IV. O que não se pode (ou não se deve) exigir
Principiando pelo enfoque negativo, registramos que, a nosso sentir, não cabe exigir nem (i) a demonstração de uma repartição exata de custos entre os entes associados, tampouco (ii) que o benefício decorrente da associação seja, em termos absolutos ou proporcionais, idêntico entre todos. Expliquemo-nos.
Em relação ao primeiro ponto, se está diante, praticamente, de uma impossibilidade fática: pense-se, por exemplo, na tentativa de projetar, com precisão, a divisão das horas de trabalho de cada funcionário da concessionária entre os entes associados ou de identificar, na modelagem, aquele beneficiado por cada ínfima aquisição de material.
Ademais, mesmo que fosse possível precisar a parcela referível a cada associado, o detalhamento destes custos na modelagem do projeto, além de representar um esforço inútil, poderia fomentar futuras divergências entre os entes associados sobre o critério de rateio escolhido vis-à-vis os resultados concretos da concessionária, uma vez que projeções, por melhores que sejam, nunca se conformam integralmente com a realidade.
Do mesmo modo, também a equalização de benefícios, que de início pode parecer uma premissa razoável, se revela, analisada em contexto, uma exigência despropositada.
De fato, além de não haver base legal para que gestores ou órgãos de controle demandem que os entes consorciados ou convenentes tenham idêntico benefício da cooperação, deve-se reconhecer que a ausência de igualdade nos ganhos com a gestão associada consiste em resultado natural e esperado de uma associação entre entes desiguais.
Permitimo-nos recorrer a um exemplo para facilitar a compreensão desta afirmação: suponha-se que a concessão de determinado serviço pelos municípios “A”, de 500.000 habitantes, e “B”, de 200.000 habitantes, se contratada de forma isolada por cada um, demandaria o pagamento de uma contraprestação mensal, respectivamente, de R$ 600 mil e R$ 300 mil.
Imagine-se que os gestores responsáveis, entretanto, antevejam a oportunidade de associação como meio de reduzir custos e fomentar sinergias na prestação do serviço, concluindo, a partir de análises técnicas e de negociações exaustivas, que a contratação pode ser realizada em conjunto (por um consórcio formado pelos dois municípios) por um valor mais atrativo, equivalente a R$ 700 mil/mês, definindo-se que R$ 510 mil seriam de responsabilidade de “A” e R$ 190 mil seriam de responsabilidade de “B”.
Neste caso, pode-se constatar que o benefício que A obtém da parceria se apresenta, em termos absolutos e proporcionais, menor do que o obtido por “B” (“A” economiza R$ 90 mil/mês, correspondentes a 15% do dispêndio original, ao passo que “B” economiza R$ 110 mil/mês, equivalentes a cerca de 37% da verba necessária para a contratação autônoma).
Neste contexto, indaga-se: poderia o gestor do município “A” ser questionado se a associação for concretizada nestes termos? Seria correto afirmar que o município “A” está pagando qualquer forma de subsídio ao município “B”?
A nosso ver, ambas as perguntas devem ser respondidas negativamente.
Com efeito, o gestor público de “A” conseguiu, por meio de uma estratégia constitucionalmente admitida e legalmente incentivada, uma economia significativa dos recursos públicos de seu município, não havendo, a princípio, nada que censure sua conduta.
Ressalte-se que procuramos, propositalmente, utilizar números no exemplo que demonstrassem uma circunstância recorrente na prática, qual seja, a de que existindo uma escala mínima ou ideal para viabilização de determinada infraestrutura, quanto mais distante um ente estiver deste parâmetro, maior será o benefício que obterá da associação com outros, e vice-versa.
De mais a mais, a capacidade de assunção de responsabilidades é diretamente proporcional à envergadura financeira e à saúde fiscal dos entes associados, o que, na prática, também tende a militar em favor de uma redução mais acentuada das responsabilidades dos entes de menor porte na entidade associativa.
Cuidando-se, portanto, de uma predisposição natural ou economicamente fundamentada, qualquer tentativa de forçar uma pretensa equalização provavelmente imporá um ônus financeiro desproporcional a alguns dos entes consorciados ou convenentes, o que pode, facilmente, inviabilizar o acordo, em prejuízo de todos.
