Capa da publicação Incidência do princípio da congruência nas ações civis públicas
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Princípio da congruência e ação civil pública

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16/09/2019 às 15:16

Resumo:


  • O princípio da congruência é fundamental no processo civil e está previsto nos artigos 141 e 492 do CPC, como decorrência do princípio da demanda, e visa evitar abusos na atividade jurisdicional, exigindo que o juiz respeite os limites do pedido em suas decisões.

  • A congruência requer que o pedido seja certo e determinado, permitindo ao juiz identificá-lo corretamente. A interpretação do pedido deve ser lógico-sistemática e considerar a postulação como um todo, buscando a tutela específica e mínima restrição aos direitos do demandado.

  • As ações civis públicas, que tutelam interesses de relevância social e são geralmente indisponíveis, exigem uma flexibilização do princípio da congruência para garantir uma tutela efetiva, permitindo ao juiz adotar medidas que não foram expressamente pedidas, mas que sejam necessárias para a proteção integral do direito coletivo ou difuso.

Resumo criado por JUSTICIA, o assistente de inteligência artificial do Jus.

4 SENTENÇA E DECISÃO DE MÉRITO

O direito de ação, assegurado constitucionalmente e entendido como sendo o direito abstrato, subjetivo e autônomo de provocar a atividade jurisdicional e, com isto, obter um provimento jurisdicional, implicará na sentença[39]. Em termos diversos, a sentença é a consequência do exercício do direito de ação.

O legislador trouxe o conceito de sentença no artigo 203, §1º, do Código de Processo Civil, definindo-a como “o pronunciamento por meio do qual o juiz, com fundamento nos arts. 485 e 487, põe fim à fase cognitiva do procedimento comum, bem como extingue a execução”. Com isto sanou-se enorme imprecisão do art. 162, §1º, do revogado Código de Processo Civil (Lei 5.869, 1973) que, ao conceituar sentença como “o ato do juiz que implica alguma das situações previstas nos arts. 267 e 269 desta lei”, excluindo, assim, do conceito, seu elemento finalístico, acabou por gerar confusão, já que, em última análise, passaria a ser sentença, vg, o saneador que, em caso de litisconsórcio facultativo, excluísse do processo, por ilegitimidade, um dos litisconsortes.

Assim, em consonância com o estatuto processual em vigor, MARINONI, ARENHART e MITIDIERO (2015, p. 407) definem sentença como sendo o “ato do juiz que, resolvendo ou não o mérito da causa (arts. 203, 485 e 497), define-a, gerando em regra preclusão para o juiz (art. 507, ressalvadas as hipóteses do art. 495), assinalando ainda o fim da atividade de conhecimento no 1º grau de jurisdição”.

Como se vê, a sentença não põe fim ao processo, pois há a possibilidade de contra ela ser interposto recurso, sendo que pode nem mesmo encerrar a atividade do juiz de primeiro grau, se demandar ela liquidação[40] ou execução, havendo neste último caso, em verdade, mera alteração da atividade exercida (que antes era de conhecimento e, após, passará a ser de execução).

Embora não seja a sentença que ponha fim à relação processual, é ela, portanto, “o último ato jurisdicional antes do encerramento da relação processual de conhecimento[41] e, na execução, é ato judicial que decreta o fim do processo executivo” (THEODORO, 2016, p. 1045).

Portanto, não resta dúvida de que a sentença constitui o ato processual judicial mais importante, já que tem por função compor a lide, pacificando o conflito, o que fará ao declarar o direito preexistente e formar a norma concreta de conduta.

Importa destacar que a sentença pode-se dividir em capítulos[42], cada qual voltado a julgar uma pretensão distinta. E isto ocorrerá não apenas quando o objeto for composto ou complexo, mas também quando, sendo simples, tratar de coisa quantificável[43]. Deste modo, se o juiz concede menos (apenas parte) do pedido quantificável, há de se entender que julgou procedente um capítulo e improcedente outro (assim, se o autor pede 100 unidades de determinado bem e o juiz concede-lhe 80 unidades, há de se concluir pela improcedência das 20 outras unidades postuladas).

A teoria dos capítulos da sentença guarda relação direta com a aplicação do princípio da congruência, já que “eventual defeito que vicie apenas um dos capítulos da sentença, sem afetar os demais, não se propaga a estes nem determina a nulidade da sentença como um todo” (DINAMARCO, 2017b, p. 779).

A sentença, como já se adiantou acima, não pode ser interpretada isoladamente. Constitui ela ato processual integrante de um todo (processo), de modo que sua interpretação deve ocorrer em vista dos elementos que a limitam, ou seja, das partes, dos pedidos e dos fundamentos fáticos discutidos ao longo da relação jurídica processual[44].

