Capa da publicação O caso da tatuagem na testa à luz de Durkheim
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Três conceitos jurídico-sociológicos para a compreensão do caso da tatuagem na testa

06/03/2019 às 11:15

Resumo:


  • O caso envolveu um tatuador e seu vizinho que tatuaram na testa de um jovem a frase "sou ladrão e vacilão" como punição por um suposto furto de bicicleta.

  • A análise sociológica de Durkheim destaca a diferença entre solidariedade mecânica e orgânica, mostrando como o caso reflete características de ambas.

  • Os conceitos de subintegração e sobreintegração de Marcelo Neves ajudam a entender a fragilidade do sistema jurídico diante dos particularismos e a impunidade presente no caso.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

Reflete-se sobre o caso do suposto ladrão que teve sua testa tatuada pela vítima de seu crime. O que o aumento dos casos de “justiça com as próprias mãos”, à revelia dos mecanismos estatais de regulação social e marcados pela violência, representa na sociedade moderna?

O caso

No dia 9 de junho de 2017, em São Bernardo do Campo (SP), o tatuador Maycon Wesley Carvalho dos Reis, 27 anos, e seu vizinho Ronildo Moreira de Araújo, 29 anos, capturaram um jovem de 17 anos, dependente químico, alegando que ele estaria furtando uma bicicleta. Os dois subjugaram o rapaz e, como forma de “punição” pela tentativa de furto, tatuaram em sua testa a frase “sou ladrão e vacilão”. O ato foi registrado por Maycon em um vídeo, que logo começou a circular viralmente nas redes sociais.

Este episódio ocorre em um contexto de uma série de linchamentos que têm aparecido na mídia brasileira nos últimos anos. Apesar de diferir dos episódios de linchamento em um aspecto importante, o de ser uma punição sumária executada na praça pública por uma turba, o caso guarda uma característica comum com estes: são casos de particulares “fazendo justiça com as próprias mãos”, à revelia dos mecanismos estatais de regulação social e marcados pela violência. Ademais, apesar de não ter ocorrido fisicamente na praça pública, o registro em vídeo por parte de um dos perpetrantes garantiu que a punição tenha sido vista na “praça pública virtual” da internet.


Sociedades primitivas e modernas

Um arcabouço teórico que pode fornecer elementos para a interpretação do caso é o do sociólogo francês Émile Durkheim. Em sua obra Da divisão do trabalho social, Durkheim apresenta duas formas de estabelecimento de vínculos sociais: a solidariedade mecânica, correspondente às sociedades por ele classificadas como primitivas e a solidariedade orgânica, relativa às sociedades que ele intitula modernas.

A solidariedade mecânica “liga diretamente o indivíduo à sociedade, sem nenhum intermediário” (DURKHEIM, 1999: 106). Ela é uma união baseada no compartilhamento de crenças e valores comuns a todo o grupo, uma consciência coletiva. Nessa forma de solidariedade, quanto menos individualizadas estão as pessoas, mais coeso é o grupo.

Já a solidariedade orgânica decorre da divisão social do trabalho. A sociedade moderna é “um sistema de funções diferentes e especiais unidas por relações definidas” (DURKHEIM,1999: 106). O que mantém a coesão social é a interdependência entre os diversos membros da coletividade, tal como os órgãos se relacionam nos organismos biológicos complexos. Nessa forma de solidariedade, devido exatamente à especialização do trabalho, quanto mais individualizados estão os membros da sociedade, mais dependentes eles são da sociedade.

Essa diferença entre as formas de solidariedade possui implicações para como esses diferentes tipos de sociedade se relacionam com o direito. Nas sociedades primitivas, de solidariedade mecânica, como a coesão social é dependente de crenças e valores comuns, o direito assume um caráter repressivo de qualquer comportamento ou ação entendidos como contrários a esses valores. A pena é entendida como suplício e expiação, aplicada passionalmente e difusamente, muitas vezes associado à vergonha pública.

Nas sociedades modernas, de solidariedade orgânica, prevalece o direito restitutivo. O direito se afasta do caráter moral (de valores e crenças) buscando apenas uma reparação a danos infligidos, um retorno à situação normal vigente no passado. Devido à própria divisão social do trabalho, criam-se órgãos e funções especializados para a aplicação e operação do direito, os tribunais, os juízes, os advogados, as regras processuais.

