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Crimes digitais: o crime de pornografia de vingança e pornografia infantil na internet

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18/11/2019 às 13:30
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3. REVENGE PORN OU PORNOGRAFIA DE VINGANÇA: VIOLÊNCIA PSICOLÓGICA GRAVE E INTENCIONAL

Conforme já mencionado, o desenvolvimento tecnológico traz um estreitamento das relações humanas, facilitando as comunicações em massa, sem qualquer problemática em relação à distância existente entre os interlocutores.

Tal estreitamento facilita a disseminação de todos os tipos de conteúdo, sendo esta facilidade explorada também no campo da sexualidade.

O compartilhamento de mídia íntima é algo que atualmente abrange todos os grupos sociais e etários, sendo amplamente utilizado para manter relacionamentos, criando laços de intimidade e cumplicidade entre casais.

Os problemas, no entanto, surgem quando esses laços são quebrados, uma das partes se mostra descontente com a situação e busca atingir a outra, divulgando os conteúdos que foram trocados no curso de uma relação de confiança.

Nesse contexto, surge a chamada pornografia de vingança, que se resume no compartilhamento de imagens de cunho sexual de terceiros, sem a sua autorização, buscando atingir diretamente sua dignidade, uma vez que, em regra, o criminoso encontra-se descontente com o término de uma relação afetiva.

Tal exposição não consentida trata-se claramente de uma situação de violência, já que a conceituação de violência não deve ser restrita à existência de danos físicos à vítima.

A violência empregada na situação descrita vai além de simples danos externos ou visíveis, já que aqui há um ataque direto à honra, moral e intimidade da vítima, sendo que esta acaba por sofrer, de igual ou pior modo, as consequências de um ataque físico.

Justamente pela natureza da violência, a pornografia de vingança trata-se de um assunto delicado e de difícil exemplificação prática, não sendo amplamente denunciada e nem mesmo precavida, vez que a atual moralidade social impede a ampla discussão do tema.

3.1. Conceito e histórico

A chamada pornografia de vingança tem uma conceituação simples, já que se trata, basicamente, de exposição sexual não consentida de terceiros, cujo material exposto geralmente foi trocado em uma situação de confiança, e que o agressor, estando descontente com o fim de tal relação, busca atingir a moralidade e a intimidade da vítima utilizando de tal exposição como meio.

Há, no entanto, diversas nomenclaturas utilizadas para delimitar o tema, sendo neste trabalho, por conveniência, adotada a nomenclatura “pornografia de vingança”, apresentando-se como a mais adequada para dar visibilidade ao tema.

Outras nomenclaturas amplamente utilizadas são o próprio “revengeporn”, tradução em inglês literal de pornografia de vingança; vazamento de imagens íntimas; “sexting” / exposição íntima; violação de privacidade; disseminação não consensual de intimidade; etc., toda referentes ao mesmo conceito acima tratado.

Dessa forma, verifica-se que a nomenclatura pouco importa no presente caso, sendo necessária apenas a compreensão do tema e sua extrema gravidade.

Nos casos mais comuns, vídeos e fotos gravados pela vítima, sobretudo mulheres, em um contexto de intimidade dentro de uma relação afetiva e de confiança, sem jamais pretender alcançar o público, são disponibilizados na rede para terceiros, sem qualquer consentimento da vítima, geralmente cumuladas com informações pessoais desta, com o intuito de humilhação pública, por conta de, em regra, a vítima ter dado fim ao relacionamento das partes.

Tal ato de violência causa consequências drásticas à vítima, como será visto adiante, dando início ao ciclo conhecido pela teoria feminista como “slut – shaming”76.

No contexto histórico, é complicado estabelecer um início para qualquer tipo de delito, entretanto, cabe ressaltar que, em 2000, o pesquisador italiano Sergio Messina relatou um crescimento entre os usuários da Usenet77, de um marcador que se destacava entre os marcadores tradicionais de pornografia, intitulado de “realcorepornography” ou seja, pornografia amadora, em tradução livre, que se tratavam, basicamente, de fotos e vídeos de ex-companheiras dos usuários do site, compartilhadas entre os próprios membros78.

A partir desse fato, tornou-se recorrente a existência de mídias digitais não consentidas na internet, tornando-se comum em sites destinados à pornografia marcadores que apresentam conteúdos não autorizados.

Já em 2010, é fixada a primeira sentença de condenação com pena de prisão pela publicação online de conteúdo pornográfico que buscava a vingança.

O ato processado se tratava de um indivíduo que, após o término de seu relacionamento com a vítima, decidiu invadir a conta pessoal dela na rede Facebook, trocando sua foto de perfil por uma em que ela estava nua, enviada na época do relacionamento entre as partes, modificando posteriormente a senha de acesso à conta, de modo que impossibilitasse que a vítima apagasse a imagem.