Ao breve estudo da sentença, importa aqui acrescentar que o novo Código de Processo Civil inovou ao prever a decisão parcial de mérito[45], na qual, assim como na sentença, e ao contrário das demais decisões interlocutórias, decide-se a própria pretensão inicial, ou seja, o mérito, produzindo coisa julgada e sendo passível, consequentemente, de impugnação futura por ação rescisória.

A decisão de mérito ocorrerá nas hipóteses elencadas pelo artigo 356 do CPC: “Art. 356.  O juiz decidirá parcialmente o mérito quando um ou mais dos pedidos formulados ou parcela deles: I - mostrar-se incontroverso; II - estiver em condições de imediato julgamento, nos termos do art. 355”[46].

Como ato judicial no qual há análise do mérito, é evidente que à decisão em comento aplica-se o princípio da congruência, bem como tudo o mais que se disse e que se venha a dizer a respeito da sentença.

4.1  SENTENÇAS E DECISÕES DE MÉRITO QUE RECONHECEM A EXIGIBILIDADE DE OBRIGAÇÃO DE FAZER, NÃO FAZER OU DAR

Considerando a preocupação em se alcançar uma tutela justa e efetiva, o legislador previu, nos artigos 84 do CDC e 536, §1º, do CPC, a possibilidade de o juiz conceder, nas demandas em que se postula um fazer, não fazer ou a entrega de algo, inclusive de ofício, medidas judiciais que fogem aos limites dos pedidos iniciais, desde que seja isto necessário para a plena satisfação do direito. Isto porque, “a lei está preocupada em prestigiar a execução específica da obrigação, deixando em segundo plano a saída para sua substituição por perdas e danos” (THEODORO, 2016, p. 1073).

Deste modo, nos termos dos dispositivos legais citados, nas sentenças e decisões de mérito que reconheçam a exigibilidade da obrigação de fazer, não fazer ou entregar coisa, “verificando que a ordem requerida não é a mais adequada, o juiz pode tomar providências diversas para a obtenção do bem da vida pretendido” (DIDIER; BRAGA; OLIVEIRA, 2018, p. 422), ou seja, “o juiz está autorizado, desde que respeitados os limites da obrigação originária, a impor o fazer ou não fazer mais adequado à situação concreta que lhe é apresentada para julgamento” (MARINONI, 2000, p. 120).

A idéia aqui reinante é a de que a tutela jurisdicional seja específica[47], de modo que deve se aproximar o máximo possível do direito da parte, o que autoriza o juiz a conceder obrigação diversa da postulada ou, ainda, tutela de natureza distinta daquela requerida, sendo viável, vg, prestar uma tutela mandamental em lugar da executiva que foi expressamente indicada na petição inicial[48].

Em síntese, há o dever de se aproximar, o quanto possível, da obrigação originária requerida, pois “o processo deve buscar respostas diversificadas de acordo com a situação jurídica assegurada pelo direito material, de forma a proporcionar providência, de modo mais rente e fielmente possível, àquela que existiria se a lei fosse cumprida de modo voluntário” (SHIMURA, 2006, p. 103). Justamente por isto, a conversão em perdas e danos constitui, por consequência lógica e segundo visto em item anterior, “ultima ratio”[49].

A liberdade judicial, neste ponto, constitui exceção ao princípio da congruência: “na sentença concessiva da tutela específica – obrigação de fazer ou de não fazer ou medidas que assegurem o resultado prático equivalente – há certa mitigação do princípio da congruência entre a demanda e o provimento judicial” (LEONEL, 2017, p. 394).

Porém, não se trata aqui de liberdade irrestrita, já que está ela umbilicalmente vinculada ao resultado, ou seja, ao alcance da tutela que seja mais efetiva e que melhor se aproxime da obrigação originária, causando, ainda, a menor restrição possível à esfera de direitos do demandado.

Será a obrigação originária, bem interpretada, o próprio limite de atuação judicial. Aliás, não é ela apenas o limite, mas também uma imposição de agir, pois o juiz tem por dever alcançar a tutela efetiva e adequada[50] (princípio da efetividade)[51], bem como evitar, sempre que possível, a tutela ressarcitória. Em sendo assim, a concessão de tutela alternativa vincula-se à efetiva satisfação do Direito, sem prejuízo, por evidente, do dever de observância ao contraditório (o que implica na necessidade de o juiz, vislumbrando a necessidade de adotar tutela não requerida, instar as partes a sobre isto se manifestarem antes da decisão).