Observando o caso a partir destes conceitos colocados por Durkheim, nos deparamos com uma situação paradoxal: a sociedade brasileira possui características atribuíveis às sociedades modernas, especialmente no que concerne a existência de um direito – supostamente – restitutivo e de órgãos especializados para sua aplicação. No entanto, deparamo-nos com este caso, dentre uma quantidade alarmante de outros, em que essa estrutura organizada a partir solidariedade orgânica é preterida em prol de uma aplicação do direito que se assemelha bem mais à das sociedades primitivas.

A concepção de Durkheim traz alguns elementos para a compreensão do caso. A contraposição entre o direito repressivo e o restitutivo e entre sua aplicação difusa e especializada ilumina a problemática: no seio de uma sociedade em que o direito deveria funcionar de uma forma, encontramos persistentemente ele funcionando de outra. No entanto, o caráter teleológico da teoria durhkeimiana faz com que essa teoria não seja capaz de explicar a convivência de elementos característicos destes dois tipos de sociedade convivendo lado a lado.


Modernidade periférica

Sergio Tavolaro argumenta contra conceituações feitas pelo que ele chama de sociologia da dependência e sociologia da herança patriarcal-patrimonial quanto à inserção do Brasil na modernidade (TAVOLARO, 2005). Ambas correntes, argumenta ele, salientam o aspecto singular (TAVOLARO, 2005:16) da modernidade brasileira, que se caracterizaria como uma semi-modernidade ou modernidade periférica, em contraposição ao status de modernidade atingido pelos países centrais. No Brasil, “diferenciação social, racionalização da normatividade e separação entre o público e privado – os três pilares da sociabilidade moderna, de acordo com esse discurso – não teriam se consolidado” (TAVOLARO, 2005:11).

Tavolaro argumenta que, mesmo entre os países centrais, há grandes variações (temporais e territoriais) quanto ao atingimento desses critérios e que, portanto, não faria sentido falar de modernidade central e periférica, mas de modernidades múltiplas (TAVOLARO, 2005:11). No entanto, entendemos que há uma série de características - históricas e atuais - que perpassam os países da América Latina e que são totalmente alheias às nações da Europa e aos EUA. Nesse sentido, embora reconheçamos o argumento de Tavolaro que o processo modernizatório não é homogêneo em nenhum lugar, cabe falar-se de modernidade periférica para descrever uma série de características comuns aos países latino americanos.


Sobreintegração e subintegração

Os conceitos desenvolvidos por Marcelo Neves de subintegração e sobreintegração podem ser instrumentais para a análise do caso. Para Neves, na modernidade periférica, o sistema do direito não se configura de maneira autorreferente. De fato, em seus processos prevalecem códigos alheios ao seu - lícito/ilícito - (NEVES, 2006:239), principalmente o do sistema da economia: ter/não ter. Este fenômeno Neves batiza de alopoiese social do direito. A consequência desse processo é a desjuridificação fática: “prevalecem formas unilaterais de legalismo e impunidade em uma relação paradoxal de complementaridade” (NEVES, 2006:240). Esta fragilidade do sistema do direito frente aos particularismos e aos códigos de outros sistemas, associada à realidade da brutal exclusão social, acaba por impedir a generalização institucional da cidadania (NEVES, 2006:239). Desta situação decorrem duas formas de integração dos indivíduos nos sistemas sociais: a subintegração e a sobreintegração.

Os subintegrados não percebem os direitos garantidos a todos pela ordem constitucional e legal, mas é requerido a ele o cumprimento dos deveres prescritos nestes normativos. “Embora lhes faltem as condições reais de exercer os direitos fundamentais constitucionalmente declarados, não estão liberados dos deveres e responsabilidades impostas pelo aparelho coercitivo estatal, submetendo-se radicalmente às suas estruturas punitivas” (NEVES, 2006:249).

Os sobreintegrados, por sua vez, gozam dos direitos constitucionalmente garantidos, mas permanecem impunes relativamente ao descumprimento dos deveres. “Sua postura em relação à ordem jurídica é eminentemente instrumental: usam, desusam e abusam-na conforme as constelações concretas e particularistas dos seus interesses” (NEVES, 2006:250).

Em relação ao caso, fica claro um aspecto desta dinâmica complementar entre sobreintegração e subintegração. Ao filmarem e publicizarem seu ato de tortura, o tatuador e o vizinho demonstram a expectativa de impunidade por parte dos sobreintegrados. Ademais, como indicativo da fragilidade do Estado frente aos particularismos, a resposta de muitas pessoas ao caso é uma inversão da concepção de Neves de impunidade.  Dessas reações (exemplificadas em comentários às notícias sobre o caso, anexados) pode-se perceber um discurso que, dada a incapacidade de controle social do Estado, a impunidade seria o privilégio dos subintegrados, tal como o jovem suspeito de furtar a bicicleta, e que a ação dos torturados seria punição justificável e necessária, frente a essa fragilidade estatal.

