RESUMO: A presente produção científica tem o intuito de analisar a problemática do uso do banheiro por transexuais em ambientes públicos, como o laboral. Serão pontuados conceitos básicos acerca da transexualidade, tais como identidade de gênero e sexualidade. O objetivo principal é apresentar soluções que tenham por base a dignidade da pessoa humana e a busca pela felicidade, através de uma sociedade mais inclusiva. A metodologia utilizada neste estudo é a bibliográfica, que consistirá na análise de julgados acerca do assunto e de outras produções científicas que concluem pela urgente necessidade de concretizar direitos básicos à população trans, especificamente o uso do banheiro de acordo com sua identidade de gênero, que é o foco deste trabalho.
Palavras-chave: Direito do Trabalho. Direitos fundamentais. Dignidade da Pessoa Humana. Transexualidade.
Introdução
O Direito do Trabalho tem extrema ligação com os direitos sociais. Tais direitos conferem a esse ramo da ciência jurídica uma nova dimensão de cidadania e mudança nas práticas de mercado, sendo assegurada igualdade de tratamento nas mais variadas hipóteses.
Os direitos sociais atribuem ao Estado o dever de prestar assistência aos desempregados, à velhice, à infância, aos doentes e deficientes de toda sorte, entre outras situações.
“De outra parte não se pode ignorar que o “valor social do trabalho”, acepção mais ampla do termo, constitui postulado básico da dignidade da pessoa humana e corolário da própria cidadania (CF, art. 1º, II, II e IV), na medida em que é exatamente o trabalho produtivo que irá evitar, em última análise, que a pessoa humana venha a necessitar de prestações estatais positivas.” (LEITE, 2018. p. 52)
Quando direitos do trabalhador são violados, nas mais diversas situações, como exemplo a ser tratado no presente artigo científico, no caso de abuso de poder diretivo do empregador, quando este restringe o uso de banheiro pelo empregado, em especial o transexual, surge para o mesmo o dever de reparar o dano sofrido.
Antes de adentrar a questões relacionadas ao uso de banheiro no ambiente de trabalho pelo transexual, faz-se necessário discutir temas relacionados à ideologia de gênero, sexualidade e demais conceitos básicos que falam sobre transexualidade.
Transexualidade e principais aspectos.
Tratada como “distúrbio mental” pela Organização Mundial de Saúde, até 18 de junho de 2018, a transexualidade, embora não haja consenso no campo técnico, trata-se de uma condição neurológica, sendo possível até que haja fundamento na genética.
Para se obter um diagnóstico de pessoa transexual, são indispensáveis aos menos três fatores, conforme a resolução nº 1955/2010 do Conselho Federal de Medicina:
- Insatisfação com o sexo designado no nascimento e desejo de viver e ser aceito como pessoa do sexo oposto, mediante tratamento de reposição hormonal e cirurgia de transgenitalização, caso seja opção do paciente;
- Constância desse desejo, por um período de, pelo menos, dois anos; e
- Não se constituir a transexualidade como sintoma prévio de distúrbio mental.
Não é possível determinar um momento específico do surgimento da transexualidade, podendo ocorrer ainda na infância ou mesmo após a vida adulta. Normalmente, observam-se alterações desde a puberdade, onde se consolida o interesse sexual, mesmo que identidade de gênero e sexualidade não se relacionem de maneira tão exata, como veremos a seguir.
Identidade de gênero x Orientação sexual
O tema tratado nesse tópico carece de certa atenção, posto que os termos que serão discutidos aqui comumente são confundidos até mesmo por quem se debruça para compreendê-los.
A identidade de gênero diz respeito à identificação do indivíduo com seu corpo material, que biologicamente é de homem ou mulher, conforme o padrão binário existente na sociedade. Esse corpo masculino ou feminino tem papel social e comportamentos diversos de acordo com a adequação a um ou outro.
O transgênero ou transexual nada mais é do que a pessoa que não se identifica com o gênero que lhe foi designado no nascimento, buscando através de terapia de reposição hormonal, ac0ompanhamento médico/psicológico e cirurgia de redesignação (atualmente dispensável para se caracterizar a transexualidade, como veremos em decisão do STJ mais a frente) migrar para o gênero adequado ao seu interior sendo homem, mulher, ambos ou mesmo nenhum dos dois, como se enquadram as pessoas chamadas de não binárias.
Quanto à identidade de gênero, o indivíduo pode ser considerado:
- Cisgênero: Indivíduo que possui conformidade do gênero designado no nascimento com aquele com o qual se identifica.
- Transexual ou transgênero: Em mão diversa do anterior, trata-se do indivíduo que sofre conflito a respeito do sexo/gênero atribuído no nascimento com o que se identifica. Há rejeição às características corporais e dificuldade em viver socialmente cumprindo os papéis impostos ao gênero designado.