Observo que a possibilidade de concessão, nas ações de obrigação de fazer, não fazer e dar, de medida não postulada na inicial, tem relação direta com o art. 322, §2º, do CPC. Isto porque, “quem vem a juízo vem com a intenção de obter um resultado prático” (DINAMARCO, 2017b, p. 332). A interpretação do pedido, diante do todo da postulação e da boa fé, conduz à conclusão de que o autor quer, em verdade, a utilidade em si, não importa de quais meios ela resulte.


PRINCÍPIO DA CONGRUÊNCIA

Não há consenso acerca da nomenclatura a ser utilizada quando se trata da necessidade de correspondência entre a sentença e os elementos que identificam a ação. Como lembra Andrea Boari Caraciola (2007), vários países, como Argentina, Itália, Portugal, França e Alemanha, adotam, em suas legislações, o princípio em comento, porém cada qual o faz com o emprego de terminologias bastante diversas (adstrição, correlação, correspondência ou simetria).

No entanto, o vocábulo “congruência” é o mais utilizado tanto pela doutrina pátria, quanto pela doutrina estrangeira, pois, afeto à geometria, dele já se pode inferir o conteúdo do princípio, considerando que congruência remete à idéia de correspondência exata. Desta forma, embora não haja adoção expressa do termo por nossa legislação, será este o vocábulo aqui mais comumente utilizado, como, aliás, já assim se pôde perceber.

O princípio da congruência[52] tem por fundamentos centrais[53] o princípio dispositivo[54], o princípio do contraditório e o princípio da demanda[55]. Por força deste último princípio, o juiz somente pode decidir o que foi posto pela parte demandante[56]. Trata-se de limite à atuação do Estado-juiz, obstando que este, ao se imiscuir discricionariamente na órbita privada quando assim não chamado, cerceie a liberdade individual e cometa arbitrariedades peculiares a um odioso regime totalitário.

Assim, “como o juiz não pode prestar tutela jurisdicional senão quando requerida pela parte (NCPC, art. 2º), conclui-se que o pedido formulado pelo autor na petição inicial é condição sem a qual o exercício da jurisdição não se legitima” (THEODORO, 2016, p. 1080). A conclusão é válida também para os direitos indisponíveis, pois ainda aqui veda-se a atuação de ofício do Poder Judiciário, estando a atividade jurisdicional vinculada à iniciativa da parte.

O dever congruência tem natureza dúplice, pois é, a um só tempo, comissivo (implica no dever de o juiz se pronunciar sobre todos os pedidos, causas de pedir[57] e em relação a todas as partes) e, ainda, omissivo (implica também no dever de se abster quanto à apreciação de fundamentos, pedidos ou partes que não componham a lide)[58]. Portanto, o juiz deve se pronunciar, na sentença, sobre toda a demanda e tão somente sobre esta.

Vale o dever de congruência tão somente para as sentenças e decisões que resolvem o mérito, porém não está sua aplicação restrita às tutelas condenatórias, alcançando igualmente as sentenças e decisões de mérito declaratórias, mandamentais, constitutivas e executivas lato sensu[59]. O dever de correlação envolve, ademais, todos os elementos identificadores da ação (e não somente o pedido), de modo que deve a sentença guardar tríplice identidade com a demanda[60]. Deste modo, a necessidade de congruência alcança os elementos objetivos (pedido e causa de pedir) e subjetivos (partes).

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De fato, o artigo 492 do Código de Processo Civil, interpretado à luz do artigo 141 do mesmo diploma, conduz à conclusão de que há limitação ao poder-dever de decidir também, repito, quanto aos limites subjetivos e causais da demanda[61].

Neste ponto, embora o presente trabalho esteja focado predominantemente em analisar os limites para a atuação jurisdicional impostos pelo pedido (ponto mais comumente abordado quando se trata da congruência), cabem aqui breves considerações acerca das limitações trazidas pelos elementos causal e subjetivo.

Como se disse, o dever de adstrição também se aplica à causa de pedir: “o juiz é rigorosamente adstrito aos fundamentos trazidos na causa de pedir, não lhe sendo lícito decidir apoiado em fatos ali não narrados nem se omitir quanto a algum deles” (DINAMARCO, 2017b, p. 335).

Percebe-se que os limites causais não são apenas aqueles trazidos pelo autor na inicial, mas também compreendem as exceções constantes na defesa, razão pela qual, inclusive, está o juiz obstado de considerar fato impeditivo, modificativo ou extintivo do direito do autor se não alegado pelo réu, salvo nas matérias de ordem pública e cognoscíveis de ofício[62], e desde que, neste último caso, seja respeitado o contraditório.

