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Do discurso policial na sociedade de risco

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5 DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE

Como dito acima, o uso progressivo da força não pode ser depurado da ação comunicativa policial, nas hipóteses em que o atingido se porta violentamente.

Aqui vamos chamar de uso progressivo da força horizontal aquele que vai se intensificando conforme o desenrolar do atendimento: a ordem verbal reiterada e não atendida deve ser seguida da contenção física, com uso de algemas, inclusive, se necessário.

Já ao uso da força de forma vertical, assim entendemos, é o que deve sempre ocorrer de forma pontual, incisiva, com superioridade razoável de força. Não é aceitável que uma equipe policial munida de revólveres obsoletos receba a missão de prender uma violenta quadrilha de assaltantes de banco. No caso do uso progressivo vertical, a Polícia deve guardar uma razoabilidade ante o perigo iminente, preservando sua condição de superioridade, sempre.

Por outro lado, o bem jurídico maior sempre deve ser a vida humana, sendo injusto subvalorizar da vida do policial, como o fazem os defensores do horrendo discurso de que o policial sempre deve esperar o primeiro ataque, e que não possa adotar todas as providências necessárias a preservar sua vida, com antecipação, inclusive.

O histórico de violência do atingido pelo ato policial não pode ser desconsiderado e, naquela oportunidade, autoriza presumir que a produção violenta do risco social será reiterada. Afinal, estivesse o atingido dissuadido dessa ideia, teria ele próprio, com antecipação, ofertado sua rendição e se submetido às leis que imperam no país.

É fato que o tratamento dispensado a criminosos não violentos não pode encobrir atos comunicativos abusivos, mas é questionável que a falta de um protocolo de ações, como, por exemplo, no caso de uso de algemas, acaba criando situações que terminam desaguando em punições injustas aos policiais, que se veem obrigados a uma exposição irrazoável ao risco de reação violenta do atingido.

Inegavelmente, há uma ocorrência mais intensa de crimes não violentos entre os integrantes dos estratos mais abastados da sociedade. No entanto, aceitar que o homem que subtrai a merenda escolar de milhares de crianças não receba o mesmo tratamento de quem empunha uma arma para roubar um celular é apenas eufemizar a gritante desproporcionalidade entre os atos comunicativos e o risco criado.


6 DO CONTROLE DO DISCURSO POLICIAL

O professor Rafael de Carvalho Missiunas [3] leciona que “a Constituição Federal instituiu o Controle Externo da Atividade Policial, no inciso VII, do seu artigo 129, remetendo à legislação complementar da União e dos Estados, de iniciativa facultada aos Procuradores-Gerais de cada Ministério Público, isto é, as leis orgânicas dos Ministérios Públicos da União e dos Estados da Federação, regulamentar a forma de efetivação e realização do referido controle externo.” E acrescenta que “a legislação brasileira não definiu exatamente o conceito do controle externo da atividade policial, então, recorreremos à doutrina para tentar conceituá-lo.” Aduz, em seguida, ensinamento do professor Hugo Nigro Mazzilli (2003, p. 64) para quem esse controle externo “é um sistema de vigilância e verificação administrativa, teleologicamente dirigido à melhor coleta de elementos de convicção que se destinam a formar a opinio delicti do Promotor de Justiça, fim último do próprio inquérito policial”.

Já Herick Santos Santana [4], expõe que “pode-se definir controle na administração pública como sendo a faculdade que um determinado ente estatal tem de fiscalizar os seus próprios atos de gestão ou de outro ente, podendo se apresentar com sentido negativo ou positivo. Por sentido negativo entende-se o controle como sendo sinônimo de fiscalização, ou seja, quando a ação incide sobre pessoas. Por sentido positivo entende-se o controle capaz de realizar as atividades de gestão conforme o prévio planejamento, com vistas ao alcance dos objetivos.”

Não se busca aqui traçar uma crítica ao instituto do controle externo, mas apenas obtemperar que o sentido negativo desse controle hoje tem sido tão privilegiado que termina por se confundir com uma ação meramente correicional.

Dos atos comunicativos de investigação possíveis hoje, de um total de seis – oitiva de pessoas, diligências de campo, perícias, busca e apreensão, interceptação telefônica e prisão temporária – as três principais já são integralmente judicializadas, e são exatamente as medidas mais objetivamente eficazes para apontar a autoria de um delito.

