que o Brasil é um país que já nasceu constitucionalista, porque a sua independência com relação a Portugal ocorreu num período que já estava envolto naquelas ideias do constitucionalismo moderno, iniciado com a Revolução Francesa e a Independência dos Estados Unidos e, por isso, ao ser proclamada a Independência, já se pensava na elaboração de um texto constitucional que regeria o novo país.

Portugal, país do qual o Brasil foi colônia, só elaborou a sua primeira Constituição em 1822. Porém, deve-se ter em mente o que dizia Lassalle, no sentido de que todos os países, em todos os tempos possuíram uma Constituição em sentido real ou material, porque o que é “realmente peculiar à época moderna não são as Constituições materiais – importantíssimo ter isto em mente – mas as Constituições escritas, as folhas de papel” (LASSALLE citado por BONAVIDES, 2011a, p. 81). Desta forma, não se pode negar a existência de uma Constituição material em Portugal, à qual o Brasil – enquanto colônia – esteve submetido.

Costuma-se dividir a história constitucional brasileira, desde esta primeira Constituição até a atual de 1988, em três fases históricas:

A primeira, vinculada ao modelo constitucional francês e inglês do século XIX; a segunda, representando já uma ruptura, atada ao modelo norte-americano e, finalmente, a terceira, em curso em que se percebe, com toda evidência, a presença de traços fundamentais presos ao constitucionalismo alemão do corrente século. (BONAVIDES, 2011a, p. 361)

A Constituição de 1988 é oitava da nossa história, contando com a Emenda Constitucional nº. 1 de 1969 que, pelo seu caráter revolucionário, é tida pela doutrina como fruto de um novo poder constituinte originário.

2.1 CONSTITUIÇÃO DE 1967

A Constituição Brasileira de 1967, elaborada pelo congresso nacional, foi votada em 24 de janeiro de 1967 e começou a vigorar em 15 de março do mesmo ano. No ano de 1964, um golpe militar destitui o presidente João Goulart, instaurando no país um regime militar alinhado politicamente aos Estados Unidos, realizando profundas mudanças na vida econômica, política e social do nosso país.

A retirada de Goulart do poder foi conturbada. Acusado de manter ligações com os comunistas, em uma ida à China, o até então presidente teve seu retorno dificultado pelas forças armadas. Ao considerar o afastamento inconstitucional, “o Congresso Nacional, tentando ser conservador, aprovou, em 02.09.1961, o regime parlamentarista” (LENZA, 2011, p.115). Porém, em um referendo realizado dois anos depois, houve o retorno do presidencialismo, permitindo que Jango fosse derrubado por um golpe militar.

Após o golpe, principalmente nos primeiros quatro anos, a ditadura foi fechando o regime aos poucos, para evitar perder o controle da situação. Para não realizar a mudança da constituição de forma repentina, o governo elaborou os Atos Institucionais, decretos criados para legitimar e legalizar as ações políticas contrárias a constituição, estabelecendo poderes extra-constitucionais. O Ato institucional número I, editado em 09 de abril de 1964, suspendeu a Constituição de 1946 por seis meses, além de dar o poder ao governo de alterar a constituição. O Ato institucional número IV pôs o fim a definitivo a Constituição anterior, convocando o Congresso Nacional para a votação e promulgação da constituição de 1967. Vale salientar essa “promulgação” apresenta uma realidade falsa do assunto. A Assembleia Nacional Constituinte responsável pela promulgação já se apresentava sem os membros da oposição – afastados pelo regime – e estava sob pressão dos militares, o que possibilitou a criação dessa Carta que legalizou o regime militar. Sobre o Ato Institucional número 5, considerado o mais perverso, afirma Bastos (1997, p.36):

O AI-5 marca-se por um autoritarismo ímpar do ponto de vista jurídico, conferindo ao Presidente da República uma quantidade de poderes de que muito provavelmente poucos déspotas na história desfrutaram, tornando-se um marco de um novo surto revolucionário, dando a tônica do período vivido na década subsequente.

O projeto da Constituição foi elaborado por Carlos Medeiros Silva, Ministro da Justiça na época, e por Francisco Campos, o mesmo da Constituição de 1934. O projeto inicial não passou por grandes alterações, exceto a adição das medidas já instituídas pelos atos institucionais e complementares. Já o seu texto foi elaborado pelos juristas ligados ao regime militar, Orosimbo Nonato, Temístocles Cavalcanti, Levi Carneiro e Miguel Seabra Fagundes. Há uma certa controvérsia na relação entre esses juristas e o regime militar, uma vez que apesar de serem de “confiança” do regime e terem escrito o texto da constituições mais antidemocrática do nosso pais, os mesmos exerceram em suas carreiras como juristas grandes obras na defesa da democracia, com Carneiro, que foi um os fundadores da Ordem dos Advogados do Brasil(OAB), e Seabra Fagundes, que três anos após ter escrito o texto da Constituição de 1967, foi eleito presidente da OAB, e desafio a ditadura com um discurso de posse defendendo a legalidade democrática.