A conclusão acima decorre de expressa previsão do artigo 141 do Código de Processo Civil que assim dispõe com nossos grifos: “o juiz decidirá nos limites propostos pelas partes”. Ao mencionar partes (no plural) e não apenas parte, o legislador referiu-se tanto ao autor quanto ao réu, de modo que congruência deve haver tanto em relação à demanda do autor, quanto à demanda proposta pelo réu em reconvenção ou pedido contraposto e, ainda, aos fundamentos da resposta (fundamentos da resistência à pretensão inicial). Deste modo, a congruência compreende o dever de exata correlação com a causa de pedir e com a causa de resistir[63].

Cabe aqui observar que não há limites em relação aos fundamentos jurídicos, até porque aplica-se a estes a máxima “iuria novit curia” [64]. Diante dos fatos trazidos aos autos (estes sim limitadores da cognição judicial), o juiz poderá aplicar a consequência jurídica que entender mais pertinente[65]. A única ressalva aqui decorre da impossibilidade, trazida pelo art. 10 do Código de Processo Civil[66], da chamada decisão surpresa, pautada em fundamento jurídico sobre o qual as partes não se manifestaram, de modo que deve o juiz, antes de decidir, se entender por adotar fundamento jurídico que não foi objeto de dialética entre as partes, instá-las a se manifestar.

No mais, ainda que a congruência esteja restrita aos fatos, não será todo e qualquer fundamento fático que servirá de amarra à decisão judicial. Somente os fatos que compõem a causa de pedir (ou a exceção) servirão de norte à decisão, podendo, portanto, nesta serem adotados fatos circunstanciais ou fatos simples não trazidos na inicial ou contestação. E mesmo em relação aos fatos principais, que compõem o dever de adstrição, aplica-se a exceção prevista no art. 493 do Código de Processo Civil[67], pois deverá a sentença ou decisão de mérito levar em consideração os fatos supervenientes, respeitado, por evidente, o contraditório.

Em síntese, a decisão de mérito e a sentença devem necessariamente observar a causa de pedir, não podendo adotar fundamentos fáticos diversos daqueles trazidos pelas partes na inicial e na contestação (salvo na hipótese do art. 493 do CPC), tampouco deixar de enfrentar fato que compõe a causa de pedir ou a “causa de resistir”. Na hipótese, aliás, de a decisão ou sentença basear-se em fundamento fático não constante dos autos, haverá integral nulidade se diversa fosse a solução caso não tivesse sido ele adotado[68] (em contrapartida, não será nula a decisão se, além do fundamento estranho aos limites da demanda, adotar-se outro fundamento, suscitado pela parte, e que por si só seja suficiente para levar a mesma conclusão).

Além da causa de pedir, também o elemento subjetivo restringe a decisão de mérito e a sentença. Não se poderá decidir contra ou a favor de pessoa que não seja parte nos autos, valendo apenas aqui destacar que, especificamente nas ações coletivas, em especial das ações civis públicas, “a tutela jurisdicional não é concedida ao autor, mas à comunidade processualmente substituída por ele” (DINARMARCO, 2017b, p. 334).

Por fim, a sentença ou decisão de mérito deve observar os limites traçados pelos pedidos formulados pelas partes. Como inicialmente visto, a sentença está restrita aos elementos objetivos da demanda. Assim, não pode ir além ou ficar aquém do pedido, tampouco apreciar objeto diverso do demandado: “É o pedido veiculado na demanda e que logicamente decorre da causa de pedir que lhe confere substrato, que determina o objeto do litígio, de modo a delimitar o âmbito da atuação jurisdicional” (CARACIOLA, 2007, p 131).

Neste ponto, importa reiterar que a congruência se aplica, com as ressalvas do que se expos sobre a tutela que impõe um fazer, não fazer ou a entrega de coisa, tanto ao pedido mediato quanto ao pedido imediato. Porém aqui ainda cabe lembrar não haver integral liberdade da parte ao formular o pedido imediato, já que este deve guardar relação lógica e instrumental com o bem da vida que se pretende tutelar. A isto também importa acrescer e rememorar que o pedido (tanto em seu aspecto mediato quanto imediato) deve necessariamente ser interpretado à luz de toda a postulação e em vista do princípio da boa-fé.

Deste modo, ao proferir a sentença ou decisão de mérito, dentro dos limites do pedido, cabe ao juiz bem interpretá-lo, fazendo-o de maneira sistêmica e lógica (e não isoladamente), adotando, ao final, a providência jurisdicional que sirva concretamente à satisfação do direito (tutela específica), sem implicar em restrições desnecessárias a esfera de direitos do demandado. O dever de congruência, se tem por fito principal impedir a atuação “ex officio” do Estado-Juiz, deve, em contrapartida, levar em conta a correta compreensão da postulação, de modo a não se negar Jurisdição.