Em outras palavras, não há mais investigação puramente policial no Brasil. Toda investigação tem o protagonismo direto do Ministério Público e do próprio Poder Judiciário. Mesmo assim, os baixos índices de resolução são atribuídos tão somente às Polícias.

Ocorrendo um excesso policial, rapidamente se pune o praticante, e não poderia ser diferente, mas não se tratam com a mesma rapidez as deficiências das instituições policiais, que, na grande maioria, ainda se materializam em “delegacias esquizofrênicas” [5].

O modelo policial – ciclo completo ou inquérito policial – é discutido com habitualidade pelos sociólogos, mas medidas efetivas, como investimentos em tecnologia, aprimoramento científico, gestão austera de recursos são deixadas a segundo plano.

A solução de um homicídio jamais estará condicionada ao modelo policial adotado, e será esclarecido tanto no ciclo completo quanto pelo inquérito policial, desde que implementadas ações efetivamente voltadas à pesquisa científica que é a investigação policial.

É necessário aceitar que a escolha do modelo de investigação no país hoje perpassa mais por brigas internas do que por uma real preocupação com a verdadeira eficiência dos atos comunicativos da Polícia. Enquanto isso, as instituições seguem descontroladas, e as eventuais punições dos que abusam desse descontrole são apresentados como símbolos equivocados de um aparente controle, quando em verdade são a própria prova do descontrole.

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7. DA CONCLUSÃO

O estudo ora apresentado, evidentemente, não é exaustivo, nem pretende sê-lo. Pretende apenas ser uma pequena contribuição à escassa produção de argumentos no seio das polícias.

Quase sempre as ações policiais são questionadas apenas sob os aspectos jurídicos, diante de premissas que fundamentam o processo, não a inquisição. Aspectos filosóficos e sociológicos dos atos policiais são preteridos, o que termina pro esvaziar discursos jurídicos que legitimem o agir policial.

Dessa forma, reconhece-se que é necessário uma revisão do agir policial, e se começa a buscar critérios jurídicos de aferição, alicerçados em doutrinas sociológicas, como legitimação dos atos comunicativos das polícias.

A legalidade, a isonomia e a proporcionalidade dos atos devem estar nas lentes dos que controlam as instituições policiais, devendo-se exigir desses próprios controladores atos que permitam às polícias agir sem as amarras da falta de estrutura e preparo humano, sob pena de a própria existência da instituição ser ilegal, não isonômica e redundar em atos não proporcionais aos fatos.


BIBLIOGRAFIA

1. CARDOSO, Henrique Ribeiro - Controle da Legitimidade da Atividade Normativa Das Agências Reguladoras, Lumen Juris, 2017.

2. ARAGÃO, L. M. C. Razão comunicativa e teoria social crítica em Jürgen Habermas. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1992.

3. ARAÚJO, I. L. "Habermas: o conceito de agir comunicativo". In: PAZ, F. (Org.). Utopia e modernidade. Curitiba: Editora da UFPR, 1994. p. 201-217.

4. CORREIA, Carlos Pinto. Uma Teoria da Justiça. Tradução. Lisboa: Editora Presença, 1993.

5. PISETTA, Almiro e ESTEVES, Lenita M.R. Uma Teoria da Justiça. Tradução. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2000 (4ª ed.)


Notas

1 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrick Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed Unesp, 2003, p. 115.

2 BECK, Ulrich. Liberdade ou Capitalismo: Ulrick Beck conversa com Johannes Willms. São Paulo: Ed Unesp, 2003, p. 206.

3 http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=5964, acesso em 01/04/2019, às 19h37min.

4 https://jus.com.br/artigos/26798/o-controle-externo-da-administracao-publica-no-brasil, acesso em 01/04/2019, às 19h45min.

5 Típicos ambientes propulsores de delírios sociais, em que pessoas são levadas a acreditar que para garantir direitos é preciso ofender direitos.

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Sobre o autor
Francisco Gerlanio Gomes dos Santos

Delegado de Polícia Civil, ex escrivão, com especialização em gestão de Segurança Pública.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SANTOS, Francisco Gerlanio Gomes. Do discurso policial na sociedade de risco. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5826, 14 jun. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73050. Acesso em: 2 nov. 2024.

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