Há pouco mais de dois anos o Egrégio Supremo Tribunal Federal editou a Súmula nº 650 que enuncia: "os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto" (Diário da Justiça da União de 09 de outubro de 2003, p. 3).
Essa Súmula foi veiculada em razão de provocações da Suprema Corte para pronunciamento acerca de eventual interesse da União Federal na solução de ações de usucapião em terras situadas nos Municípios de Guarulhos e de Santo André, no estado de São Paulo, em vista do disposto no art. 1º, alínea "h", do Decreto-Lei nº 9.760/1946 [01].
Em diversas ações de usucapião relacionadas a terras situadas em Guarulhos-SP e Santos André-SP, a União sustentava possuir interesse na solução do litígio, ao argumento de que a área usucapienda estava encravada em antigo aldeamento indígena, tratando-se, portanto, de bem da União, a teor do disposto no Decreto-Lei nº 9.760/1946, e no art. 20, incisos I e XI, da Constituição.
Ocorre que a jurisprudência predominante do Tribunal Regional Federal da 3ª Região e do Superior Tribunal de Justiça, já estava assentado que o Decreto-Lei nº 9.760, onde arrolados exaustivamente os bens da União, foi editado sob a égide da Constituição de 1.937, e não foi recepcionado pela Constituição de 1988, inexistindo, assim, interesse da União Federal no deslinde da ação de usucapião [02].
Assim, a Súmula 650 do Supremo Tribunal Federal teve apenas o condão de cristalizar em definitivo os entendimentos estampados em inúmeros julgados proferidos pelos Colendos Tribunal Regional Federal da 3ª Região e Superior Tribunal de Justiça, especificamente quanto a inexistência de interesse da União em ações de usucapião em terras a que se refere o art. 1º, alínea "h", do Decreto nº 9.760/1946.
É necessário que os operadores do direito atentem ao fato de que aplicação da Súmula 650-STF deve ser realizada aos casos específicos a que ela tem relação, vale dizer, usucapião de terras indígenas a que se refere o Decreto-Lei nº 9.760/1946, não descurando das orientações constantes da Agenda 21 (ONU/Rio-1992), onde firmadas propostas para assegurar o desenvolvimento sustentável [03], e determinada a necessidade de proteção da terra indígena.
Também é imperiosa a necessidade da análise e da aplicação do entendimento sedimentado na Súmula 650-STF em conformidade com o disciplinado no art. 231 da Constituição de 1988 [04], bem como com o preconizado no art. 14, itens 1, 2 e 3 da Convenção 169 da OIT [05] que versa sobre os direitos dos povos indígenas e tribais.
É preciso ter em mente, ademais, que o próprio Estado estimulou o apossamento de terras indígenas no intuito de expandir as fronteiras agrícolas, muitas vezes conferindo títulos de terras que desde o Alvará de 1º de abril de 1680 estavam destinadas à satisfação de direitos indígenas [06]. Não pode ser olvidado, outrossim, o fato de a Constituição de 1988 ter reafirmado o indigenato, vale consignar, direito congênito aos índios sobre as terras que ocupam ou ocuparam, independente de título ou reconhecimento formal.
Como pondera Paulo de Bessa Antunes [07]:
"A Constituição de 1988 não criou novas áreas indígenas. Ao contrário, limitou-se a reconhecer as já existentes. Tal reconhecimento, contudo, não se cingiu às terras indígenas já demarcadas. As áreas demarcadas, evidentemente, não necessitavam do reconhecimento constitucional pois, ao nível da legislação infraconstitucional, já se encontravam afetadas aos povos indígenas. O que foi feito pela Constituição foi o reconhecimento de situações fáticas, isto é, a Lei Fundamental, independentemente de qualquer norma de menor hierarquia, fixou critérios capazes de possibilitar o reconhecimento jurídico das terras indígenas. Não se criou direito novo.