Esclareça-se, adicionalmente, que não há qualquer subsídio envolvido na hipótese relatada no exemplo: as partes dividem (de forma não linear) ganhos decorrentes da associação, que não existiriam se esta não fosse concretizada, ou seja, não há um ganho atribuível a “A” ou “B”, mas um ganho conjunto, que necessita ser repartido numa negociação entre as partes.
Cremos que se justifica a ênfase dada a este ponto, pois interpretações rigoristas (repita-se, sem base legal) que pretendam impor rígidos limites a esta negociação terminam por gerar, invariavelmente, um receio nos gestores públicos responsáveis, o que pode paralisar, na origem, iniciativas auspiciosas à população.
V. O que se pode (ou se deve) exigir
Apresentada nossa opinião acerca de exigências indevidas, passamos a expor as balizas negociais que, a nosso sentir, se harmonizam ao ordenamento e às finalidades da gestão associada.
Essencialmente, pensamos que as instâncias de aprovação da parceria público-privada e os órgãos de controle devem exigir a comprovação (i) de que a execução associada das atividades seja mais vantajosa que a execução isolada e (ii) de que haja alguma relação próxima entre o parâmetro escolhido para o rateio e a natureza dos serviços a serem prestados.
Por princípio, dada as exigências de fundamentação do ato administrativo[22], não se vislumbra de que maneira uma parceria que não traga ganhos a determinado associado possa se justificar perante seus cidadãos. Recorde-se que a cooperação entre entes públicos não é um fim em si mesmo, mas um meio para se aperfeiçoar a prestação dos serviços estatais.
Se restar claro que um município poderia conceder autonomamente o serviço com menor custo, seu ingresso numa associação importaria, ao fim e ao cabo, numa transferência de renda de seus contribuintes para os de outras localidades, uma espécie de doação construída totalmente ao arrepio da legislação.
Saliente-se, todavia, que esta tende a ser uma hipótese bastante infrequente na prática, uma vez que a associação tem o potencial de gerar ganhos a todos os consorciados ou convenentes, ainda que, conforme explicamos no capítulo precedente, em graus diferentes a cada um.
Uma situação limítrofe diz respeito aos casos em que a prestação autônoma do serviço se mostraria mais econômica ao município, mas, ainda assim, por conta de externalidades ou outras condições peculiares, o ganho total do município com a associação justifique sua implementação.
De novo, vemo-nos constrangidos a recorrer a um exemplo: imagine-se que determinado município tenha a opção de implantar, por PPP, uma unidade de saúde que atenda adequadamente a sua população e que, após as análises financeiras pertinentes, se constate que esta alternativa seja menos dispendiosa do que a construção, por meio de consórcio público, de um grande hospital que atendesse sua população e a dos municípios circunvizinhos.
É possível que o gestor municipal, ao se deparar com este cenário, note, porém, que na ausência de oferecimento de um atendimento adequado de saúde numa unidade regional, moradores de cidades próximas iriam procurar atendimento na unidade de saúde a ser implantada no município, saturando-a e comprometendo a qualidade dos serviços prestados e o orçamento inicialmente previsto.
Pode-se dizer que a gestão associada, neste caso, se justifica por uma inviabilidade fática da prestação autônoma do serviço, ainda que esta opção seja, em teoria, mais econômica. Evidentemente, haverá aí a necessidade de um esforço argumentativo maior por parte do gestor, a fim de convencer os stakeholders de que esta é, realmente, a opção que melhor atende aos interesses dos munícipes.
Por fim, parece-nos imprescindível que o parâmetro utilizado para o rateio e a natureza do serviço prestado se inter-relacionem em algum grau; cuida-se, aqui, fundamentalmente, da razoabilidade que deve nortear a eleição do critério de rateio.
Na Cartilha de Consórcios Públicos de Saneamento Básico, publicada pela Funasa[23], constam alguns exemplos de regras de rateio adotadas em experiências concretas que, apesar de se referirem a um setor específico e não envolverem contratos de PPP, representam uma amostra interessante de critérios a serem considerados em futuras parcerias; no rol ali descrito, são citados o número de habitantes de cada município, o número de ligações de água e o volume de resíduos produzidos.