Em síntese, só será incongruente a sentença ou decisão de mérito que fuja ao pedido mediato interpretado na forma vista no item 3.3, bem como aquela que se distancie da providência jurisdicional apta a resultar na efetiva satisfação do direito.

Não é outro o entendimento do Egrégio Superior de Tribunal de Justiça: “não viola os  arts.  128   e  460  do  CPC   a  decisão  que  interpreta  de  forma  ampla  o pedido formulado pelas partes, pois o pedido é o que se pretende com a instauração da demanda”[69] (AgRg no REsp 737.069/RJ, Rel Min. Sidnei Beneti, 3ª Turma, DJe de 24.11.2009); “Não  há  se  falar  em  violação  do princípio da congruência externa,   afinal   deve-se   contemplar  aquilo  que  se  denominou jurisprudencialmente   de   "interpretação   lógico-sistemática"   da petição inicial” (STJ, EDcl no REsp 1460403/PR, Ministro FRANCISCO FALCÃO, T2 - SEGUNDA TURMA, DJe 22/11/2017).

Ainda neste sentido:

PROCESSO CIVIL. PETIÇÃO INICIAL. PEDIDO. INTERPRETAÇÃO. LIMITES. MEDIDA CAUTELAR. PODER GERAL DE CAUTELA. LIMITES. DISPOSITIVOS LEGAIS ANALISADOS: ARTS. 128, 460 E 798 DO CPC. 1. Ação ajuizada em 01.01.2003. Recurso especial concluso ao  gabinete da Relatora em 03.08.2011. 2. Recurso especial em que se discute se a sentença é ultra petita e se houve a perda de objeto da ação. 3. O pedido deve ser extraído da interpretação lógico-sistemática da petição inicial, a partir da análise  de todo o seu conteúdo. Precedentes. 4. A decisão que interpreta de forma ampla o pedido formulado pelas partes não viola os arts. 128 e 460 do CPC, pois o pedido é o que se pretende com a instauração da ação. Precedentes. 5. O art. 798 do CPC confere ao Juiz ampla liberdade no exercício do poder geral de cautela, não ficando ele adstrito, quando examina pedido cautelar, ao princípio dispositivo traçado pelas partes. 6. Nada impede o Juiz de, com base no poder geral de cautela, determinar de ofício a adoção de medida tendente a garantir a utilidade do provimento jurisdicional buscado na ação principal, ainda que não requerida pela parte. 7. Recurso especial provido. (STJ, RECURSO ESPECIAL 2011/0098694-9, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, Terceira Turma, DJe 30/05/2014, grifo não original).

[...] De acordo com a jurisprudência do STJ, não há ofensa ao princípio da   congruência   ou   da  adstrição  quando  o  juiz  promove  uma interpretação  lógico-sistemática  dos  pedidos deduzidos, ainda que não  expressamente  formulados  pela  parte autora. Assim, não há se falar  em provimento extra petita, pois a pretensão foi deferida nos moldes  em  que  requerida  judicialmente, haja vista que, dentre os critérios  utilizados  pela  parte  autora  para  deduzir  o  pleito reparatório,  encontram-se  o  descaso do agente agressor, a prática reincidente e o caráter inibitório da penalidade [...] . (STJ, REsp 1355574/SE, Rel. Ministra DIVA MALERBI, T2 - SEGUNDA TURMA, DJe 23/08/2016, grifo não original).

Por fim, cabe aqui acrescentar que a possibilidade de incongruência não está restrita à sentença de procedência ou parcial procedência (ou seja, à sentença que acolhe, no todo ou em parte, o pedido), sendo possível sua ocorrência também na improcedência. Isto ocorrerá caso o juiz considere fundamento fático não trazido pelas partes, pedido não realizado nos autos ou faça a tutela alcançar pessoa diversa, estranha à lide. Assim, caso o autor formule um pedido A, haverá incongruência se o juiz julgar improcedente o pedido B. O mesmo ocorrerá, por exemplo, se em uma ação reparatória decorrente de acidente de veículo proposta apenas contra o condutor, vier o juiz a julgar improcedente o pedido em face também do proprietário do automóvel conduzido pelo réu.

5.1 VÍCIOS DECORRENTES DA INCONGRUÊNCIA

A falta de congruência implicará em sentença “extra petita”, “ultra petita” ou “citra petita” que, como regra, serão nulas[70], dada a existência de vício substancial. Se “extra” e/ou “ultra petita” a sentença será ampliativa e se “infra petita” será considerada restritiva.  

