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Reintrodução da censura no Brasil e a epifania do intolerável de Umberto Eco

09/01/2020 às 14:35
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O inquérito aberto no Supremo por Dias Toffoli, para investigar objeto indeterminado e que consistiria em vagas ofensas e ameaças ao tribunal ou a ministros, sem a participação do MP, impõe que reflitamos sobre uma outra subversão, a dos valores jurídicos.

Quando Umberto Eco publicou seus "Cinco Escritos Morais", ele apressou-se em esclarecer que não pretendia fazer nenhuma pregação de caráter ético, mas - no seu entendimento - salientar situações da existência que colocam diante de todos e de cada um três referências: (1) àquilo que seria justo fazer; (2) àquilo que não se deveria fazer e (3) àquilo que não se pode fazer em hipótese nenhuma.

No Brasil de hoje, essas três situações foram embaralhadas, de tal forma que aquilo que se seria justo fazer vem a ser exatamente aquilo que não se pode fazer em hipótese nenhuma.

Isto porque, retoma Eco, "toda lei, moral ou jurídica, regula relações interpessoais, inclusive aquelas com um Outro que a impõe".

E quem tem sido, ultimamente, esse "Outro que a impõe”? Nossa superestrutura jurídica está demasiado deteriorada no Brasil.

Recentemente, o presidente do Senado, Davi Alcolumbre, declarou a "O Estado de S. Paulo" que pedidos de impeachment de ministros do Supremo não irão prosperar, e também que a CPI da "Lava-Toga", depois de indeferida por ele, não retornará à pauta para exame do recurso interposto.

O inquérito secreto aberto por Toffoli para levar à fogueira os que criticaram ministros exibicionistas, voluntaristas, protecionistas de acusados em grandes escândalos de corrupção, foi apelidado pelo antigo colunista José Nêumanne de "cala a boca, gentalha".

"Meu caro Rochadel", como Gilmar Mendes chama o corregedor-geral do CNMP, ao provocar ação punitiva contra membros do MP, voltou a agir e conseguiu que aquele Conselho abrisse processo contra o procurador da República Diogo Castor de Mattos (e ele já é o quarto a ser perseguido, dentre os que atuaram laboriosamente na Lava-Jato e a quem o Brasil muito deve).

O "Outro" de Umberto Eco já recebeu variados nomes, que podem ser o "Grande Irmão" do livro "1984" ou o "cretino fundamental" de Nelson Rodrigues. Também se fizermos uma variação do "meu caro Rochadel"  para "meu caro Alcolumbre", dá tudo na mesma.

O mais notável é que Alcolumbre declara abertamente que segue pareceres da assessoria sem se fixar no seu conteúdo, mas com eles concorda para não intranquilizar 220 milhões de brasileiros com uma crise entre os Poderes, como se já não estivéssemos imersos na crise e ele - Alcolumbre - não fosse um dos protagonistas que se recusa a encaminhar uma solução.

Uma questão espinhosa que se coloca ao modo da pergunta que não quer calar é se a plêiade de descendentes de imigrantes que têm empolgado o poder conhece o "Brasil profundo". 

Temer, vindo de imigrantes libaneses maronitas, durante sua errática presidência foi lembrado por conterrâneos de seus antepassados e teve uma placa em sua memória inaugurada na pequena cidade de origem. 

Se a origem é tida como boa, a trajetória e o destino certamente são ruins.

Toffoli e Bolsonaro descendem de imigrantes italianos que se localizaram no interior de S. Paulo, em regiões agrícolas então pouco desenvolvidas, e dali iniciaram sua escalada rumo aos píncaros da República, aparentemente sem tempo para uma formação necessária e a aquisição de conhecimento para o manejo do poder que hoje detêm.

Um deles usou da influência como "quadro" aparelhado do PT, servidor e serviçal de um poder que amava o Poder e no seu altar se imolou, menos por fé e mais por... dinheiro. 

O outro, usou o Exército como escadaria e o fez bem, tirando ótimo proveito de suas intrigas internas e jogando a seu favor com correntes de generais antagonistas.

