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Direito das sucessões e a união estável: a constitucionalidade do artigo n. 1790 do Código Civil de 2002

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A inconstitucionalidade do artigo 1790

O artigo 1.790 do Código Civil enuncia que se o companheiro sobrevivente concorrer com filhos comuns, este terá o direito à quota de valor aos que os filhos leais haverem por direito. Já se concorrer com descendentes exclusivos do de cujus, será cabível ao convivente sobrevivente metade do que for de direito de cada um deles. Assim, de acordo com o inciso III, se o convivente concorrer com os outros sucessíveis parentes estes deverão receber 2/3. Já ao companheiro sobrevivente deverá ser destinado uma reserva de 1/3, para que não se coloque em posição superior à do cônjuge.

O artigo 1790 postula que os conviventes:

Se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma quota equivalente a que por lei for atribuída ao filho;

II- se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar -lhe -á a metade do que couber a cada um daqueles;

III - se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da herança;

IV- não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança

O Código Civil de 2002, na matéria relacionada à sucessão na união estável, recebera tratamento legislativo inadequado, com erros de colocação. É importante salientar que o referido artigo, inicialmente, não estava contido no texto original do projeto de lei de tal código, sendo que tal dispositivo fora incluído por força de emenda que foi apresentada perante o Senado Federal, e havendo a redação do dispositivo sofrido alteração na câmara dos deputados a fim de evitar o reconhecimento de inconstitucionalidade material. (Freitas, 2010)

A diferença de tratamento entre o companheiro e o cônjuge fez com que os doutrinadores alegassem a inconstitucionalidade do artigo referido, visto que este pôs a união estável numa posição inferior ao casamento. Assim, ao se realizar a analise do artigo 1790, constata-se a visível injustiça que é praticada por parte do legislador quando se compara com o tratamento concedido ao direito sucessório que é dado aos cônjuges. A concorrência com os outros parentes sucessíveis do autor da herança é muito maior no caso da união estável, o que ocasiona uma maior dificuldade de alcance no patrimônio hereditário. (Furtado, 2008).

Assim, com tal problema, constata-se um grande retrocesso, ao contrário do que se esperava como a vigência do novo Código Civil de 2002. Desta forma, mesmo o diploma civilista de 2002 ser bem didático e até mesmo de melhor compreensão que o Código Civil de 1916, parece que o atual despreocupou-se de solucionar os temas atuais. Assim, é veemente a desigualdade jurídica que há entre as pessoas que contraem casamento em comparação com aquelas que vivem de união estável, ainda mais no direito sucessório. ( Furtado, 2008).

O professor Guilherme Calmon Nogueira da Gama elucida críticas de ordem topográfica no que tange à colocação do tema no Código Civil, com problemas de alta gravidade, que beira até mesmo à inconstitucionalidade. O direito sucessório do companheiro é discriminatório quando comparado com a proteção dada ao cônjuge. Sendo assim, quando o sistema jurídico, através da constituição direciona a proteção jurídica à união estável, considerando-a uma forma alternativa de entidade familiar, ao lado do casamento, não se pode aceitar a diversidade de tratamento legislativo. ( Freitas, 2010).

A família como sendo a base da sociedade possui uma proteção especial do Estado. E se a união estável é considerada como entidade familiar, e estão praticamente equiparadas as famílias de casamento e também ás famílias informais, a diferenciação entre a posição sucessória do cônjuge supérstite e a do companheiro sobrevivente, além de contrariar a sociedade, fere os fundamentos constitucionais. (Oliveira, 2005)

O artigo 1790 do Código Civil pode ser considerado ofensivo à constituição, pois lesiona a igualdade de proteção a qual a lei deve conceder as mais diversas espécies de família, não se permitindo a família com vinculo de casamento ser superior às demais, da mesma forma, não seria também aceitável a família dos conviventes se sobrepor àquelas de vinculo conjugal. (Freitas, 2010)

Há quem defenda os adeptos da constitucionalidade do dispositivo que propõem que este não apresenta dissonâncias em relação aos valores constitucionais, com o argumento de que a constituição federal de 1988 em nenhum momento fez referência à igualdade de tratamento entre cônjuges e companheiros. portanto o casamento e a união estável não sendo a mesma coisa, há a defesa de que é legítimo que não mereçam tratamento igual. (Freitas, 2010).