Após doze horas da publicação, a plataforma apagou a conta invadida. No entanto, a imagem já tinha sido disseminada milhares de vezes, tendo viralizado por toda a internet79.

A pornografia de vingança tornou-se comum, porém só ganhou visibilidade após a criação do site “IsAnyoneUp”, que em tradução livre seria “tem alguém afim?”, plataforma que permitia aos usuários o envio de imagens de pessoas (sobretudo mulheres) nuas e, mesmo sem autorização das mesmas, disponibilizava tal material aos usuários, de forma livre. Tal plataforma, auto-intitulada “especialista em pornografia de vingança”, também foi o primeiro site a incluir, junto com as imagens, dados pessoais da vítima, que permitiam sua identificação de forma facilitada80.

O site acima citado possuía cerca de 350 (trezentos e cinquenta) mil visualizações diárias, com um lucro de mais de trinta mil dólares em umúnico mês, disponibilizando diariamente imagens de cerca de quinze a trinta vítimas diferentes81.

Cabe ressaltar que tais vítimas, em sua maioria, alegavam que as imagens disponibilizadas tratavam-se de manipulação, sendo que jamais estiveram na situação retratada na imagem que o site as colocava como referência82.

Mesmo diante de tantas situações ao longo dos anos que tornavam necessária a tipificação da violência como delito, somente em 2014 foi aprovada a tipificação de tais atos, sendo Israel o primeiro país a tomar tal iniciativa83.

Porém, mesmo sem tipificação específica, houveram diversas condenações por conta de exposição não consentida, por óbvio, fundamentadas em outros tipos penais.

Como exemplo, pode ser citada a condenação de Kevin Bollaert, em 2015, no estado da Califórnia (EUA) a dezoito anos de prisão por crimes relacionados a roubo de identidade e extorsão.

Bollaert gerenciava duas páginas na internet, uma denominada “UGotPosted”, ou “você foi postado” em tradução livre, que convidava “amantes rejeitados e hackers” a enviar anonimamente imagens de mulheres nuas como vingança pelo término do relacionamento. Tal site expôs, entre 2012 e 2014, mais de dez mil pessoas, sendo a maioria absoluta mulheres. O site exigia que os anônimos enviassem, junto com as imagens, a identificação pessoal da vítima84.

O outro site administrado por Bollaert denominava-se “ChangeMyReputation”, que em tradução livre é “alterar minha reputação”, que cobrava entre $250 a $300 dólares das pessoas cujas fotos estivessem em sua outra plataforma, como condição para retirada do material pornográfico de circulação85.

Tais casos trouxeram para a sociedade um intenso debate sobre o tema, sendo que diversas plataformas, em especial as redes sociais, iniciaram projetos de conscientização e mudança de políticas de privacidade, com o fim de resguardar possíveis vítimas da pornografia de vingança.

No Brasil, assim como na maioria do mundo, a pornografia de vingança ainda não possui tipificação própria, porém, há diversos programas de proteção já utilizados ou em análise, que tratam o tema de maneira mais aberta possível, incentivando a denúncia e facilitando-a, vez que atualmente existem diversos canais para realização das denúncias de forma simples e segura.

Tais canais facilitam até mesmo a verificação de casos existentes no ano. De acordo com um levantamento realizado pela Safernet Brasil, em 2014 o número de vítimas da pornografia de vingança foi superior ao dobro da quantidade de vítimas dos últimos dois anos. Essa mesma pesquisa indicou que a Safernetatendeu101 (cento e um) casos de pornografia de vingança no ano de 2013, sendo esses números muito superiores aos de 2012, quando a plataforma atendeu 48 (quarenta e oito) pedidos de ajuda.

Diante de tais dados, verifica-se que a quantidade de casos de pornografia de vingança cresce no decorrer dos anos, tornando-se necessária uma maior e mais efetiva regulamentação, em especial, a tipificação penal específica, já que no Brasil, especialmente, o fato é tratado tão somente como crime contra a honra, tipo penal que não se mostra suficiente para a gravidade do caso.

Além disso, faz-se necessária a conscientização social como um todo, de modo a evitar o delito e amenizar os danos decorrentes deste, vez que a atual estrutura da sociedade não costuma ser muito receptiva às vítimas de crimes sexuais.

3.2. Construção social do crime

Conforme já mencionado, um dos principais fatores que levam a vítima a não denunciar é, justamente, a percepção social do delito.

Na maioria das vezes, ao contrário do que deveria acontecer, a vítima de pornografia de vingança é apontada como culpada do delito, sendo humilhada pela sociedade que deveria acolhê-la.

Tal fato se dá por conta do equivocado entendimento de que o crime somente ocorreu pela suposta promiscuidade da vítima, que se expôs quando deveria ter se resguardado.

