Tema corrente na crônica jurídica, o confronto armado entre policiais e marginais costuma render debates acalorados, muitos dos quais, impingidos pela paixão ou pela hermenêutica pessoal, revelam correntes opostas que, não raro, impõe ferrenha divisão doutrinária entre os que operam o Direito ainda em chamas e os que, num segundo momento, o interpretam já em brasa.
Vejamos, pois, alguns pontos que podem servir de norte a um entendimento técnico da questão e, longe de impor verdades, estimular o debate sadio sobre a questão, que não é pacífica.
Resiste, em termos criminais, aquele que se opõe à execução de ato legal, mediante violência ou ameaça a funcionário competente para executá-lo ou a quem lhe esteja prestando auxílio. É a chamada resistência ativa, sem a qual o crime não se consuma. A passiva, isto é, a desprovida desse tipo objetivo (violência), pode resvalar em eventual desobediência, desde que a ordem emitida seja legal. No mais, diz-se o crime doloso, segundo a lei brasileira, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo. São regras básicas, de geral compreensão, pontos pacíficos.
De posse desses conceitos, enfrentemos a questão.
Suponhamos a ação de criminosos em fuga que, no ínterim da ação, disparam contra os policiais individualizados que os perseguem. Essa perseguição, por si só, já revela uma ação de oposição ativa ao Estado, afinal, de maneira tácita, o marginal que se evade, empregando violência, já pratica um delito autônomo, qual seja, o previsto no art. 329 do Código Penal (resistência). Nesse caso, o sujeito passivo primário será a administração pública, e não somente a pessoa do servidor (secundário), o qual, em razão da violência empregada, também terá sua incolumidade exposta.
Pois bem, mas essa violência, longe de ser apenas física, é executada com armas de fogo, instrumentos que, a bem da verdade, têm características predominantemente letais. Desse modo, quem atira contra a Polícia (contra agentes numerados, específicos e certos) durante uma fuga, não o faz simplesmente para garantir o êxito da evasão, mas sim, e as escancaras, para assumir o risco de produzir o resultado morte desses mesmos agentes. Desse modo, tentam, de maneira egoística ou mesmo intencional, cessar, de qualquer modo, a ação estatal que lhes pesa, matando, se o acaso assim o quiser, aqueles que os perseguem.
Homicídio, segundo a lei pátria, significa “matar alguém”. Ora, quem assume o risco de matar alguém (que, repito, é certo e específico) está claramente imbuído com o que nós chamados de “propósito homicida”, isto é, na intenção, direta ou indiferente, de ceifar a vida de outrem. O dolo, nesse caso, é duplo. Em primeiro lugar, atacar a administração pública, opondo-se a ação dela com violência; e em segundo lugar, atentar de forma capital contra quem a representa, tirando-lhe a vida se necessário for.
No que tange ao contexto da ação, é certo que a intenção de matar, “sub censura”, não pode ser confundida com a ausência de mira no agente público (que é certo), já que, num confronto armado, o tiro visado acaba sendo substituído pelo instintivo, mormente por quem não tem treinamento para dominá-los, como é o caso do marginal. Desse modo, querer condicionar o ânimo de matar a um alvo centrado num confronto armado (e que compõe o mesmo grupo), é fazer letra morta ao instituto do dolo eventual, onde o marginal, por egoísmo ou indiferença, aceita o resultado que lhe seja mais favorável, ainda que seja a morte sumária do policial. A intenção, qual seja, é a de “matar alguém”, isto é, quem daquele grupo que o persegue faz parte.
Em termos técnicos, diversos pormenores influenciam numa troca de tiros e, na ambiência operacional, a precisão da pontaria pode sofrer várias reduções, devido a fatores ambientais (luminosidade, chuva); psicológicos (nervosismo); físicos (cansaço); dinâmicos (movimentação do alvo) e reativos (hostilidade do infrator). Desse modo, fica fácil entendermos que as regras do confronto armado diferem das do tiro em estande (onde o alvo é imóvel e não atira de volta), cabendo ao interprete da lei analisar o contexto como um todo e preservar, em primeiro lugar, a legitimidade de quem está agindo na defesa social, e não dos que operam em detrimento dela.
Assim, quem, em fuga, atira contra a Polícia, não apenas resiste ativamente a ela, mas também, e no mesmo contexto, assume o risco de matar seus integrantes, recaindo, minimamente, no chamado dolo eventual, já que as penas do crime de resistência, bem sabemos, são aplicadas sem prejuízo das correspondentes à violência, no caso, a armada.
Dito isso, considerando-se a clara pluralidade de ações (oposição ativa ao Estado e atentado contra a vida de um ou mais agentes), entendemos que o marginal em fuga que atira contra a Polícia comete os crimes de resistência e homicídio (tentado ou consumado), em concurso, sem prejuízo dos demais que, não abrangidos pela regra da consunção, estejam presentes na ação delituosa.
O preciosismo jurídico, num mundo onde a violência concisa deve ser combatida, deve ser usado para coroar as ações legítimas do Estado, e não para beneficiar indivíduos que, conquanto tenham direitos e garantias individuais, agem de modo a disseminar o caos e violar a lei máxima das duas tábuas, as quais, maneira subliminar, povoam todas as repartições de Justiça, em todas as suas instâncias.