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As mulas do tráfico de drogas e dignidade da pessoa humana: uma análise crítica

23/07/2019 às 13:50
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A toda e qualquer pessoa se atribui dignidade humana, por ser-lhe da sua essência, independentemente de suas condutas estarem ou não de acordo com as normas éticas, morais e/ou jurídicas.

INTRODUÇÃO

A dignidade da pessoa humana, segundo o Supremo Tribunal Federal, conforme restou consignado no acórdão proferido no HC n. 87.676/ES, relatado pelo Ministro Cezar Peluso, cujo julgamento ocorreu em 06.05.2008, corresponde a “verdadeiro valor-fonte que conforma e inspira todo o ordenamento constitucional vigente em nosso País e que traduz, de modo expressivo, um dos fundamentos em que se assenta, entre nós, a ordem republicana e democrática consagrada pelo sistema de direito constitucional positivo”.

As controvérsias que permeiam esse postulado, porém, podem levar à interpretação – equivocada, de logo se diga – de que determinadas pessoas seriam desprovidas de dignidade, em razão da prática de certas condutas consideradas antiéticas, imorais e/ou ilícitas.

Diante dessa problemática, o presente estudo tem por objetivo analisar a temática dignidade da pessoa humana aplicada às mulas do tráfico de drogas.


DESENVOLVIMENTO

Conquanto se trate de vetor axiológico da ordem jurídica brasileira, em alguns casos, há uma repulsa social maior em reconhecer a dignidade da pessoa humana para algumas pessoas, sobretudo quando se está diante de investigados ou acusados da prática de crimes contra a vida e contra a dignidade sexual, agravando-se nos casos em que as vítimas são inimputáveis.

Nessa linha de intelecção, os investigados ou acusados pela prática do delito de tráfico de drogas, de fato, são menos ojerizados em relação aos que praticaram crimes contra a vida e dignidade sexual de terceiros, muito embora a sociedade seja, historicamente, orquestrada para ter aversão aos narcotraficantes, por motivos que não cabem expor no presente trabalho.

Com essa simples, porém necessária, digressão, pretende-se demonstrar que há, em outras palavras, um sentimento social, nem sempre expresso, de que a dignidade da pessoa humana deveria ser excepcionada para algumas pessoas, hipótese que, por evidente, se revela inadmissível diante das conjunturas jurídico-políticas existentes no Estado Democrático de Direito vigente.

De há muito, aliás, a filosofia kantiana infirmava a diferenciação entre seres humanos. Nesse sentido, José Afonso da Silva leciona que, para Kant, enquanto ser racional, o homem existe como fim em si mesmo, e não simplesmente como meio, ao passo que os seres, desprovidos de razão, têm um valor relativo e condicionado (o valor de meios), razão pela qual se lhes chamam coisas[1]. Por outro lado, os seres racionais são chamados de pessoas, pois sua natureza já os designa como fim em si, isto é, como algo que não pode ser imposto como meio e que, via de consequência, limita na mesma proporção do nosso arbítrio, em se tratando de um objeto de respeito[2]. Destarte, arremata o constitucionalista[3]:

Daí o imperativo prático, posto por Kant: "Age de tal sorte que consideres a humanidade, tanto na tua pessoa como na pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio". Disso decorre que os "seres racionais estão submetidos à lei segundo a qual cada um deles jamais se trate a si mesmo ou aos outros simplesmente como meio, mas sempre e simultaneamente como fins em si". Isso porque" o homem não é uma coisa, não é, por conseqüência, um objeto que possa ser tratado simplesmente como meio, mas deve em todas as suas ações ser sempre considerado como um fim em si".

Tem-se, à vista disso, que apenas o ser humano – enquanto ser racional, repise-se – é pessoa, ou melhor, “todo ser humano, sem distinção, é pessoa, ou seja, um ser espiritual, que é, ao mesmo tempo, fonte e imputação de todos os valores”[4]. Como consectário lógico, “todo ser humano se reproduz no outro como seu correspondente e reflexo de sua espiritualidade, razão por que desconsiderar uma pessoa significa em última análise desconsiderar a si próprio”, motivo pela qual a pessoa é um centro de imputação jurídica, haja vista que o Direito existe em função dela e para fornecer o seu desenvolvimento, revelando-se, com isso, a ideia de dignidade de um ser racional, à luz do pensamento kantiano[5].  