Esse entendimento é extremamente cruel, vez que a mesma sociedade que incentiva a exposição do corpo feminino, seja por meio de comerciais pagos ou até mesmo em redes sociais privadas, afirmando a necessidade de a mulher aceitar seu corpo e se orgulhar dele, também aponta como um ato de promiscuidade tal exposição, quando feita em uma situação de intimidade.

Temos, portanto, um complexo ponto contraditório entre a exposição dos corpos femininos como algo importante e belo e a exposição que destrói vidas. De forma simplista, pode-se imaginar que a diferenciação estaria justamente no consentimento.

Porém, resumir a diferenciação entre beleza e dor somente no consentimento, é um tanto quanto equivocado, ainda mais quando se culpa a vítima que, no primeiro exemplo, é vista como modelo de coragem feminista e no segundo como promiscua.

Tal equívoco é visto especialmente quando nos deparamos na mesma situação tendo como vítima um indivíduo do sexo masculino.

Quando algo do gênero ocorre tendo como vítima uma mulher, tão logo há o vazamento das imagens, há grande repercussão negativa, sendo tais imagens relacionadas de imediato a sites de conteúdo pornográfico, bem como uma quantidade alarmante de comentários que vão de “coitada” até comentários que culpam a vítima pelo ocorrido.

Verifica-se também que há diversos casos em que as imagens vinculadas a conteúdos pornográficos são decorrentes de trabalhos de atrizes que não produzem conteúdo adulto, tendo sua arte deturpada de modo que os usuários possam consumir o material divulgado após suas buscas insanas nas redes pornográficas.

Porém, quando a vítima é do sexo masculino, a forma como é tratado o vazamento muda completamente. Os comentários na rede são, na grande maioria das vezes, relacionados a elogios, tendo no máximo algumas “piadas” relacionadas, nunca ridicularizando a vítima. Da mesma forma, dificilmente tem-se a exposição deturpada de um homem em redes de materiais pornográficos, estando estes imunes ao risco de ter sua arte utilizada para fins que não aqueles iniciais.

Quando a vítima é do sexo masculino, vê-se claramente que rapidamente há um esquecimento coletivo quanto o caso, sendo que até mesmo a vítima ignora tal fato ou somente se manifesta no sentido de que “foi uma fatalidade”, já que dificilmente terá sua honra questionada.

Dessa forma, fica óbvio que a forma como é visto o delito e suas consequências posteriores está amplamente relacionado ao modo como a sociedade interpreta o delito, sendo que a ignorância social dificulta até mesmo a solução do problema, tornando a vítima do sexo feminino, em especial, uma vítima não só da pornografia de vingança, mas também de uma sociedade machista e retrógrada.

3.3. Pornografia de vingança como violência de gênero

Primeiramente, para se entender a pornografia de vingança como uma clara forma de violência de gênero, é necessário se delimitar o que viria a ser gênero em um contexto isolado.

Gênero, de modo geral, é o sexo social definido, independente do sexo biológico. De forma superficial, costumamos tratar gênero e sexo como se iguais fossem,delimitando-os como simplesmente “masculino e feminino”. Porém, há diversas outras formas de gênero reconhecidas pela sociedade moderna, o que não vem ao caso no presente trabalho86.

Em um contexto mais restrito, tratando especificamente do tema ora abordado, verifica-se que o as principais vítimas de ataques tendo como meio de execução a pornografia de vingança são as pessoas pertencentes ao gênero feminino, caracterizando tal delito como uma espécie de violência de gênero.

Outro ponto a ser esclarecido é quanto a violência de gênero em si, que pode ser definida como aquela exercida por um sexo sobre o sexo oposto. Percebe-se que quando o sujeito passivo pertence ao gênero feminino, temos uma exemplificação de violência contra a mulher.

Nesse contexto, a violência de gênero não pode ser vista tão somente como uma forma de transgressão de regras, se mostrando também como um meio de reafirmação de poder em situações de ameaça e representações ligadas à identidade, que surgem principalmente em relações em que há presença de intimidade.

Assim, conforme já exemplificado, a pornografia de vingança, considerada como violência de gênero, é a demonstração do poder masculino sobre o corpo feminino, sendo essa demonstração vista como modo de subordinação.

O resultado dessa forma de violência é a culpabilização da vítima, já que no cerne de uma cultura extremamente machista, nota-se a ideia de que é dever da mulher se preservar, ser recatada e resistir aos impulsos sexuais, ou seja, qualquer ato relacionado ao sexo serve tão somente para o deleite masculino, devendo a mulher resguardar sua imagem a qualquer custo.

Tendo essa ideia como regra, a sociedade impõe a pornografia de vingança como violência de gênero, sendo recorrentemente usada esta forma de violência como forma de exercício de poder do homem sobre o corpo feminino, cabendo a ele julgar o que deve ou não fazer com a demonstração da sexualidade da mulher que, na maioria das vezes, trata-se de sua ex–companheira.