De fato, o critério populacional – ou de número de usuários, quando o serviço for divisível – parece combinar justiça fiscal e simplicidade de apuração numa medida interessante, que habilita sua utilização em muitas das iniciativas de associação que se possa conceber, sem prejuízo, evidentemente, dos parceiros buscarem critérios mais específicos ao serviço concedido (para não ficarmos restritos a exemplos do setor de saneamento, cite-se, a título de ilustração, a aparente razoabilidade da utilização do número de pontos de luz como critério de rateio em PPPs de iluminação pública).
O que não pode ser aceito, em qualquer caso, é que o parâmetro escolhido fuja à racionalidade ou a realidade da prestação dos serviços, como o seria o caso, por absurdo, de uma PPP intermunicipal de serviços educacionais que adotasse o número de automóveis ou de árvores em cada município como critério de rateio.
Registre-se, entretanto, que salvo no caso de arranjos claramente despropositados, convém conceder o benefício da dúvida aos gestores públicos em situações discutíveis, uma vez que, afinal, o critério de rateio resulta de uma negociação entre os entes, calcada não apenas em cálculos teóricos ou ilações abstratas, mas, também e principalmente, na efetiva capacidade de contribuição de cada ente consorciado ou conveniado.
VI. Conclusão
Os instrumentos de gestão associada, em especial os consórcios públicos, e as parcerias público-privadas têm obtido, cada qual em sua esfera, algum sucesso no aprimoramento da gestão pública no país, mas a conciliação dos dois institutos em projetos concretos, em que pese um potencial promissor, ainda se mostra uma realidade distante.
Acreditamos que, sem embargo de alterações normativas que poderiam ser úteis à segurança jurídica de futuros projetos, os entes públicos ressentem-se de maior aprofundamento do tema na doutrina, razão pela qual espera-se que cada vez mais autores se debrucem sobre as questões aqui apresentadas.
Notas
[1] Artigo 241 da Constituição Federal: “A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos”.
[2] Insta esclarecer que consórcios públicos já existiam antes da lei regulamentadora e da própria emenda constitucional (e alguns destes continuam em operação, não submetidos à legislação posterior). De fato, apesar da nova disciplina constitucional e legal ter contribuído para disseminação desta tecnologia jurídico-institucional, não se entendia antes ser proscrita a associação entre entes públicos.
[3] A Lei 11.107/05 não traz definições de consórcio público ou convênio de cooperação, o que é feito apenas por seu decreto regulamentador: segundo este instrumento, consórcio público seria a “pessoa jurídica formada exclusivamente por entes da Federação, na forma da Lei no 11.107, de 2005, para estabelecer relações de cooperação federativa, inclusive a realização de objetivos de interesse comum, constituída como associação pública, com personalidade jurídica de direito público e natureza autárquica, ou como pessoa jurídica de direito privado sem fins econômicos” e o convênio de cooperação, o “pacto firmado exclusivamente por entes da Federação, com o objetivo de autorizar a gestão associada de serviços públicos, desde que ratificado ou previamente disciplinado por lei editada por cada um deles”.
[4] Mapeamento dos Consórcios Públicos Brasileiros. Confederação Nacional dos Municípios, out. 2018. Disponível em: <https://www.cnm.org.br/cms/biblioteca/Mapeamento%20dos%20cons%C3%B3rcios%20p%C3%BAblicos%20 brasileiros.pdf>. Acesso em 23 mar. 2019.
Interessante notar que uma impressão corrente, confirmada por este estudo, é de que há uma concentração de consórcios no setor de saúde (38% do total), o que se explica por motivos relacionados à governança do Sistema Único de Saúde (SUS).
[5] Estas duas modalidades vieram se somar à concessão comum, disciplinada pela Lei nº 8.987/95.
[6] Com efeito, trata-se aqui de definição legal, porém estrita, da expressão parceria público-privada, uma vez que, de um ponto de vista doutrinário, não seria equivocado denominar de parceria público-privada as diferentes formas de cooperação entre o Estado e particulares. Ao longo do texto, contudo, esclarece-se que a expressão deve ser entendida no seu sentido mais específico.
[7] Lei nº 11.079/04: “Art. 2o. Parceria público-privada é o contrato administrativo de concessão, na modalidade patrocinada ou administrativa. § 1o Concessão patrocinada é a concessão de serviços públicos ou de obras públicas de que trata a Lei no 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, quando envolver, adicionalmente à tarifa cobrada dos usuários contraprestação pecuniária do parceiro público ao parceiro privado. § 2o Concessão administrativa é o contrato de prestação de serviços de que a Administração Pública seja a usuária direta ou indireta, ainda que envolva execução de obra ou fornecimento e instalação de bens”.