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Outra contribuição de Neves é a consideração sobre o papel do legalismo e sua aparentemente paradoxal relação com a impunidade. “Seria possível afirmar-se que a impunidade sistemática estaria em contradição com o legalismo. Em uma análise mais cuidadosa, porém, verifica-se que essa contradição é apenas aparente. Enquanto a inflexibilidade legalista dirige-se primariamente aos subintegrados, a impunidade está vinculada ao mundo de privilégios dos sobreintegrados juridicamente” (NEVES, 2006:255).

No caso, esta dinâmica de legalismo e privilégio fica evidente no tratamento que o sistema jurídico tem dado à situação até o momento.  A promotora que ofereceu denúncia contra Maycon e Ronildo não considerou que se tratasse de uma ocorrência de tortura, e sua justificativa para tal pode ser vista como sendo de tônica legalista: “Na verdade o conceito usual de tortura é bem diferente do que a lei diz. É um crime que só pode ser praticado por determinados agentes. Por exemplo: um diretor de escola mantém um aluno em cárcere privado e comete uma série de violações. Isso é tortura. O adolescente foi amarrado num cômodo e permaneceu sob o comando deles, mas não estava sob o poder deles no que diz a lei. O entendimento, nesse caso, não pode ser amplo”. A mãe da jovem vítima, em declaração, resume claramente a relação entre sobreintegração e subintegração e legalismo: “É muito fácil dizer que não é tortura para filho de pobre. Se fosse filho de rico, seria tortura”.


Considerações finais

O caso e a recorrência de episódios de brutalidade trazem à baila uma discussão sobre a persistência da barbárie e a convivência desta com uma proposta justiça moderna enquanto sistema restitutivo não plenamente realizada na modernidade periférica. Para compreendê-los, portanto, fizemos uso de alguns conceitos da Sociologia capazes de destrinchar a problemática. De Durkheim, abordamos sua análise de como o direito opera no que ele chama de sociedades primitivas e sociedades modernas, e identificamos que o caso e seu contexto apresentam exatamente uma combinação de cada uma destas.

De Tavolaro, retomamos uma discussão que contextualiza o caso no tocante às razões pelas quais, no Brasil e em outras áreas do globo entendidas como modernidade periférica, se fez possível este amálgama de características pré-modernas e modernas, diferentemente do ocorrido na modernidade central. Finalmente, a partir de Neves, compreendemos as consequências deste processo modernizatório periférico: a não-generalização da cidadania, a fraqueza do Estado e do direito frente aos particularismos e as situações de sobreintegração e subintegração dos indivíduos, e identificamos, no caso da tatuagem na testa, ilustrações claras destes processos.


Bibliografia

DURKHEIM, Émile. Da divisão do trabalho social. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999.

TAVOLARO, Sergio. Existe uma modernidade brasileira? Reflexões em torno de um dilema sociológico brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 20, nº. 59, outubro. 2005.

NEVES, Marcelo. Entre Têmis e Leviatã: uma relação difícil: O Estado Democrático de Direito a partir e além de Luhmann e Habermas. 1ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/tatuador-e-preso-por-tortura-apos-escrever-eu-sou-ladrao-e-vacilao-na-testa-de-adolescente-no-abc.ghtml

http://brasil.elpais.com/brasil/2015/07/09/politica/1436398636_252670.html

http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/06/1895489-sem-citar-tortura-promotora-denuncia-suspeitos-de-tatuar-testa-de-jovem.shtml

http://www.metropoles.com/brasil/mae-de-rapaz-tatuado-na-testa-se-revolta-com-decisao-de-promotora


Anexo: comentários às notícias por visitantes dos portais

1. Comentários à notícia "Adolescente tatuado na testa é internado em clínica particular de recuperação, diz advogado", publicada no portal G1

2. Comentários à notícia "Mãe de rapaz tatuado na testa se revolta com decisão de promotora", publicada no portal Metrópoles

3. Comentários à notícia "Sem citar tortura, promotora denuncia dupla que tatuou testa de adolescente", publicada no portal Folha de S. Paulo

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CUNHA, Walter. Três conceitos jurídico-sociológicos para a compreensão do caso da tatuagem na testa. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5726, 6 mar. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72342. Acesso em: 22 dez. 2024.

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