ANÁLISE DE CASOS JURISPRUDENCIAIS

No Brasil a maioria das Cortes Estaduais de nosso país vinha entendendo por aplicar a íntegra do artigo 1790 do Código Civil de 2002. No Distrito Federal, até o presente momento permanece o entendimento da não presença de inconstitucionalidade. Vejam-se dois entendimentos do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios.

Este é o julgamento do Agravo de instrumento, processo nº 20160020068167 , do TJDFT:

AGRAVO DE INSTRUMENTO- INVENTÁRIO E PARTILHA - UNIÃO ESTÁVEL - COMPANHEIRO QUE CONCORRE COM DESCENDENTE DA AUTORA DA HERANÇA - ART. 1790, II, DO CC - APLICABILIDADE.

(...) 2. Entendimento da e. 5ª Turma Cível, no sentido de que "o tratamento diferenciado conferido pelo Código Civil à sucessão do companheiro/companheira não padece de inconstitucionalidade, porquanto a união estável não se equipara ao casamento, devendo a lei apenas facilitar a sua conversão neste, conforme preceitua o § 3º do art. 226 da Constituição da República. Por conseguinte, não se vislumbra violação ao princípio da isonomia"

3. Recurso conhecido e provido.

Este é o julgamento do processo número 2013061007897APC do TJDFT:

DIREITO CIVIL. SUCESSÃO DO COMPANHEIRO. ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL. TRATAMENTO DIFERENCIADO. ISONOMIA. CONSTITUCIONALIDADE.

I - A opção do legislador em dispensar tratamento diferenciado para a sucessão do companheiro não viola preceito constitucional, pois, embora tenha a Constituição Federal conferido à união estável o status de entidade familiar, não a equiparou ao matrimônio, tanto que prevê a necessidade de facilitação da sua conversão em casamento.

II - A mera constatação de que, nessa situação pontual, a norma confere mais vantagem à companheira, com reflexos na herança dos filhos, não conduz a inconstitucionalidade da regra, pois o ordenamento jurídico deve ser interpretado em toda sua integralidade e de forma sistemática.

III - Negou-se provimento ao recurso.

Nos tribunais estaduais averígua-se, inicialmente, um tipo de entendimento, que está sofrendo alterações com o tempo. É a compreensão da não ocorrência de inconstitucionalidade, veja-se, por exemplo, dois entendimentos de jurisprudência do Tribunal do Estado do Rio de Janeiro:

Este julgamento se deu através do Agravo de Instrumento n. 2003.002.14421,no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro:

Agravo de Instrumento. Inventário. Sucessão aberta após a vigência do Novo Código Civil. Direito Sucessório de companheiro em concurso com irmãos do obituado. Inteligência do art. 1790, III da novel legislação. Direito a um terço da herança. Inocorrência de inconstitucionalidade. Não há choque entre o Código e a Constituição. (...) As disposições do Código Civil sobre tais questões podem ser consideradas injustas, mas não contêm eiva de inconstitucionalidade. Provimento do recurso.”

Com estes entendimentos jurisprudenciais, podemos concluir que parte dos Tribunais apresenta receio de reconhecer a inconstitucionalidade do art. 1790 do Código Civil de 2002, mas pelo menos elucida em seus entendimentos a injustiça do dispositivo legal aos conviventes. Felizmente, tal entendimento sem a devida justiça está se modificando com o passar dos últimos anos.

