No recente périplo presidencial aos Estados Unidos, as brasileiras e os brasileiros tomamos conhecimento de que o governo liberou, unilateralmente, a concessão de vistos nacionais a norte-americanos, canadenses, japoneses e australianos, sem qualquer contrapartida, o que já foi oficializado via Decreto n. 9.731, de 16 de março passado, a vigorar em 17 de junho próximo.
A situação leva a importante questionamento sobre a licitude do ato porque, neste caso, o tratamento que vem sendo concedido às regras sobre reciprocidade que, vez por outra, são oriundas de tratados internacionais, nem sempre provêm de tratados, mas de normas consuetudinárias reconhecidas como válidas entre as nações envolvidas.
Neste tocante, é importante esclarecer que, para a compreensão da literatura internacionalista, ancorada na jurisprudência especializada, um costume internacional, ao contrário, por exemplo, de um mero uso, é fonte primária de Direito, consoante disposição do art. 38.1b do Estatuto da Corte Internacional de Justiça de 1945, promulgada no Brasil pelo Decreto 19.841 de 22 de outubro de 1945.
A concepção do costume como fonte primária de Direito Internacional decorre da percepção fática de que o próprio Direito Internacional é produto dos costumes. Isso infere, por outro lado, que um costume não é uma prática qualquer, mas uma norma jurídica efetiva, que reúne, para sua configuração, dois elementos inerentes à sua natureza: uma conduta geral reiterada no tempo; e uma compreensão entre as partes envolvidas de que aquela prática geral reiterada se constitui realmente em uma norma de caráter vinculante, em “prova de uma prática geral aceita como sendo o direito”, capaz de gerar consequências obrigacionais internacionais.
Assim, em tese, salvo um melhor juízo, para a isenção nacional da reciprocidade em prol dos norte-americanos, canadenses, japoneses e australianos, dever-se-ia proceder a um rigor minimamente semelhante ao rigor concebido aos tratados internacionais, requerendo, pelo menos, o referendo do Parlamento, o que não impede que, eventualmente, ainda que consumada para fins internacionais e domésticos, a matéria seja levada ao crivo do judiciário para verificação de suposta agressão ou não à soberania nacional.
O que não é possível é que essa importantíssima decisão recaia, única e exclusivamente, nas mãos do Chefe do Executivo, inclusive porque, no que pese o art. 84, VIII, da Constituição estabelecer competir privativamente ao presidente “celebrar tratados, convenções e atos unilaterais, sujeitos a referendo do Congresso Nacional”, o art. 49 da Carta reforça que é da competência exclusiva do Congresso Nacional “resolver definitivamente sobre tratados, acordos ou atos internacionais que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio nacional”.
Sabe-se que, recentemente, a Lei n. 13.445, de 24 de maio de 2017 (Lei de Migração), estipulou, no art. 9°, que regulamento disporá sobre “IV - hipóteses e condições de dispensa recíproca ou unilateral de visto e de taxas e emolumentos consulares por seu processamento”. Porém, é imperativo procurar saber se a hipótese realizada no périplo presidencial encontra âncora na teleologia da lei: primeiro porque parece que o objetivo da lei ao dispensar a reciprocidade foi viabilizar a concessão do visto, quando não em casos isolados, em situações em que a própria vulnerabilidade no entorno do solicitante torne-se, por si só, condição discriminatória, o que é rechaçado pela norma migratória (não sendo, definitivamente, o caso dos beneficiados com a propalada liberação); depois, porque mesmo que assim não fosse, lei nenhuma do país se sobrepõe à Constituição.
No caso específico, além da suposta ofensa à soberania brasileira, em demonstração explícita de subserviência internacional, está-se a abrir mão (é o que se diz na imprensa) de dezenas de milhões de reais anuais pagos pelas concessões dos vistos ora liberados pelos nacionais dos países favorecidos. Este ato internacional repercussivo de grave ônus financeiro não seria, por si só, suficiente para justificar que a matéria tivesse que ser encaminhada ao Congresso, com espeque no art. 49 da Constituição?