É preciso estar atento ao fato de que as terras indígenas foram pertencentes aos diversos grupos étnicos, em razão da incidência de direito originário, isto é, direito precedente e superior a qualquer outro que, eventualmente, se possa ter constituído sobre o território dos índios. A demarcação das terras tem única e exclusivamente a função de criar uma delimitação espacial da titularidade indígena e de opô-la a terceiros. A demarcação não é constitutiva. Aquilo que constitui o direito indígena sobre as suas terras é a própria presença indígena e a vinculação dos índios à terra, cujo reconhecimento foi efetuado pela Constituição Brasileira."
Segundo Vicente Greco Filho [08], a uniformização de jurisprudência por intermédio de súmula visa o ideal de justiça igual para todos os casos que igualmente se subsumem à mesma norma legal, pois à ordem jurídica repugna que casos iguais sejam julgados de maneira diferente. Adverte o citado mestre que "a interpretação prévia, num caso determinado, ou abstraída de um caso determinado, corre o risco de ser irremediavelmente errada, tendo em vista a sua precipitação e falta de visão de todas as peculiaridades do problema".
O art. 231 da Constituição assegura aos índios os direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam, sendo certo que essa expressão não designa ocupação imemorial [09], terras ocupadas por índios desde tempos remotos. Tal expressão refere-se ao modo tradicionalmente utilizado pelos indígenas para ocupação e relacionamento com as terras. Segundo Marco Antonio Barbosa [10]:
"Visou o legislador constituinte deixar claro que o Estado brasileiro reconhece aos índios direitos territoriais preexistentes ao próprio Estado brasileiro, por isso a utilização das expressões: reconhecidos e direitos originários.
E isso tem importância jurídica porque a nova Constituição brasileira admitiu que não é ela que veio atribuir esse direito, mas que ela simplesmente reconhece que tal direito já existia e que se trata de um direito originário, isto é, um direito anterior à própria formação do Estado brasileiro.
Nesse ponto também andou muito bem o legislador constituinte por diversas razões, dentre as quais destacaremos algumas que nos parecem as mais significativas:
1. Foi coerente jurídico-historicamente com a tradição do direito indigenista luso-brasileiro, que desde as leis portuguesas consagrou o indigenato, instituto jurídico através do qual se reconhece, no Brasil, direito congênito aos índios sobre as terras que ocupam, independentemente de título aquisitivo, não sujeito a legitimação e fora do sistema romanístico da posse e da propriedade, contemplado na legislação civil.
2. Muito embora, como dissemos, este direito já fosse consagrado aos índios desde as leis portuguesas para o Brasil e estivesse também assegurado na Constituição anterior, nela não vinha explícita a menção ao reconhecimento do direito originário sobre as terras ocupadas.
3. A nova formulação reforça a necessidade da aplicação constitucional e das leis, dentro da idéia de que o objetivo constitucional é o de proteger e garantir o território de um povo, com toda a amplitude que esses termos exigem (...)
5. Definidos nesses limites os preceitos da propriedade da União e do reconhecimento do direito originário dos índios sobre as terras que ocupam e afastada a falsa premissa anteriormente presente na legislação de que os povos indígenas eram transitórios e que deveriam inexoravelmente desaparecer, soa falsa qualquer abordagem do tema sobre a propriedade da União e a posse indígena que, de algum modo, queira associar essas expressões ao sentido a elas empregado em qualquer outro ramo do direito, notadamente em sua clássica utilização civilista."
Redigida de forma pouco precisa, a Súmula 650-STF deve ser aplicada tão-somente às hipóteses a que ela se refere - usucapião de terras mencionadas no art. 1º, alínea "h", do Decreto nº 9.760/1946 -, devendo os operadores do direito atentar para as peculiaridades e as circunstâncias constantes dos precedentes que embasaram a edição do enunciado, sob pena de violação ao disposto no art. 231 da Constituição e ao art. 14 da Convenção 169-OIT [11].