Um bom exemplo é o entendimento do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, por meio do julgamento do Agravo de Instrumento n. 7000.95.24612:

Agravo de instrumento. Inventário. Companheiro sobrevivente. Direito à totalidade da herança. Colaterais. Exclusão do processo. Cabimento. A decisão agravada está correta. Apenas o companheiro sobrevivente tem direito sucessório no caso, não havendo razão para permanecer no processo as irmãs da falecida, parentes colaterais. A união estável se constituiu em 1986, antes da entrada em vigor do novo Código Civil. Logo, não é aplicável ao caso a disciplina sucessória prevista nesse diploma legal, mesmo que fosse essa a legislação material em vigor na data do óbito. Aplicável ao caso é a orientação legal, jurisprudencial e doutrinária anterior, pela qual o companheiro sobrevivente tinha o mesmo status hereditário que o cônjuge supérstite. Por essa perspectiva, na falta de descendentes e ascendentes, o companheiro sobrevivente tem direito à totalidade da herança, afastando da sucessão os colaterais e o estado. Além disso, as regras sucessórias previstas para a sucessão entre companheiros no novo Código Civil são inconstitucionais. Na medida em que a nova lei substantiva rebaixou o status hereditário do companheiro sobrevivente em relação ao cônjuge supérstite, violou os princípios fundamentais da igualdade e da dignidade. Negaram provimento.”

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Constata-se a mudança por parte deste Tribunal, pois ele não aplicou o texto da lei civil e adequou o caso concreto ao que é realmente é justo para a realidade social, e ainda foi além, por declarar a inconstitucionalidade do art. 1790 do Código Civil.

No âmbito dos tribunais superiores, o STF, inicialmente, decidia sua jurisprudência quanto ao tema para o não conhecimento de recursos extraordinários que viessem a abordar a inconstitucionalidade presente no artigo 1790. O entendimento de justificativa para tanto é que a questão era considerada como norma infraconstitucional, sendo no particular pertinente ao regime de bens do casamento e da união estável:

INSTRUMENTO. DIREITO DE HERANÇA. MEAÇÃO. COMPANHEIRA. MATÉRIA INFRACONSTITUCIONAL. OFENSA INDIRETA. RECURSO ESPECIAL IMPROVIDO. FUNDAMENTOS INFRACONSTITUCIONAIS DEFINITIVOS. AGRAVO IMPROVIDO.  I – O acórdão recorrido decidiu a questão com base em normas infraconstitucionais, no caso, o Código Civil. A afronta à Constituição, se ocorrente, seria indireta. II - Com a negativa de provimento ao recurso especial pelo Superior Tribunal de Justiça, os fundamentos infraconstitucionais que amparam o acórdão recorrido tornaram-se definitivos. III - Agravo regimental improvido.” (AI-AgR 699.561, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 1ª Turma, DJ 07.04.2011).

A partir do julgamento do RE nº 646.721, entretanto, foi reconhecida a repercussão geral da controvérsia:

UNIÃO ESTÁVEL – COMPANHEIROS – SUCESSÃO – ARTIGO 1.790 DO CÓDIGO CIVIL – COMPATIBILIDADE COM A CONSTITUIÇÃO FEDERAL ASSENTADA NA ORIGEM – RECURSO EXTRAORDINÁRIO – REPERCUSSÃO GERAL CONFIGURADA. Possui repercussão geral a controvérsia acerca do alcance do artigo 226 da Constituição Federal, nas hipóteses de sucessão em união estável homoafetiva, ante a limitação contida no artigo 1.790 do Código Civil.” (RE 646721 RG, Relator(a): Min. MARCO AURÉLIO, julgado em 10/11/2011, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-232 DIVULG 06-12-2011 PUBLIC 07-12-2011 )