[8] A própria Lei 11.079/04 veda a celebração de parcerias cujo valor seja inferior a R$ 10.000.000,00 (dez milhões de reais). Na prática, porém, o problema não está tanto em limitações legais, mas na inviabilidade econômica da utilização deste mecanismo contratual – que possui, necessariamente, altos custos de transação – para empreendimentos que não importem na aplicação de recursos significativos. Na sequência do texto, abordamos também a restrição derivada dos altos custos fixos de operação de determinas infraestruturas.
[9] Referimo-nos à hipótese específica descrita no texto. São conhecidas iniciativas próximas, porém distintas, como de companhias estaduais de saneamento, notadamente a COMPESA e a CESAN, que delegaram, por PPP, parcela do objeto para que foram contratadas pelos municípios (não há aí o consórcio público), e de consórcios públicos, como o Consórcio de Transporte Grande Recife, que delegaram serviços por meio de concessão comum (neste caso, falta a PPP).
[10] Projeto de Lei 1.071/1999. Câmara dos Deputados. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb /fichadetramitacao?idProposicao=16220>. Acesso em: 23 mar. 2019.
[11] Projeto de Lei 2.546/2003. Disponível em: <https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/ficha detramitacao?idProposicao=144047>. Acesso em: 23 mar. 2019. Como se observa, o projeto foi apresentado em novembro de 2003.
[12] Com efeito, parece haver, neste ponto, uma efetiva exorbitância ou impropriedade do decreto, dado que a lei federal regulamentada se referia, em diferentes passagens, tanto a “serviços públicos” quando a “serviços públicos custeados por tarifas ou outros preços públicos”, denotando que a remuneração por tarifa ou preço público não seria uma condição essencial da noção de serviço público.
[13] Ao contrário do que ocorre com os convênios de cooperação, alternativa proscrita para a delegação de serviços por meio de PPP, dado que a própria definição de convênio de cooperação inclui o conceito de serviço público.
[14] Dependendo de como se interpretar o conceito, o objeto das concessões patrocinadas ainda poderia ser considerado serviço público, uma vez que remunerado, em parte, por tarifa.
[15] Artigo 34: “O contrato de programa continuará vigente mesmo quando extinto o contrato de consórcio público ou o convênio de cooperação que autorizou a gestão associada de serviços públicos”.
[16] §1º do artigo 8º da Lei 11.107/05. Maria Sylvia Zanella de Pietro considera natural a exceção aos serviços custeados por tarifas ou outros preços públicos, “uma vez que, nestes casos, os recursos não são provenientes do orçamento do ente consorciado”. DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública: concessão, permissão, franquia, terceirização, parceria público-privada e outras formas. 6ª ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 245.
[17] § 1º do artigo 13 do Decreto 6.107/07.
[18] Artigo 16 do Decreto 6.107/07.
[19] Inciso V, da alínea “c”, do inciso I do artigo 10 da Lei nº 11.079/04.
[20] Na utilização do termo rateio ao longo do trabalho não se deve ler uma referência ao denominado contrato de rateio; sem entrar numa discussão que escapa a nosso objetivo, ressalte-se apenas que, em determinados casos, aventa-se a possibilidade de que a transferência dos recursos - pagamento pela prestação dos serviços - se dê no âmbito do contrato de programa.
[21] Caberia falar, mais propriamente, em teto da remuneração, uma vez que os contratos comumente trazem a vinculação de parcela da contraprestação ao desempenho efetivamente apurado.
[22] “Sendo um elemento calcado em situação anterior à prática do ato, o motivo deve sempre ser ajustado ao resultado do ato, ou seja, aos fins a que se destina. Impõe-se, desse modo, uma relação de congruência entre o motivo, de um lado, e o objeto e a finalidade, de outro”. CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 30 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2016. p. 123.
[23] Cartilha de Consórcios Públicos de Saneamento Básico: explicitando os caminhos, as experiências e as vantagens da cooperação interfederativa no saneamento / Ministério da Saúde, Fundação Nacional de Saúde; Universidade Federal do Rio de Janeiro.– Rio de Janeiro: UFRJ, 2017. p. 45.