E por falar em dignidade, José Afonso rememora que Kant preconizava que no reino dos fins tudo tem um preço ou uma dignidade, de tal sorte que aquilo que tem um preço pode ser trocado por qualquer outra coisa equivalente, justificando-se, assim, a concepção de valor relativo e condicionado, tendo em vista que existe tão somente como meio, relacionando-se com as inclinações e necessidades do homem e que tem um preço de mercado, “enquanto aquilo que não é um valor relativo, e é superior a qualquer preço, é um valor interno e não admite substituto equivalente, é uma dignidade, é o que tem uma dignidade”[6]. A dignidade, nessa visão, representa um “atributo intrínseco, da essência, da pessoa humana, único que compreende um valor interno, superior a qualquer preço que não admite substituição equivalente”[7].

Portanto, por ser da essência da natureza humana, a dignidade acompanha o homem até sua morte, motivo pela qual não se admite qualquer ato de discriminação, de tal sorte que se o indivíduo for humilhado, discriminado, perseguido ou depreciado não haverá que se falar em dignidade assegurada[8]. Como resultado desse raciocínio lógico, Kant associa a autonomia (liberdade) ao princípio da dignidade da natureza humana e de toda natureza racional, “considerada por ele um valor incondicionado, incomparável, que se traduz na palavra respeito, única que fornece a expressão conveniente da estima que um ser racional deva fazer dela”[9].

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Com precisão, adverte José Afonso, entretanto, que a liberdade formalmente reconhecida não é suficiente, tendo em vista que a dignidade da pessoa humana, como fundamento do Estado Democrático de Direito, exige, como resultado prático, condições mínimas de existência, existência digna conforme os ditames da justiça social como fim da ordem econômica[10].

Por tais razões, parece claro que a toda e qualquer pessoa se atribui dignidade humana, por ser-lhe da sua essência, independentemente de suas condutas estarem ou não de acordo com as normas éticas, morais e/ou jurídicas.

Tal reconhecimento não produz reflexos apenas no plano teórico-hermenêutico, mas também no sentido pragmático, obstando-se a instrumentalização do indivíduo[11], que passa a ser ressignificado sob o manto da dignidade humana, além de passar a ser vedada a prática de atos vexatórios contra o agora sujeito de direitos.

Esse novo paradigma, especialmente em relação às “mulas” do tráfico de drogas, modifica o tratamento que até então lhes era atribuído, afastando-se, assim, das amarras comuns de intolerância ao narcotráfico.


CONCLUSÃO

A ressignificação do indivíduo produziu, dentre outros reflexos, o de atribuir dignidade humana a toda e qualquer pessoa, independentemente de suas condutas estarem ou não em consonância com as normas éticas, morais e/ou jurídicas, tratamento que, por consequência, é dado às “mulas” do tráfico de drogas.


REFERÊNCIAS

DA SILVA, José Afonso. A dignidade da pessoa humana com valor supremo da democracia. Revista de direito administrativo, v. 212, p. 89-94, 1998.

LIMA, Camila Rodrigues Neves de Almeida. ESCRAVOS DA MODA: um estudo sobre a produção jurisprudencial brasileira em matéria de trabalho escravo nas oficinas de costura paulistanas. Dissertação de Mestrado (Dissertação em Direito) – Universidade de Coimbra, 2015.


Notas

[1] DA SILVA, José Afonso. A dignidade da pessoa humana com valor supremo da democracia. Revista de direito administrativo, v. 212, p. 89-94, 1998, p. 90.

[2] Idem. Ibidem, p. 90.

[3] Idem. Ibidem, p. 90.

[4] Idem. Ibidem, p. 90.

[5] Idem. Ibidem, p. 90.

[6] Idem. Ibidem, p. 91.

[7] Idem. Ibidem, p. 91.

[8] Idem. Ibidem, p. 93.

[9] Idem. Ibidem, p. 93.

[10] Idem. Ibidem, p 93.

[11] Afinal, “a intenção de instrumentalizar o outro (…) surge como a negação absoluta do valor da dignidade humana, da autonomia e da liberdade”. LIMA, Camila Rodrigues Neves de Almeida. ESCRAVOS DA MODA: um estudo sobre a produção jurisprudencial brasileira em matéria de trabalho escravo nas oficinas de costura paulistanas. Dissertação de Mestrado (Dissertação em Direito) – Universidade de Coimbra, 2015, p. 31.

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Sobre o autor
Bruno Porangaba Rodrigues

Advogado. Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

RODRIGUES, Bruno Porangaba. As mulas do tráfico de drogas e dignidade da pessoa humana: uma análise crítica. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5865, 23 jul. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/75292. Acesso em: 18 abr. 2024.

Mais informações

O presente trabalho constitui um recorte, com modificações pontuais, da monografia do autor, cuja íntegra pode ser acessada pelo repositório institucional da Universidade Federal da Bahia, através do seguinte link: http://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/28246.

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