A nulidade em tais, conforme defendido por Candido Rangel Dinamarco (2017b, p. 797), é, regra geral, relativa: “em caso de falta de correlação entre a sentença e a demanda, essa nulidade substancial só é pronunciada pelo Tribunal se o pedir a parte prejudicada e na medida do que for necessário para observar a exigência legal de correlação”[71].

Em linhas gerais, entende-se por “extra petita” a sentença ou decisão de mérito que defere prestação jurisdicional diferente daquela demandada (tem natureza diversa ou concede aquilo que não se pediu), que se baseia em fundamento fático não invocado pelas partes (inclusive, como visto, em exceção não trazida pelo réu, salvo em se tratando de matéria de ordem pública, cognoscível de ofício)[72], ou que decide contra ou a favor (atinge) de terceiro (pessoa estranha à relação jurídica processual).

Será “ultra petita” a sentença  que concede mais do que se pediu, analisa outros fatos, além daqueles essenciais trazidos aos autos pelas partes, ou resolve a demanda também em relação a terceiros, ou seja, para as partes e, ainda, terceiros estranhos à relação processual.

O vício decorrente da sentença “ultra petita” deverá ser sanado pelo órgão revisor competente, por ocasião do julgamento do recurso interposto, competindo aquele expurgar o excesso constatado, limitando a prestação jurisdicional ao quanto postulado, sem necessidade de ser decretada a nulidade da sentença e, portanto, sem que se faça preciso o retorno dos autos à origem para novo julgamento (CPC, art. 1013, §3º, II).

Embora não haja consenso sobre o tema, a nulidade, no caso, é, em regra, relativa, devendo ser arguida pela parte interessada e dela não podendo o Tribunal conhecer, por força do art. 1013, §1º, do CPC, se o recurso a tanto não se voltar. Só haverá que se falar em nulidade absoluta caso o excesso constatado diga respeito a ponto suficiente, por si, para gerar, fora do contexto do processo, uma ação autônoma[73].

Assim, se por força de um acidente automobilístico a vítima requer o valor de R$ 3.000,00 para o reparo de seu veículo, tendo na sentença sido concedida, para esta mesma finalidade (reparação do veículo), indenização de R$ 4.000,00, o excesso respectivo (R$ 1.000,00) deverá ser objeto específico de apelação interposta pelo réu. Se a questão é omitida em recurso (ou se este não é interposto pela parte legitimada), sanada está, pela preclusão ou coisa julgada formal, a nulidade (que no caso é relativa), não podendo o Tribunal dela conhecer, em respeito ao efeito devolutivo.

Em contrapartida, caso a parte autora faça idêntico pedido e o juiz, além de condenar ao pagamento dos pretendidos R$ 3.000,00 para o reparo do veículo, entenda por condenar em outros R$ 2.000,00 por força de lucros cessantes (embora isto não tenha sido pedido), haverá, aí sim, nulidade absoluta, já que esta segunda condenação envolve matéria que poderia ser objeto de ação própria.

Vale lembrar que a sentença “ultra petita” pode ser entendida, à luz da teoria dos capítulos da sentença, como contendo dois capítulos diversos, sendo um relacionado ao acolhimento integral do pedido inicial (procedência integral) e no qual inexiste nulidade, e outro restrito ao excesso, este sim dotado de vício (nulidade relativa, salvo hipótese acima destacada). Deste modo, a nulidade estará, sempre, restrita ao excesso (ou seja, ao capítulo que transbordou aos limites objetivos da demanda).

Vale acrescentar que MARINONI, ARENHART e MITIDIERO (2015, p. 451) lembram que algumas sentenças produzem efeitos anexos ou reflexos[74], mesmo que inexista pedido para a respectiva incidência, não havendo que se falar, em tal hipótese, em sentença “ultra petita”.

Não há consenso sobre a diferença entre sentença “ultra petita” e “extra petita”. Para DIDIER, BRAGA E OLIVEIRA, (2018, p. 425), a decisão “ultra petita” guarda parcial ressonância quanto aos pedidos formulados ou aos fundamentos trazidos, já na decisão “extra petita” o magistrado não analisa os pedidos ou os fundamentos trazidos, apreciando outros diversos. Este é o mesmo entendimento de Vallisney de Souza Oliveira (2004, p. 251): “na sentença “ultra petita” o juiz decide o pedido, mas vai além: defere o pedido e aproveita para julgar o que não foi pedido. Na “extra petita” o juiz abstém-se de decidir quanto ao pedido e, no lugar deste, decide acerca de coisa diversa, não pretendida”.