A proteção e garantia dos direitos assegurados aos grupos vulneráveis, entre os quais estão inseridos os indígenas, é a meta a ser alcançada por todos os que lutam pela efetividade dos direitos humanos, pelo que a Súmula 650-STF deve ser interpretada e aplicada nos estreitos limites dos precedentes que a orientaram. Importa trazer à reflexão as seguintes ponderações de Ana Valéria Araújo [12]:
"Se é verdade, portanto, que os juízes às vezes desfazem as leis, é também certo que é este mesmo Judiciário quem as consolida. Afinal, os direitos indígenas têm sido postos à prova e, pouco a pouco, vão conseguindo ganhar o respaldo judicial. Assegurar plena efetividade a esses direitos, porém, é ainda um desafio. Trata-se de um processo lento, que passa até mesmo pela educação de juízes quanto às modernas concepções do Direito, a ser vencido dia após dia pelos próprios índios, suas organizações, pelo Ministério Público, advogados e todos os que atuam nessa questão".
A Súmula 650-STF tem aplicabilidade limitada às ações de usucapião relativas às terras mencionadas no art. 1º, alínea "h", do Decreto-Lei nº 9.760/1946. A incidência desse enunciado a hipóteses outras acarreta manifesta violação ao art. 231 da Constituição, ao art. 14 da Convenção 169-OIT, e às orientações da Agenda 21 (ONU-Rio/1992). O emprego da Súmula 650-STF a espécies não relacionadas a ações de usucapião de terras a que se refere o art. 1º, alínea "h", do Decreto-Lei nº 9.760/1946, resulta inescusável afronta ao direito internacional dos direitos humanos.
REFERÊNCIAS
ANTUNES, Paulo de Bessa. Ação Civil Pública, Meio Ambiente e Terras Indígenas, Rio de Janeiro: Lúmen Júris, 1998.
ARAÚJO, Ana Valéria. Judiciário, ISA – INSTITUTO SÓCIO AMBIENTAL, Disponível em: http://www.socioambiental.org/pib/portugues/direito/judic.shtm, acesso em: 13.10.2005.
BARBOSA, Marco Antonio. Direito Antropológico e Terras Indígenas no Brasil, São Paulo: Editora Plêiade, 2001.
DALLARI, Dalmo de Abreu. Reconhecimento e proteção dos direitos dos índios. Revista Informação Legislativa, Brasília, a. 28, n. 111, julho/setembro 1991.
GRECO FILHO, Vicente. Direito Processual Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1996, 11ª edição.
SILVA José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2002, 21ª edição.
TRINDADE, Antonio Augusto Cançado. Direitos Humanos e Meio Ambiente. Paralelo dos Sistemas de Proteção Internacional. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1993.
NOTAS
01 Decreto-Lei nº 9.760/1946: "art. 1º Incluem-se entre os bens imóveis da União: h) os terrenos dos extintos aldeamentos de índios e das colônias militares, que não tenham passado, legalmente, para o domínio dos Estados, Municípios ou particulares;"
02 Confira-se dentre outros: Recurso Especial nº 97.00216276/SP, Relator Ministro Nilson Naves, DJ 10.05.1999, pág. 164; Recurso Especial nº 97.00339491/SP, Relator Ministro Ruy rosado de Aguiar, DJ 06.04.1998, pág. 127; Resp. 97.00509915/SP, Relator Ministro Nilson Naves, DJ 21.06.1999, pág. 151.
03 Sobre a Agenda 21 (ONU/Rio-1992), assim discorre Antonio Augusto Cançado Trindade, Direitos Humanos e Meio Ambiente. Paralelo dos Sistemas de Proteção Internacional, Porto Alegre : Sérgio Antônio Fabris Editor 1993, pp. 102-103: "A Agenda 21 enfatiza, em suma, o atendimento das necessidades humanas básicas, com atenção especial à proteção e educação dos grupos vulneráveis e dos segmentos mais pobres da população, como pré-requisito para o desenvolvimento sustentável (capítulo 6 par. 18). A Agenda 21 manifesta a esperança de que, mediante a integração de considerações ambientais e desenvolvimentistas se logre a ‘parceria global’ – baseada nas premissas da resolução 44/228, de 1989, da Assembléia das Nações Unidas – de modo a atender as necessidades humanas básicas, melhor proteger e gerir os ecossistemas e aprimorar padrões de vida para todos (capítulo 1 par. 1-2)."
04 Constituição de 1988, art. 231: "São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças, tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens."