Portanto, pode-se concluir que havia uma certa necessidade de criação de uma constituição que incorporasse todos os decretos realizados após o golpe, uma vez que não havia uma formalidade legislativa do governo, visto que a Constituição de 1946 estava conflitando com os atos e a normatividade constitucional, impedindo uma reforma administrativa brasileira.

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Para facilitar o domínio do governo militar, ela retomou a mesma idéia da Constituição de 1937, aumentando o domínio do poder executivo sobre o legislativo e o judiciário, criando a estrutura necessária para o seu domínio, que é uma estrutura constitucional hierarquicamente centralizadora. Pode-se verificar essa afirmação em Bastos citado por Lenza, “no fundo existia um só, que era o executivo, visto que a situação reinante tornava por demais mesquinhas as competências tanto do legislativo quanto do judiciário[...]” (2011, p. 116). Salienta-se também que, diferentemente da constituição de 37, ela foi baseada em ditaduras latino americanas, uma vez que as ditaduras na Europa já haviam sido extintos há algum tempo. Dentre as suas principais características, temos: reestabelece as eleições indiretas para presidente; tende a centralização; amplia a justiça militar e cria a possibilidade de criação de leis de censura.

Devido aos atos institucionais, já explicados, pode-se concluir que a Constituição de 1967 mal vigorou, uma vez que os decretos que complementavam e modificavam as constituições (emendas ou Atos Institucionais) sempre versavam sobre os assuntos constitucionais mais importantes. Pode-se dizer que tanto no governo Vargas quanto no regime militar houve uma preferência na governabilidade por decretos, uma vez que eles podiam ser realizados a qualquer hora, se adaptando as situações atuais.

2.1.1 A EMENDA CONSTITUCIONAL DE 1969           

Ainda há controvérsias sobre o caráter da Emenda Constitucional número 1. Alguns estudiosos defendem que essa emenda cria uma nova constituição outorgada, outros, porém, defendem a posição de uma emenda à constituição de 1967. Segundo Lenza, “sem dúvida, dado o seu caráter revolucionário, podemos considerar a EC n. 1/69 como a manifestação de um novo poder constituinte originário, outorgando uma nova carta [...]” (2011, p. 119).

Assim também pensa José Afonso da Silva (2005, p.87):

Teórica e tecnicamente, não se tratou de emenda, mas de nova constituição. A emenda só serviu como mecanismo de outorga, uma vez que verdadeiramente se promulgou um texto integralmente reformulado, a começar pela denominação que se lhe deu: Constituição da República Federativa do Brasil, enquanto a de 1967 se chamava apenas Constituição do Brasil.

O Ato institucional nº 12 havia instituído no Brasil um governo de juntas militares, pelo fato de o Presidente Costa e Silva está afastado por problemas de saúde e o seu vice, o civil Pedro Aleixo, ter sido impossibilitado de tomar posse, por conta de sua suposta intenção de reestabelecer o processo democrático. Foi, pois, um grupo de militares quem baixou a EC nº 1/69, pois o Congresso Nacional se encontrava fechado. Suas principais mudanças foram a instauração da Lei de Segurança Nacional, que limitava os direitos civis, e a Lei da Imprensa, que estabelecia a censura federal.

Apesar dos pontos negativos dessa ditadura, no gestão do Presidente Médici (1969-1974), “o país experimentou o denominado “milagre econômico”, que trouxe uma pequena ilusão de pontos positivos ao novo regime (extremamente duro e autoritário, deixe-se bem claro)” (LENZA, 2011, p. 119). Contudo, o período subsequente, governado pelo Presidente Ernesto Geisel, enfrentou grave crise econômica e um forte surto inflacionário, impulsionados pela crise do petróleo.

O período da ditadura militar – que segundo os militares havia sido planejado para ser efêmero – dura mais de duas décadas, sendo marcado pelo autoritarismo, eleições indiretas, retrocesso com relação aos direitos e garantias fundamentais. Vários movimentos contrários ao regimes surgiram nessa época e, depois de muitos desmandos, após irem perdendo pouco a pouco a confiança geral da população, o movimento militar começa a retroceder.

Em 1978, através do pacote de junho, foi revogado o AI-5 e vários dispositivos que, baseados nele, cassavam direitos políticos; a suspensão do Congresso Nacional tornou-se impossibilitada e, dessa forma, foram limitados o poder do chefe do executivo. Em 1979, vários presos políticos, perseguidos pelo regime, são anistiados; é reestabelecido o pluripartidarismo. Em 1982, tem-se eleição direta para Governadores de Estado. Em 1983, inicia-se o movimento Diretas Já, que vai propor a volta das eleições diretas para Presidente da República. O fim desse período se dá com a posse de um presidente civil, José Sarney, que cumprindo mandamento da EC 26/85, instala a Assembleia Nacional Constituinte, em 1987. Os trabalhos desta Assembleia ultimam com a promulgação da vigente Constituição de 1988.

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Sobre os autores
Jadiene Oliveira da Rosa

Graduanda do 7º Período do curso de Bacharelado em Direito da Universidade Federal do Oeste do Pará.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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