Já Andrea Caraciola (2007, p 282) entende, em contrapartida, ser “extra petita”, além da sentença que se limita a apreciar objeto ou fundamento diverso do demandando, também aquela sentença que “conceder a coisa demandada e mais outra, de forma a decidir causa estranha aquela posta à apreciação judicial”.

A diferença prática entre os entendimentos é pouca, sobretudo se considerarmos a teoria dos capítulos da sentença, porém parece mais acertado entender que será “extra petita” a sentença ou decisão de mérito que foge por completo à demanda, ignorando os elementos que identificam a ação (ou seja, assim será a decisão que não aprecia o pedido, foge dos fundamentos fáticos ou deixa de apreciar a pretensão em relação a quaisquer das partes). Por outro lado, “ultra petita” será a sentença ou decisão de mérito que, apreciando ao menos parte do pedido, dos fundamentos ou, ainda, decidindo em vista das partes, for além, para julgar objeto não demandado, considerar fundamento fático essencial não trazido aos autos ou decidir contra ou a favor de pessoa que não compõe a relação jurídica processual.

“Infra petita”[75], por fim, será a sentença ou decisão de mérito que deixa de analisar pedido, considerar fundamento fático ou, ainda, apreciar pretensão formulada por um dos demandantes ou em face de um dos demandados. A incongruência aqui é negativa, pois há omissão pelo juiz quanto a parte da demanda, em flagrante desrespeito à indeclinabilidade da Jurisdição[76].

Na falta de apreciação de um dos pedidos a decisão precisa ser integrada, não sendo o caso de anulá-la[77], não cabendo em tal hipótese, e diferentemente do que ocorre nas sentenças e decisões “ultra” e “extra petita”, ação rescisória, pois a coisa julgada não atinge aquilo que deixou de ser apreciado.

É “infra petita” a decisão que, afastando o pedido principal, deixa de analisar o pedido subsidiário, assim como também o é aquela que não analisa pedido implícito. Cabe destacar que a análise dos pedidos implícitos decorre de imposição legal e sua formulação é presumida (também por força de lei), motivo pelo qual não constituem eles exceção ao princípio da congruência (ao contrário, e como dito, a falta de sua expressa apreciação conduzirá ao vício em análise).

Em adendo, é ainda “infra petita” a sentença genérica (ilíquida) se o respectivo pedido inicial for determinado:

Na hipótese de pedido determinado, incidirá em julgamento “citra petita” o juiz que profere sentença genérica e determina a apuração do quantum em liquidação de sentença uma vez que deveria ter esgotado a prestação jurisdicional de acordo com a vontade do demandante (OLIVEIRA, 2004, p. 271).

5.2 O PRINCÍPIO DA CONGRUÊNCIA E A DEFESA DOS INTERESSES METAINDIVIDUAIS 

O princípio da congruência aplica-se às ações coletivas, inclusive às ações civis públicas: “A ação coletiva também está sujeita à observância do princípio da congruência, segundo o qual o juiz deve decidir a lide dentro dos limites do pedido” (LEYSER, 2007, p. 134). Também neste sentido pontua ZAVASCKI (2017, p. 71) que

na ação civil pública, a procedência do pedido importará, conforme o caso, outorga da tutela jurisdicional geral ou específica, líquida ou ilíquida, condenatória, declaratória, constitutiva mandamental ou executiva, mediante sentença que seja congruente com a natureza do que foi postulado.

No entanto, não se pode ignorar a natureza dos interesses aqui tutelados. Como já analisado, há uma relevância social presumida, que conduz, como regra, à indisponibilidade do direito, circunstância que restringe consequentemente a esfera de liberdade do legitimado coletivo ao formular a pretensão inicial.

O autor, na ação civil pública, deve postular a medida que melhor e integralmente resguarde o bem da vida que pretende tutelar[78], observando sempre a ordem prioritária consistente na prevenção, reparação e, por fim, como medida última, no ressarcimento, pois não lhe é dado dispor do interesse[79].

Deste modo, se em uma ação individual pode o autor preferir o ressarcimento à reparação, não poderá o Ministério Público ou o Município, em ação civil pública, postular, diante de dano ambiental, verba indenizatória no lugar da recomposição do dano.