3.3.1. Consequências do crime

Assim como ocorre com a maioria maçante dos crimes ocorridos em meios digitais, o delito que utiliza a rede como meio de execução dificilmente se restringe a um único tipo penal, bem como, raras vezes, fica restrito a tão somente o fim que o delito teoricamente buscaria.

No caso específico da pornografia de vingança, vê-se que as consequências do delito não ficam restritas tão somente à exposição da intimidade da vítima, vezque este fato é só o responsável por desencadear outras diversas consequências que, por vezes, são extremamente mais graves que a simples exposição íntima.

Os resultados da exposição íntima não consensual vão além das narradas em uma sentença condenatória que julga o caso concreto devidamente denunciado. Há consequências alarmantes não passíveis de resolução pelo judiciário, incluindo um desgaste emocional gigantesco por parte da vítima quando do desenrolar do processo.

A vítima, além de ter que lidar com um processo judiciário que lhe traz desgaste emocional relevante, ainda tem que conviver com os apontamentos diários da sociedade que a coloca como tão culpada quanto ou até mesmo mais culpada que o agressor.

Muitas mulheres vítimas da pornografia de vingança simplesmente abandonam aspectos importantes de sua vida, bem como deixam de praticar atividades rotineiras, simplesmente pelo fato de que sabem que serão apontadas pela sociedade por anos.

Se houver denúncia, o processo acaba, a condenação simplista termina, mas a vergonha permanece. A humilhação diária persiste. E a vítima, muitas vezes, desiste de sua vida para buscar o esquecimento, que jamais ocorre.

Casos de suicídio após relatos de pornografia de vingança são comuns e, mesmo havendo certa comoção, não há qualquer mudança social que de fato mude tal situação e traga às vítimasmaiores chances de lidar com a situação.

Recentemente, a italiana TizianaCantone87 cometeu suicídio, chocando o mundo inteiro, após um episódio de exposição não consentida de imagens íntimas. A jovem, após ser vítima do delito, deixou o emprego, mudou-se de cidade e buscou o esquecimento que jamais ocorreu, permanecendo a humilhação e as ameaças, fazendo com que a mulher, de apenas trinta e um anos, retirasse a própria vida em busca de paz.

Em 2013, no Brasil, em um curto espaço de tempo, duas adolescentes de 17 e 16 anos suicidaram após serem vítimas do delito88. No caso da adolescente Julia, de 17 anos, os pais somente tiveram conhecimento dos fatos que a levaram a tirar sua vida após sua morte, quando um primo da vítima recebeu o conteúdo sexual não autorizado89.

A jovem anunciou seu suicídio nas redes sociais, descrevendo claramente a extensão de seu sofrimento, sem que, no entanto, externasse as motivações. O vídeo que continha cenas de sexo entre a adolescente e terceiros chegou a ser divulgado para venda em alguns sites, demonstrando a extensão dos danos causados à vítima e, após sua morte, à própria família90.

Casos como os relatados, em especial o da adolescente Julia que suicidou sem externar aos familiares e nem à justiça a motivação de sua dor, demonstram que o machismo continua enraizado na sociedade e a consequência óbvia de se externar uma situação como a narrada, sobretudo se tratando de uma adolescente, seria o apontamento da mesma como culpada de sua própria desgraça, trazendo a ela a sensação interminável de inferioridade.

Não há amparo social às vítimas de pornografia de vingança. Não há qualquer empatia da comunidade em relação ao sofrimento de mulheres que têm sua intimidade exposta a milhares de pessoas desconhecidas. O que se vê, ao contrário do esperado, é uma sucessão de humilhações diárias à vítima, que não tendo qualquer perspectiva de paz, toma decisões trágicas para acabar com a tortura diária.

Jáas vítimas que não recorrem ao suicídio como forma de solucionar o problema, têm que lidar com o permanente apontamento social, com a humilhação diária, a dificuldade de se conseguir um emprego ou um relacionamento saudável, com a baixa autoestima, etc., sendo obrigadas a conviver com as consequências de um delito no qual figuraram como vítimas, tão somente pelo fato de serem mulheres.

Percebe-se que a falta de empatia quanto aos cuidados a se ter com uma vítima de exposição sexual não consentida se inicia no próprio atendimento à vítima nas delegacias de polícia, que na maioria das vezes não possuem estrutura para lidar com uma situação tão delicada quanto a narrada.

As delegacias de polícia, especializadas ou não, enfrentam diariamente uma infinidade de casos, não possuindo, no entanto, estrutura para atender com maior foco uma demanda em específico. Tal fato cumulado com a necessidade de amparo psicológico da vítima desse tipo de violência resulta em um abalo emocional ainda mais grave à mulher, que, após seu primeiro contato com a Justiça, se vê desamparada, sentindo-se ainda mais culpada e envergonhada pelo delito do qual fora vítima.

