Trata-se de notícia crime não qualificada quanto à origem (notitia criminis inqualificada), ou seja, inexiste a identificação do responsável por aquela informação de suposta prática criminosa. Por isso, vulgarmente chamada de “denúncia anônima” ou delação apócrifa. É normalmente realizada por meio dos sistemas de “disque-denúncia”[1] dos órgãos de investigação preliminar.
A questão que surge é se esta modalidade de notícia crime, justamente por ser anônima (não identificada) e, portanto, extremamente precária, bastaria para a instauração imediata de inquérito policial. Conforme precedentes do Supremo Tribunal Federal, “nada impede a deflagração da persecução penal pela chamada ‘denúncia anônima’, desde que esta seja seguida de diligências realizadas para averiguar os fatos nela noticiados”.[2] Ou seja: a formal instauração de inquérito policial nesses casos exige prévia análise de plausibilidade daquela notícia, mesmo se houver requisição ministerial[3].
Necessário, portanto, que a autoridade policial, ao receber delação apócrifa, efetue diligências mínimas e indispensáveis para conferir verossimilhança aos fatos narrados, sem o que impossível a deflagração de investigação criminal oficial.[4] Tal providência é plenamente justificável diante da fragilidade da notícia apresentada em contraposição à gravidade decorrente de procedimento formal de investigação, especialmente para a situação do sujeito investigado (alvo constante de estigmas e rotulações).
Em suma, tem-se que “a jurisprudência do STF é unânime em repudiar a notícia-crime veiculada por meio de denúncia anônima, considerando que ela não é meio hábil para sustentar, por si só, a instauração de inquérito policial. No entanto, a informação apócrifa não inibe e nem prejudica a prévia coleta de elementos de informação dos fatos delituosos (STF, Inquérito 1.957-PR) com vistas a apurar a veracidade dos dados nela contidos”.[5] Não é diferente o posicionamento do STJ.[6]
Sublinhe-se, por fim, que a não realização desses atos investigativos prévios à instauração de inquérito policial com o fito de estabelecer plausibilidade mínima à notícia apócrifa em obediência à necessária justa causa investigativa pode ensejar o trancamento do inquérito[7] ou, se já deflagrada ação processual penal, a nulidade do respectivo processo[8], ainda mais quando desrespeitados critérios legais estabelecidos para as medidas excepcionais de busca por fontes de prova[9].
Notas
[1] Vide, a esse respeito, a Lei nº 13.608, de 10 de janeiro de 2018, que dispõe sobre o serviço telefônico de recebimento de denúncias e sobre recompensa por informações que auxiliem nas investigações policiais.
[2] STF – Segunda Turma – HC n. 99.490/SP – Rel. Min. Joaquim Barbosa – j. em 23.11.10 – DJe 020 de 31.01.2011.
[3] “(...) ainda que a instauração do inquérito tenha sido determinada pelo Ministério Público, o dever de verificar a procedência das informações recai sobre todos os órgãos públicos com atribuição investigativa penal. A notitia criminis apócrifa, por si só, não supre a necessidade de verificação mínima da existência de justa causa para a deflagração de inquérito policial ou a determinação pelo Parquet de sua instauração” (STJ – Quinta Turma – RHC n. 64.504/SP – Rel. Min. Joel Ilan Paciornik – j. em 21.08.2018 – DJe de 31.08.2018).
[4] “No caso concreto, ainda sem instaurar inquérito policial, policiais civis diligenciaram no sentido de apurar a eventual existência de irregularidades cartorárias que pudessem conferir indícios de verossimilhança aos fatos. Portanto, o procedimento tomado pelos policiais está em perfeita consonância com o entendimento firmado no precedente supracitado, no que tange à realização de diligências preliminares para apurar a veracidade das informações obtidas anonimamente e, então, instaurar o procedimento investigatório propriamente dito” (STF – Primeira Turma – HC n. 98.345/RJ – Rel. Min. Marco Aurélio / Rel. Min. p/ acórdão Dias Toffoli – j. em 16.06.2010 – DJe 173 de 16.09.2010) / “No caso, os policiais civis, em conjunto com fiscais da vigilância sanitária, dirigiram-se ao estabelecimento comercial do ora paciente, após terem sido realizadas diligências preliminares
em virtude de três denúncias anônimas, nas quais foram informadas a prática dos crimes de falsificação, corrupção, adulteração ou alteração de produto destinado a fins terapêuticos ou medicinais. Nesse passo, descabe falar em nulidade do inquérito, pois o procedimento policial somente foi encetado após a realização de apuração preliminar” (STJ – Quinta Turma – HC 452760/PR – Rel. Min. Ribeiro Dantas – j. em 21.06.2018 – DJe de 28.06.2018).
[5] STF – Segunda Turma – HC n. 107.362/PR – Rel. Min. Teori Zavaski – j. em 10.02.15 – DJe 039 de 27.02.2015.
[6] STJ – Quinta Turma – RHC n. 91.145/SP – Rel. Min. Felix Fischer – j. em 26.06.2018 - DJe de 02.08.2018 / STJ – Sexta Turma – RHC n. 59.542/PE – Rel. Min. Rogerio Schietti Cruz – j. em 20.10.2016 – DJe de 14.11.2016 / STJ - Quinta Turma – HC 121340/AM - Rel. Min. Jorge Mussi – j. em 01.03.2011 – DJe de 25.04.2011.
[7] “(...) In casu, o inquérito policial não logrou estabelecer o, minimamente seguro, liame entre o comportamento do paciente e as imputações. Ordem concedida para determinar o trancamento do inquérito policial n. 00127485020128260000, em trâmite no Tribunal de Justiça de São Paulo, sem prejuízo de abertura de nova investigação, caso surjam novos e robustos elementos para tanto” (STJ – Sexta Turma – HC n. 242.686/SP – Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura – j. em 16.04.2013 – DJe de 24.04.2013).
[8] “(...) A notitia criminis apócrifa, por si só, não supre a necessidade de verificação pelos órgãos públicos da mínima da plausibilidade da imputação para a deflagração ou determinação de instauração de inquérito policial. Recurso em habeas corpus provido para reconhecer a nulidade na Ação penal n. 0098586-10.2009.8.26.0050 (050.09.098586-9), desde a decisão que determinou a instauração do inquérito policial com base exclusivamente em denúncia anônima e sem a realização de nenhuma investigação prévia” (STJ – Quinta Turma – RHC n. 64.504/SP – Rel. Min. Joel Ilan Paciornik – j. em 21.08.2018 – DJe de 31.08.2018).
[9] “Elementos dos autos que evidenciam não ter havido investigação preliminar para corroborar o que exposto em denúncia anônima (...) A interceptação telefônica é subsidiária e excepcional, só podendo ser determinada quando não houver outro meio para se apurar os fatos tidos por criminosos (...)Ordem concedida para se declarar a ilicitude das provas produzidas pelas interceptações telefônicas, em razão da ilegalidade das autorizações, e a nulidade das decisões judiciais que as decretaram amparadas apenas na denúncia anônima, sem investigação preliminar. Cabe ao juízo da Primeira Vara Federal e Juizado Especial Federal Cível e Criminal de Ponta Grossa/PR examinar as implicações da nulidade dessas interceptações nas demais provas dos autos” (STF – Segunda Turma – HC n. 108.147/PR – Rel. Min. Cármen Lúcia – j. em 11.12.2012 – DJe 022 de 31.01.2013).