As assertivas acima conduzem à conclusão de que o juiz tem, nas ações civis públicas, mesmo que formulado pedido determinado[80], considerando a inafastável necessidade de interpretar o pedido à luz do interesse que fundamenta a demanda e diante do todo da postulação, maior  liberdade quanto à adoção das medidas que se mostrarem pertinentes à satisfação do direito. Isto conduz não apenas à possibilidade já admitida legalmente (e antes analisada)[81], de se adotar providência diversa da requerida nas sentenças (e decisões de mérito) que reconhecem a exigibilidade de obrigação de fazer, não fazer e dar, mas também à flexibilização do dever de congruência[82] em relação à natureza do provimento jurisdicional e ao próprio pedido mediato, sempre que isto se fizer necessário para uma tutela justa e efetiva.

Não é outro o entendimento defendido por CALDEIRA (2006, p. 179): “nas demandas coletivas, é possível perceber que tais limites serão inevitavelmente flexibilizados, permitindo ao juiz fugir daqueles lindes traçados pelo pedido apresentado originalmente pelas mãos do autor”.

Não se está a dizer, cabe frisar, que há integral liberdade judicial por ocasião da prolação das sentenças (ou decisões de mérito) nas ações civis públicas, pois, como já se disse, aplica-se também para tais ações o princípio da congruência, sendo imperioso, portanto, que o magistrado se atente aos limites traçados pelo demandante, inclusive quanto ao pedido. Porém, “tais limites podem sofrer variações ao longo do processo, sem que com isso se caracterize uma decisão nula” (CALDEIRA, 2006, p. 179).

Sendo assim, a apreciação judicial do pedido nas ações civis públicas deve ter em vista que a pretensão inicial obrigatoriamente envolve a tutela efetiva e integral do direito difuso ou coletivo ameaçado ou lesado, entendendo-se, por consequência, que o legitimado coletivo pretendeu a medida mais adequada para tanto, com observância da já mencionada ordem de preferencia entre as tutelas concretamente possíveis (preventiva, reparatória e ressarcitória).

Podemos imaginar, desta forma, que o autor coletivo, após narrar um dano ambiental, peça, ao final, mera indenização, por entender que o dano já se consolidou e não é possível a recomposição da área atingida. No entanto, ao longo da instrução, após perícia técnica, verifica-se que parcela da área ainda não foi alcançada pelo dano, embora seja isto iminente, e que, mesmo em relação à área atingida, é possível a recomposição. Nada obstaria, em tal hipótese, que o juiz concedesse tutela inibitória (voltada a prevenir o dano) cumulada com a determinação para recomposição da área já atingida, deixando de lado, portanto, o pedido inicial que objetivava, como dito, o mero ressarcimento. Não há incongruência, pois houve observância do interesse difuso que se queria tutelar, sendo adotadas as providências a tanto mais pertinentes, conforme presume-se ser o real desejo do autor. A pretensão foi interpretada de forma sistemática e lógica, procedendo o juiz à correlação instrumental necessária entre seu objeto imediato e mediato.

Seguindo a mesma linha de raciocínio, pode-se imaginar outro exemplo hipotético. Se o autor coletivo narra determinada publicidade enganosa ou abusiva, asseverando, ao longo da postulação os malefícios dela decorrentes aos consumidores e a consequente necessidade de sua cessação, mas ao final postula mero dano moral coletivo, nada impede que a sentença imponha também obrigações de fazer e não fazer, consistentes na retirada da publicidade e na proibição de sua repetição futura. Assim como no caso anterior, bem interpretado o pedido, à luz da postulação, e considerando o interesse difuso a ser tutelado, adotaram-se as providencias que concretamente permitiriam alcançar uma tutela efetiva, com satisfação plena do interesse, bastando, para isto, que o juiz observe o contraditório, colocando para debate entre as partes as medidas que vislumbrar necessárias.

Desta forma, reinterpretado o princípio da congruência nas ações civis públicas, conclui-se pela possibilidade de o juiz deferir providencia jurisdicional diversa (inclusive quanto à natureza) da postulada, bem como conceder resultado não requerido expressamente, “o que será permitido no processo coletivo com fundamento na supremacia do interesse objeto da demanda” (CADEIRA, 2006, p. 80). E isto não implica propriamente distanciamento ao pedido inicial, desde que a providência jurisdicional esteja adstrita ao interesse coletivo ou difuso cuja tutela se pretendeu e com os fatos narrados pelas partes, harmonizando-se com a vontade real do demandante e com a indisponibilidade do direito em litígio, e desde que, por fim, seja respeitado o contraditório.

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Sobre o autor
Thomaz Corrêa Farqui

Juiz de Direito. Mestre em Direito pela PUC/SP

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

FARQUI, Thomaz Corrêa. Princípio da congruência e ação civil pública. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5920, 16 set. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/75617. Acesso em: 23 dez. 2024.

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