Justamente por este motivo, buscando maior amparo à vítima, há alguns programas de apoio que atualmente tentam garantir certo conforto à mulher, como o Projeto Acolher desenvolvido pelo Ministério Público, que visa trabalhar com as consequências da violência91.

No mesmo sentido, atualmente as delegacias de polícia têm enviado as vítimas de violência doméstica, de modo geral, a atendimentos especializados no CRAS (centro de referência de assistência social), com o fim de garantir o mínimo de apoio psicológico à vítima.

Além dos órgãos públicos, diversas ONGs e empresas privadas, em especial as hospedadas na internet, prestam auxílio direto às vítimas de violência do tipo, amenizando alguns dos possíveis resultados do delito.

Entretanto, é necessário muito mais do que suporte superficial às vítimas para reduzir as consequências do fato. É preciso uma comoção social, no sentido de amparar ao invés de humilhar ainda mais a mulher exposta na rede.

É preciso que a vítima saiba que terá o apoio da família e da sociedade para se reerguer após tal episódio e, sobretudo, saber que haverá justiça, com o intuito de ao menos trazer certo conforto à vítima, buscando impedir novas tragédias como as que aqui foram relatadas.

3.4. Aplicação legal

A pornografia de vingança é um tema que apresenta um debate recente, mesmo havendo casos relatados muito antes de qualquer discussão, demonstrando que o fenômeno não é tão recente quanto a comoção social.

Mesmo sendo o tema discutido após diversos relatos de casos, com conclusões graves como o suicídio das vítimas, a sociedade bem como o Estado restringem a discussão tão somente na possibilidade de punir o agressor, elevando-se penas já existentes, criando tipos penais, etc.

Não há, por outro lado, a busca pela discussão sobre as causas de tal delito, sem se pensar no que de fato leva um indivíduo a utilizar da sexualidade alheia para causar-lhe danos e o que leva a sociedade a encarar tal fato como uma forma de culpabilização da mulher, humilhando-a ainda mais.

Sem tal discussão, não se busca evitar novos casos, apenas punir aqueles que ocorrerão. Verifica-se com esse fato uma certa conformação do Estado no que tange à existência de delitos que envolvam a sexualidade da mulher, o que é grave, já que os números de casos só crescem ano após ano, vitimizando cada vez mais mulheres ao redor do mundo.

Conforme exposto, diversos são os projetos de lei que buscam tipificar de forma especifica o tema, tanto na esfera penal quanto na cível. No mesmo sentido, a mídia tem trabalhado no sentido de incluir o viés punitivista do debate, convencendo a sociedade de que a única forma de solucionar o problema é tornar a condenação penal mais rígida.

Obviamente, a punição dos agentes causadores do dano é necessária para o alcance da justiça e para trazer certo conforto à vítima. Também é claro que a punição traz à sociedade a possibilidade de certo receio quanto ao cometimento de delitos, tendo em vista a grande chance de segregação penal.

No entanto, a punição pura e simples, em especial no âmbito penal, não se mostra totalmente eficaz para resolução do problema. Sabe-se que, historicamente, a justiça criminal é ineficaz para a proteção das mulheres, tendo em vista que não há um respeito às particularidades da vítima e da situação em si.

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O sistema penal isolado não traz às vítimas a possibilidade de entender sua posição como vítima e muito menos de ter condições de conviver com esse fardo, já que o sistema penal está puramente vinculado à punição do criminoso, não escutando os interesses da vítima.

O sistema não apenas é estruturalmente incapaz de oferecer alguma proteção à mulher, como a única resposta que está capacitado a acionar – o castigo – é desigualmente distribuído e não cumpre as funções preventivas (intimidatória e reabilitadora) que se lhe atribui. Nesta crítica se sintetizam o que denomino de incapacidades protetora, preventiva e resolutória do SJC [Sistema de Justiça Criminal]92

O sistema jurídico em geral não só ignora as particularidades da vítima como também colabora para a dupla violência da mulher, tendo em vista a falta de preparação dos diversos órgãos colaboradores da justiça.

Em geral, quando procuram auxílio, as mulheres costumam ser ainda mais humilhadas e desacreditadas, reforçando o sentimento de culpa que estas carregam em relação ao delito. Dessa forma, a busca pela justiça acaba por ser uma nova experiência de domínio e opressão93.

Assim, percebe-se que seja qual for o caminho escolhido pela vítima de exposição sexual não consentida, este será, via de regra, um espaço dominado pelo machismo social, estando seus interesses à mercê de um sistema sobretudomasculinizado, que pouco entende ou se importa com as necessidades da mulher vítima de uma dominação claramente evidente.

Não há no sistema jurídico penal qualquer papel empoderador da mulher vítima, sendo que o Estado retira o conflito das mãos da vítima e toma-o para si, resumindo sua atuação tão somente na penalização do agressor pela perturbação da lei, sem se preocupar, no entanto, nas consequências físicas e mentais arcadas pela vítima.