Ambos trazem as marcas de quando seus antepassados eram chamados de carcamanos e viram uma sociedade de privilégios não lhes conceder nenhuma dádiva, até descobrirem os caminhos da ascensão, que não se mostrou fácil, como exemplifica o desligamento de Bolsonaro da ESAO, a Escola de Aperfeiçoamento de Oficiais do Exército, quando era capitão, por má conduta, e a reprovação de Toffoli em dois concursos públicos para a magistratura de carreira.

Nenhum deles aprofundou seus estudos, não têm qualquer especialização, não progrediram na formação acadêmica e não publicaram absolutamente nada.

Alcolumbre prosperou no Norte, provindo dos judeus sefarditas do Marrocos, enriquecendo no comércio a grosso e a retalho e, aparentemente, sem ter  nenhum tempo para a ilustração.

Aproveitando a decadência do coronel Sarney, que já se retirou do Amapá, Alcolumbre logo se candidatou ao seu lugar e usa da influência como presidente do Senado para fortalecer sua política paroquial, fazendo, por exemplo, da atribuição ao aeroporto de Macapá do nome de seu avô, que ele mesmo propôs, um acontecimento transcendental na vida daquele Estado.

Eles todos nada sabem sobre as "Raízes do Brasil", de Sérgio Buarque de Holanda, mas certamente estão encantados consigo mesmos porque intuíram o que seja a "Visão do Paraíso", exposta pelo mesmo autor.

Todavia, não temos um ponto de partida metodológico, pois qualquer que fosse estabelecido poderia ser violentamente rebatido por "argumentos" irracionais, baseados em "posição de identidade" ou em "militância".

Isso gera um tipo de inoperância da abordagem intelectual, no sentido aristotélico de entelequia: a compreensão dos fenômenos resta inacessível porque as situações postas - assim como as instituições - não podem ser examinadas em relação aos seus fins. Há, portanto, uma reação irracional, provinda do fisiologismo, contra a compreensão lógica, histórica, peculiar e autêntica dos acontecimentos.

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Umberto Eco complementa: "Os intelectuais não podem lutar contra a intolerância selvagem, porque diante da animalidade pura, sem pensamento, o pensamento fica desarmado. E é sempre tarde demais quando decidem bater-se contra a intolerância doutrinária, pois quando a intolerância faz-se doutrina é muto tarde para vencê-la, e aqueles que deveriam fazê-lo tornam-se suas primeira vítimas."

A revanche de ideias pobres que pareciam mortas ganhou um vigor em nosso tempo, o que parece tornar inconsistente qualquer resposta.

O Direito falsificado é o que vige; sua efetividade depende da presença inarredável desses personagens que seriam irrisórios, mas somente se fosse feita uma análise de conteúdo relativo ao sentido intelectual de seus papéis.

Eles não sabem nem saberão construir algo que seja estável, que se constitua em referência.

Como Gilmar Mendes ensinou, instabilizar é vencer e é também a garantia para permanecer instabilizando pelo tempo afora, ainda que em nome de uma suposta estabilidade constitucional. Assim, também nós criamos uma novilíngua tão impressionante como a de George Orwell.

Porém, nada é irrevogável, de tal maneira que uma consciência extrema Umberto Eco quis despertar citando o poeta italiano Franco Fortini ao fim de um dos seus "Escritos Morais":

Ma noi s'è letto negli occhi dei morti      Mas nós temos lido nos olhos dos mortos

E sulla terra faremo libertà                      E sobre a terra faremos a liberdade

Ma l'hanno stretta i pugni dei morti         Mas os punhos dos  mortos têm estreitado

La giustizia che si farà.                            A justiça que se fará.

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Sobre o autor
Luiz Fernando Cabeda

Desembargador do TRT da 12ª Região, inativo. Fez estágio na Escola Nacional da Magistratura da França, Seção Internacional. Autor de "A Justiça Agoniza" e "A Resistência da Verdade Jurídica".

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABEDA, Luiz Fernando. Reintrodução da censura no Brasil e a epifania do intolerável de Umberto Eco. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6035, 9 jan. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/74210. Acesso em: 22 dez. 2024.

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