Neste sentido, recentemente, o STF suspendeu o julgamento sobre tratamento diferenciado de cônjuge e companheiro no direito sucessório, a partir do pedido de vista do Ministro Dias Toffoli, o julgamento fora suspenso, do recurso extraordinário 878694, no qual se discute a legitimidade do tratamento distinto que é concedido ao cônjuge e ao companheiro, dado pelo artigo 1790 do Código Civil. Sabe-se que até o presente momento, sete ministros votaram pela presença de inconstitucionalidade da referida norma, com a justificativa de entendimento de que a Constituição Federal deve garantir a equiparação entre os regimes da união estável e do casamento no que tange ao regime de sucessões. Tal recurso obteve repercussão geral reconhecida pela Corte em abril de 2015. No caso concreto, em primeira instancia foi reconhecido que a companheira do de cujus era a herdeira universal dos bens do casal, ganhando, com isto, o tratamento igual ao que é concedido no casamento. Por sua vez, em segunda instancia, o Tribunal de justiça de Minas Gerais, entretanto, reformou a decisão de origem, e concedeu à companheira apenas o direito de um terço dos bens adquiridos de forma onerosa pelo casal, deixando o restante com os três irmãos do de cujus, por causa do reconhecimento da constitucionalidade do artigo 1791. A defesa da companheira, inconformada, interpôs recurso extraordinário perante o Supremo Tribunal Federal e contestou a decisão do tribunal de segunda instancia, argumentando que a Constituição Federal não apresenta a diferenciação de famílias que são constituídas por união estável e as que são feitas por casamento, mas que é certo que qualquer constituição familiar possui a mesma proteção estatal.

O ministro Luis Roberto Barroso, relator do caso, voltou, então, pela procedência de tal recurso, e sugeriu a aplicação da tese de que: “no sistema constitucional vigente é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no artigo 1.829 do Código Civil de 2002”. O Ministro recordou que o regime sucessório sempre fora ligado à noção de família e que a noção tradicional familiar é relacionada à de casamento, entretanto, tal modelo sofreu diversas alterações, sobretudo no século XX, momento em que o laço matrimonial passou a ser substituído pela afetividade e por algum projeto de vida em comum.

Neste sentido, o Ministro Barroso, afirmou que através das leis 8.971/1994 e 9.278/1996, a legislação brasileira estendeu aos companheiros os mesmos direitos garantidos ao cônjuge, tendo por base o entendimento constitucional de que ambos merecem a mesma proteção legal para os direitos sucessórios. Entretanto, entrou em vigor o Código Civil de 2002, oriundo de um projeto o qual era discutido desde 1975, momento em que as relações entre homem e mulher possuíam ainda conotações de cunho conservador, restituindo a desequiparação entre esposa e companheira, o que consistiu num retrocesso de tal avanço igualitário que foi produzido pelas Leis 8.971 e 9.278, afirmou o Ministro.

Nesta orientação, o Ministro Luís Roberto defendeu que a ideia de relação provinda do casamento apresenta peso diferente daquela que provém de união estável, sendo incompatível com a Constituição Federal de 1988, por violar os princípios da dignidade da pessoa humana, da igualdade e da proteção da família. Além disso, tal norma também viola o princípio da vedação ao retrocesso, e desequiparar o que fora equiparado já por efeito da constituição, constitui uma hipótese de retrocesso o qual a própria carta proíbe. Assim explicou o ministro que, com isto, pode-se considerar o Código Civil anacrônico que implementou retrocesso.

Por todo o exposto o ministro proferiu seu voto para a inconstitucionalidade do artigo 1.790 , e que a modulação dos efeitos decisórios para que não alcance sucessões as quais já tiveram sentenças transitadas em julgado ou partilhas extrajudiciais com escritura pública. Neste sentido, acompanharam o Relator os ministros Edson Fachin, Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux, Celso de Mello e Cármen Lúcia.

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Sobre os autores
João Costa Neto

Mestrando em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de Brasília (UnB) (2012), sob a orientação do Ministro Gilmar Ferreira Mendes, do Supremo Tribunal Federal. Mestrando em Direito Romano pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco/Universidade de São Paulo (USP) (2012). Bacharel (2010) e Licenciado (2011) em Filosofia pela Universidade de Brasília (UnB). Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Brasília (UCB) (2011). Foi, durante um ano, aluno especial do Mestrado em Filosofia da Universidade de Brasília (UnB). Student Member da Society for the Promotion of Roman Studies (Fundada em 1910) e da Society for the Promotion of Hellenic Studies (Fundada em 1879). É advogado em Brasília.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA NETO, João ; TELHADO, Liellen Santana Cruz. Direito das sucessões e a união estável: a constitucionalidade do artigo n. 1790 do Código Civil de 2002. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5859, 17 jul. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73286. Acesso em: 22 dez. 2024.

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