A pena imposta pelo Estado perde sua legitimidade porque não guarda nenhuma relação com a pessoa efetivamente prejudicada no conflito. A vítima sofre o mesmo processo de privação de identidade que o delinquente; suas expectativas não são levadas em conta. O Estado substitui a vítima sem levar em conta suas necessidades94.

Sendo assim, o que ocorre é o simples apagamento da vítima e atenção exclusiva ao agressor, reforçando, com isso, o simbolismo da extrema dominação masculina, já que conduz a mulher ao seu lugar passivo.

Não há nada mais humilhante e menos empoderador para uma mulher do que buscar pela justiça no sistema criminal, com o intuito de retomar sua autonomia e se deparar novamente com sua inferiorização.

Percebe-se, com isso, que o sistema jurídico, da forma como atualmente se apresenta e até mesmo no caso de se estruturar no sentido que os projetos de lei adiante mencionado apontam, jamais estará a serviço das mulheres, reduzindo-as tão somente como vítimas de delitos que, de forma conformista, acontecem em um sistema patriarcal como o atual.

3.4.1. Consequências cíveis

Independentemente da existência de legislação específica acerca do tema, atualmente o sistema jurídico brasileiro prevê a responsabilização daquele que, por ação ou omissão, causa prejuízo a terceiros.

Tais responsabilizações têm previsão no ordenamento jurídico, tanto na esfera constitucional quanto na cível e penal, cabendo ao ofendido buscar a tutela que mais seja cabível aos seus interesses.

Conforme bem esclarece Carlos Alberto Bittar, a reação do indivíduo pode ter como objetivo: 1. Fazer cessar a práticas lesivas; 2. Apreender os materiais derivados dessa prática lesiva; 3. A imputação de uma pena ao agente que praticou o ato lesivo; 4. A reparação dos danos, tanto morais quanto materiais; 5. Persecução criminal do agente que cometeu o ato ilícito95.

Quando o ofendido busca seus direitos na esfera cível, a tutela se dá “por meio de instrumentos de preservação da pessoa no circuito privado, contra investidas de particulares e na salvaguarda de seus mais íntimos interesses, dentro da liberdade e da autonomia próprias de cada ser.”96

Nesse contexto, qualquer pessoa que sinta seus direitos de personalidade lesados poderá recorrer ao judiciário na esfera cível, utilizando do Código Civil Brasileiro, em especial o artigo 12 da lei97, exigindo a cessação da ameaça ou lesão de direito de personalidade, podendo, a seu critério, reclamar perdas e danos, sem prejuízo a outras sanções previstas em Lei.

Em relação aos direitos de personalidade resguardados na esfera cível, tem-se a tutela ressarcitória e a tutela inibitória98, responsáveis por indenizar a vítima de um delito e inibir novas práticas, respectivamente.

Nesse sentido, entende Fernanda Borghetti Cantali que o artigo 12 do Código Civil está em total harmonia com o objetivo de se ampliar a proteção cível aos direitos de personalidade, sendo clara a busca de promover a tutela de tal direito nas mais diversas situações jurídicas:

Nesse sentido, a norma prevê, ao lado da tradicional tutela ressarcitória, a tutela inibitória. E mais, prevê também a possibilidade de utilização de outras sanções previstas em lei. Mostra-se bastante importante a utilização de novos instrumentos de proteção diante da dificuldade e insuficiência dos instrumentos tradicionais em oferecer uma tutela realmente eficaz aos direitos da personalidade, principalmente frente às novas demandas que podem surgir na complexa sociedade atual, pós revoluçãotecnocientífica.99

Em relação à responsabilidade civil, esta pode ser dividida em responsabilidade civil contratual e extracontratual, sendo a primeira existente quando duas ou mais pessoas acertam uma obrigação entre si, por meio de um contrato, e uma das partes descumpre tal contrato causando danos aos demais. Já a responsabilidade civil extracontratual decorre da prática de um ato ilícito, quando não há qualquer relação contratual entre vítima e ofensor100.

Também, em relação a responsabilidade civil, vê-se a classificação de tal em subjetiva e objetiva, tendo como diferenciação a forma como a culpa está empregada.

No caso da responsabilidade civil subjetiva, a culpa é o principal pressuposto da responsabilização. Nesse caso, a vítima somente terá a reparação no caso de comprovação expressa da culpa do ofensor. Já no caso da responsabilidade civil objetiva, não há necessidade de comprovação da culpa, já que a responsabilização será fundamentada no risco101.

Dessa forma, para a caracterização da responsabilidade civil, faz-se necessária a constatação de três requisitos, o dano, a culpa e o nexo de causalidade, identificados no artigo 186 do Código Civil102 e, uma vez presentes os requisitos citados, há possibilidade de o Direito Civil tutelar os direitos de personalidade da vítima afetados pelo ofensor.