05 Convenção 169/OIT, art. 14: "1.Dever-se-ão reconhecer aos povos indígenas e tribais direitos de propriedade e posse da terra que ocupam tradicionalmente. Além disso, nos casos devidos, deverão ser adotadas medidas para salvaguardar o direito desses povos de utilizar terras que não sejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais tradicionalmente tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de subsistência. Nesse particular, deverá ser dispensada especial atenção à situação de povos nômades e de agricultores itinerantes. 2. Os governos deverão adotar as medidas que se fizerem necessárias para demarcar as terras tradicionalmente ocupadas por esses povos e garantir a efetiva proteção de seus direitos de propriedade e posse. 3. Procedimentos adequados deverão ser instituídos, no âmbito do sistema jurídico nacional, para dar solução a reivindicações de terras por esses povos."
06 Como assentou o Ministro Ilmar Galvão no voto proferido no mandado de segurança-STF nº 21.575-5/MS, onde discutido o alcance do comando contido no art. 231 da Constituição: "... forçoso é convir, careceria de legitimidade a alienação feita pela unidade federada, inaugurando a cadeia sucessória exibida pelos impetrantes, cuja desconsideração, por parte da FUNAI, estaria justificada não por eventual efeito desconstitutivo que se pudesse atribuir à norma constitucional, mas pela circunstância – nela declarada pelo próprio legislador constituinte, tal a importância por ele emprestada a tema anteriormente relegado a segundo plano – de serem públicas e federais ditas terras, conseqüentemente res extra comercium, insuscetível de alienação pelos governos estaduais e por particulares."
07 Ação Civil Pública, Meio Ambiente e Terras Indígenas, Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 1998, p.171.
08 Direito Processual Civil Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 1996, 11ª edição, p. 369-371
09 De acordo com José Afonso da Silva, in Curso de Direito Constitucional Positivo, São Paulo, Malheiros, 2002, p. 829-830: "Terras tradicionalmente ocupadas não revela aí uma relação temporal. Se recorrermos ao Alvará de 1º de abril de 1680 que reconhecia aos índios as terras que ocupavam no sertão, veremos que a expressão ocupadas tradicionalmente não significa ocupação imemorial. Não quer dizer, pois, terras imemorialmente ocupadas, ou seja: terras que eles estariam ocupando desde épocas remotas que já se perderam na memória e, assim, somente estas seriam as terras deles. Não se trata, absolutamente, de posse ou prescrição imemorial, como se a ocupação indígena nesta se legitimasse, e dela se originassem seus direitos sobre as terras, como uma forma de usucapião imemorial, do qual emanariam os direitos dos índios sobre as terras por eles ocupadas, porque isso, além do mais, é incompatível com o reconhecimento constitucional dos direitos originários sobre elas... O tradicionalmente refere-se, não a uma circunstância temporal, mas ao modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem as terras e ao modo tradicional de produção, enfim, ao modo tradicional de como eles se relacionam com a terra, já que há comunidades mais estáveis, outras menos estáveis, e as que têm espaços mais amplos pelo qual se deslocam etc. Daí dizer-se que tudo se realize segundo seus usos, costumes e tradições."
10 Direito Antropológico e Terras Indígenas no Brasil. São Paulo: Editora Plêiade, 2001, p. 87-88.
11 Como observa Dalmo de Abreu Dallari em estudo publicado na Revista Informação Legislativa, Brasília, a 28, nº 111, julho-setembro de 1991, p. 320: "... é possível sustentar que os objetivos inspiradores do art. 14 da Convenção nº 169 da OIT são coincidentes com os que deram origem ao art. 231 da Constituição. E os efeitos de ambos são praticamente os mesmos, pois se é verdade que pelo fato de não serem proprietários os índios brasileiros não poderão dispor das terras que tradicionalmente ocupam é igualmente certo que também a União, embora proprietária, não tem o poder de disposição. E os grupos indígenas gozam permanentemente, e com toda a amplitude, dos direitos possessórios sobre essas terras."
12 Disponível em: http://www.socioambiental.org/pib/portugues/direito/judic.shtm, acesso em: 13.10.2005.