Diferente de identidade de gênero, que diz respeito à esfera pessoal do indivíduo, a orientação sexual consiste no gênero pelo qual a pessoa sente atração. É convenção social que se divida a orientação sexual da seguinte forma:
- Heterossexual: Pessoa que sente atração pelo sexo oposto.
- Homossexual: Pessoa que sente atração pelo mesmo sexo.
- Bissexual: Pessoa que sente atração por ambos os sexos.
- Assexual: Pessoa que não sente atração sexual por qualquer dos sexos.
Existe diante dessa dicotomia - identidade de gênero e orientação sexual - uma questão de saúde pública que reside nos fatores que são desencadeados quando ocorre a disforia de gênero. Ansiedade, depressão, bullying, violência, rejeição pela família são muitas das causas que levam à fragilização da saúde mental do transexual, ocasionando alta incidência de suicídio e depressão entre essa população.
Segundo a resolução nº 1955/2010 do Conselho Federal de Medicina, o paciente transexual é “portador de desvio psicológico permanente de identidade sexual, com rejeição do fenótipo e tendência a automutilação e/ou autoextermínio. ”
Direitos dos Transexuais
Apesar de estarem incluídos entre todos os indivíduos que são detentores de direitos e garantias fundamentais pela Constituição Federal e todo o sistema jurídico, a população transexual carece de proteção específica, tendo em vista a omissão legislativa em algumas questões e inadequação de instrumentos jurídicos em outras.
O preconceito, má vontade ou desconhecimento de conceitos relacionados à transexualidade se consolida como óbice à concessão de alguns direitos básicos, fazendo com que esses grupos tidos como minoritários se tornem ainda mais vulneráveis. Entrada no mercado de trabalho, acesso a locais públicos, uso do nome e banheiros são questões básicas e que não funcionam de maneira simples para os transexuais.
Exemplo de decisão importante a favor dos transexuais foi a concessão em 09/05/2017 do direito de mudança de identidade de gênero no registro civil, pelo Colegiado da 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, como relator Ministro Luís Felipe Salomão, mesmo sem a realização da cirurgia de transgenitalização, já que em alguns casos o procedimento é inviável por condições clínicas ou financeiras. A questão chegou ao Superior Tribunal através de Recurso Especial contra decisão do Tribunal de Justiça do Rio Grane do Sul. Além da alteração na identidade de gênero, houve abertura para o sistema não binário de gênero, que consiste na situação daqueles que não se identificam com a divisão de dado biológico macho/fêmea.
O direito ao uso do nome é o primeiro ato constitutivo da existência humana no mundo concreto e este tem intima ligação com o sexo. Para o transexual, o nome social garante dignidade e reconhecimento de sua identidade de gênero, posto que seu corpo não condiz mais com o nome constante do registro civil de nascimento.
Todavia, houve o entendimento pelo ministro relator da decisão supracitada de que apenas o uso do nome social não seria capaz de garantir plena liberdade, dignidade e felicidade aos transexuais caso não houvesse a mudança do gênero nos documentos de identificação do indivíduo.
Em março de 2018, o Supremo Tribunal Federal também decidiu por maioria sobre o assunto, firmando entendimento, inclusive, de que não carece de autorização judicial para que a alteração seja feita.
Apesar de parecer que tudo está evoluindo rapidamente e em grande escala, coisas simples como o uso do banheiro pela população transexual ainda é uma questão extremamente complexa e por isso foi escolhido para ser alvo de estudo na presente produção científica. De maneira preliminar, é preciso discutir acerca do uso do banheiro no ambiente de trabalho e situações que permeiam esse direito básico do empregado, para, então, verificar as condições do ambiente laboral no tocante à população trans.
Uso do banheiro no ambiente de trabalho e transexualidade
Embora não tenha tratamento legal específico, o uso do banheiro pelos funcionários está incluso no poder diretivo do empregador, segundo o que determina o artigo 2º da Consolidação das Leis do Trabalho[1].
Nos Tribunais, é firmado o entendimento de que não se pode limitar o número de vezes que o empregado vaio ao banheiro ou nele permanece, mas é possível que se faça um controle para evitar que a atividade laboral seja prejudicada.