Conforme constatado no livro “O corpo é o código”103, o número de ações movidas na esfera cível supera o de ações penais, demonstrando claramente que o maior interesse da vítima é fazer cessar a lesão, não tendo tanta importância a punição do agente causador do dano.

Tais dados sustentam a afirmação de que o necessário, nesses casos não é tão somente editar tipos penais específicos ou majorar as penas e, sim, criar estratégias que impeçam que tal fato continue ocorrendo.

Além disso, verifica-se que a esfera penal, em especial para vítimas de exposição sexual em larga escala, como ocorre nos casos de pornografia de vingança, traz consigo um extenso desgaste emocional, o que busca ser evitado a qualquer custo, tendo em vista todo o desgaste que o delito em si já causou à vítima.

Há diversas barreiras que devem ser quebradas para que haja a responsabilização efetiva dos envolvidos. Isso porque, quando a vítima busca a justiça, ela já passou por uma exposição agressiva e fazer essa exposição ser processada e julgada irá expô-la ainda mais, o que é repudiado pelas vítimas.

Justamente por este motivo, esse tipo de delito não poderá ser solucionado com a simples reestruturação legal, já que, mesmo havendo tipos penais mais rigorosos, indenizações maiores e agilidade na solução da referida questão, ainda assim a grande maioria das vítimas jamais irá recorrer ao judiciário, com receio da maior exposição, com vergonha de ter de expor sua intimidade, mais uma vez, para terceiros desconhecidos.

3.4.1.1. Danos morais como amparo necessário

Conforme já amplamente discutido no presente trabalho, sabe-se que os avanços tecnológicos, por mais importantes que sejam, trouxeram à sociedade alguns problemas pontuais.

A facilidade de acesso e a rapidez de comunicação estreitaram os laços existentes entre os indivíduos, causando, por consequência, certa insegurança tendo em vista a facilidade de disseminação do conteúdo tratado entre particulares para um número incontável de terceiros.

Logicamente, a internet não é a responsável pelos delitos que nela ocorrem, sendo claro que, pelo menos os crimes digitais impróprios, poderiam muito bem serem cometidos fora do ambiente digital. Porém, sua existência facilita enormemente que os danos sejam extremamente maiores do que seriam no caso de o delito ser cometido fora da rede.

Além disso, a era moderna trouxe, principalmente aos jovens, a necessidade de se expor sem pensar nas consequências, diante da ilusória proteção que a máquina traz aos usuários.

Obviamente, tal proteção não é garantida, havendo como resultado da exposição descuidada diversos casos de lesões morais e à imagem, fazendo com que o direito se adaptasse às novas formas de violência.

O grande aumento de casos de violação à intimidade, que trouxe diversos prejuízos à imagem das vítimas, fez com que a Constituição Federal de 1988 se posicionasse de forma a trazer proteção específica ao cidadão nesses pontos, até então ignorados pela legislação.

Dessa forma, diante da clara necessidade de proteção, a intimidade e a imagem foram elevados na Constituição Federal de 1988 a direitos fundamentais invioláveis.

Além de oferecer proteção aos direitos de personalidade afetados pela inovação tecnológica, a nova Constituição também resguardou os direitos à indenização pelos danos morais para os casos em que houver desrespeito aos direitos protegidos, graças à extensão dos danos à vítima.

Sendo assim, a liberdade de agir se limita ao direito à intimidade, vez que o artigo 5º da Constituição Federal de 1988 afirma claramente que a Lei é o limite para a atuação do ser humano, limitando, mais a frente, a violação à vida privada de terceiros104.

Em relação à pornografia de vingança, a aplicação da Constituição é plenamente possível, já que a exposição de imagens de uma pessoa sem o seu consentimento configura uma lesão a sua imagem, passível de indenização pelos danos morais que tenha sofrido.

Percebe-se que a possibilidade de reparação civil não está restrita somente para aquele que iniciou a exposição, sendo plenamente possível a reparação civil por parte daqueles que auxiliaram na propagação da imagem exposta sem consentimento, obviamente, nos limites dos danos causados à vítima.

A indenização prevista e passível de aplicação não se trata somente de reparação do dano. Tem-se também a função social da reparação civil, já que, com a imposição de indenização, o ofensor é de certa forma punido pela violência praticada, demonstrando uma forma de repreensão social que, consequentemente, possui uma conscientização do dever de respeitar a individualidade alheia.

Presume-se que tal repreensão irá fazer com que a sociedade compreenda o dever de exercer seus direitos sem prejudicar os direitos alheios, sob pena de serem repreendidos.

Inevitável considerar a função social da responsabilidade civil, sendo esta eficaz no sentido de servir como exemplo para a sociedade, desmotivando reiteração da conduta ou atitudes semelhantes.