Têm crescido o número de ações que visam ao ressarcimento por dano moral causado pela limitação de uso do banheiro no ambiente de trabalho, com base no Inciso X, do artigo 5º da Constituição Federal de 1988[2], conforme se observa a seguir:
RECURSO DE REVISTA. DANO MORAL. LIMITAÇÃO AO USO DO BANHEIRO. VIOLAÇÃO DO ART. 5º, X, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL 1. A limitação ao uso do banheiro por determinação do empregador acarreta constrangimento e exposição a risco de lesão à saúde do empregado, ao comprometer-lhe o atendimento de necessidades fisiológicas impostergáveis. 2. O direito à satisfação das necessidades fisiológicas constitui direito humano fundamental, primário e básico, dada a condição biológica do ser humano. De intuitiva percepção, assim, que o livre exercício do direito natural à excreção é insuscetível de restrições ou condicionamentos. 3. Mesmo em relação a atividades econômicas que, por imperativo de ordem técnica e/ou em face de exigências relativas à continuidade do trabalho, demandam maior acuidade na execução da atividade laboral e a presença efetiva do empregado no processo produtivo, há que prevalecer o direito irrestrito de acesso às instalações sanitárias da empresa, durante a jornada de trabalho. 4. A simples sujeição do empregado à obtenção de autorização expressa da chefia, para uso do banheiro, em certas circunstâncias, em si mesma já constitui intolerável constrangimento e menoscabo à dignidade humana. 5. Direito à indenização por dano moral assegurado, com fundamento nas normas do art. 5º, X, da Constituição Federal e art. 186 do Código Civil. 6. Recurso de revista da Reclamante de que se conhece e que se dá provimento.
(TST - RR: 11342520125090662, Data de Julgamento: 28/02/2018, Data de Publicação: DEJT 02/03/2018)
Vale salientar que o trabalhador que se dirigir ao banheiro no momento de trabalho não deve fazer usufruto desse tempo para resolver questões pessoais que estejam além das suas necessidades fisiológicas, restando o abuso desse direito em possibilidade de demissão por justa causa.
No tocante às pessoas transexuais a questão do uso do banheiro público toma outro rumo de discussão. Socialmente, utiliza-se uma lógica binária que leva em consideração a existência de apenas dois sexos possíveis, quais sejam, masculino ou feminino. Diante disso e dos papéis sociais atribuídos a cada um dos sexos, são designados banheiros a cada um destes. Porém, apesar de haver identificação social dos transexuais com o gênero oposto ao que lhe foi designado quando do seu nascimento, usar banheiros de shoppings, bares, restaurantes e do ambiente de trabalho ainda é dificultoso pelo constrangimento sofrido pelo transexual.
O número de casos que chegam ao Poder Judiciário versando sobre o uso do banheiro de acordo com o gênero tem aumentado nos últimos anos. Esse debate jurídico esbarrou no Supremo Tribunal Federal e deu início à repercussão geral no Recurso Extraordinário nº 845779[3], que visa reformar a matéria da decisão do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, proferida em 2012 na Apelação Cível nº 2012.019304-1 [4] pelo Relator Ministro Fernando Carioni, que negou indenização por danos morais a transexual que fez suas necessidades fisiológicas na roupa em público por ter seu direito de usar o banheiro feminino em shopping center negado. Na ocasião do julgamento pelo Tribunal Catarinense o caso foi considerado como mero aborrecimento.
O ocorrido repercutiu de maneira geral no Supremo por ser considerado relevante não apenas na vida das partes envolvidas na ação, mas pela afronta que se configura contra os direitos à dignidade humana e personalidade no caso de impedimento de transexuais ao utilizar banheiros públicos, o que diz respeito ao direito das minorias.
O Ministério Público do Trabalho reconheceu, juntamente com a aceitação do nome social no ambiente de trabalho, a garantia de acesso a banheiros e vestiários de acordo com esse nome e identidade de gênero do indivíduo, através da portaria 1.036/2015.
Ronaldo Fleury, Procurador-geral do Trabalho, fez a seguinte ponderação acerca do tratamento normativo que visa incluir pessoas trans no ambiente de trabalho: “Nós precisamos enfrentar essas questões da mesma forma que enfrentamos, nos anos 1990, quando começamos a fazer todo o projeto de inserção das pessoas com deficiência. Ainda há outras barreiras a vencer? Há. Mas a primeira barreira, que é a do preconceito, está sendo superada”.
A Administração Pública Federal promulgou o decreto 8.727/2016, reconhecendo o uso do nome social em seu âmbito, bem como a identidade de gênero, conceituando esses termos logo em seu artigo 1º.
Art. 1o Este Decreto dispõe sobre o uso do nome social e o reconhecimento da identidade de gênero de pessoas travestis ou transexuais no âmbito da administração pública federal direta, autárquica e fundacional.
Parágrafo único. Para os fins deste Decreto, considera-se:
I - nome social - designação pela qual a pessoa travesti ou transexual se identifica e é socialmente reconhecida; e
II - Identidade de gênero - dimensão da identidade de uma pessoa que diz respeito à forma como se relaciona com as representações de masculinidade e feminilidade e como isso se traduz em sua prática social, sem guardar relação necessária com o sexo atribuído no nascimento.
(BRASIL. Decreto nº 8.727 de 28 de abril de 2016. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2016/decreto/D8727.htm>. Acesso em: 22/11/2018.)
Esse tratamento normativo no âmbito federal permite e dá abertura para a proibição de tratamentos baseados em conceitos privados e individuais, que reduzem aspectos como identidade de gênero e sexualidade à esfera de entendimentos que não guardam relação com o mundo jurídico, sendo desrespeitosos com o direito à autodeterminação de gênero e sexualidade.