3.4.1.2. O Marco Civil da Internet

Graças à velocidade do avanço tecnológico, por um tempo, a Internet foi considerada como “terra sem Lei”, já que não se mostrava regida pelos princípios constitucionais que a sociedade em geral obedecia.

Entretanto, há necessidade que as informações e relações desenvolvidas no meio digital sigam princípios específicos com o fim de resguardar os seres humanos que dele utilizam. Obviamente, os princípios que resguardam o ser humano não podem ser restritos apenas como garantia de integridade física do cidadão, devendo serem estendidos também às relações no âmbito digital, vez que a internet hoje faz parte do meio social.

Diante de tal necessidade, surge o Marco Civil da Internet, sancionado em abril de 2014, buscando assegurar as relações existentes no ambiente virtual, garantindo, de igual modo, a segurança jurídica dos atos praticados na rede.

O Marco Civil, de forma geral, busca regulamentar pontos conflituosos existentes fora do âmbito penal, trazendo princípios, direitos e deveres para a utilização da Internet, além de trazer regulamentações específicas para casos relacionados a dados, intimidade, privacidade, já que uma vez disseminado conteúdo dessa natureza, este se perpetua de forma rápida e em escala global.

No artigo 3º do Marco Civil há clara presença dos princípios norteadores do uso das redes no Brasil, fundamentando que a Internet está ligada a três princípios basilares: neutralidade da rede, privacidade e liberdade de expressão105:

Art. 3º A disciplina do uso da internet no Brasil tem os seguintes princípios:

I - garantia da liberdade de expressão, comunicação e manifestação de pensamento, nos termos da Constituição Federal;

II - proteção da privacidade;

III - proteção dos dados pessoais, na forma da lei;

IV - preservação e garantia da neutralidade de rede;

V - preservação da estabilidade, segurança e funcionalidade da rede, por meio de medidas técnicas compatíveis com os padrões internacionais e pelo estímulo ao uso de boas práticas;

VI - responsabilização dos agentes de acordo com suas atividades, nos termos da lei;

VII - preservação da natureza participativa da rede;

VIII - liberdade dos modelos de negócios promovidos na internet, desde que não conflitem com os demais princípios estabelecidos nesta Lei.

Parágrafo único. Os princípios expressos nesta Lei não excluem outros previstos no ordenamento jurídico pátrio relacionados à matéria ou nos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.

O princípio da neutralidade da rede está relacionado à responsabilidade pela regulação da utilização da Internet, demonstrando que tudo o que está na rede deve ter tratamento igualitário, sem qualquer distinção. A melhor visualização do princípio citado se dá no artigo 9º do Marco Civil, que demonstra claramente a necessidade de tratamento isonômico na rede.

Art. 9o O responsável pela transmissão, comutação ou roteamento tem o dever de tratar de forma isonômica quaisquer pacotes de dados, sem distinção por conteúdo, origem e destino, serviço, terminal ou aplicação.

§ 1º A discriminação ou degradação do tráfego será regulamentada nos termos das atribuições privativas do Presidente da República previstas no inciso IV do art. 84 da Constituição Federal, para a fiel execução desta Lei, ouvidos o Comitê Gestor da Internet e a Agência Nacional de Telecomunicações, e somente poderá decorrer de:

I - requisitos técnicos indispensáveis à prestação adequada dos serviços e aplicações; e

II - priorização de serviços de emergência.

§ 2º Na hipótese de discriminação ou degradação do tráfego prevista no § 1º, o responsável mencionado no caput deve:

I - abster-se de causar dano aos usuários, na forma do art. 927 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil;

II - agir com proporcionalidade, transparência e isonomia;

III - informar previamente de modo transparente, claro e suficientemente descritivo aos seus usuários sobre as práticas de gerenciamento e mitigação de tráfego adotadas, inclusive as relacionadas à segurança da rede; e

IV - oferecer serviços em condições comerciais não discriminatórias e abster-se de praticar condutas anticoncorrenciais.

§ 3º Na provisão de conexão à internet, onerosa ou gratuita, bem como na transmissão, comutação ou roteamento, é vedado bloquear, monitorar, filtrar ou analisar o conteúdo dos pacotes de dados, respeitado o disposto neste artigo.

No que tange ao princípio da privacidade, este se mostrou indispensável ao Marco Civil, já que é um dos pontos com maior discussão quando o assunto é a evolução tecnológica. A privacidade neste contexto está relacionada diretamente à limitação individual que cada um coloca em suas relações. Não se trata exclusivamente de isolamento individual e sim do respeito à privacidade de suas informações, nos limites que o sujeito achar conveniente.

Tal princípio vem muito bem demonstrado nos artigos 3º, inciso II, 8º e 11 do Marco Civil, que determinam a inviolabilidade da vida privada, em especial no contexto tecnológico106.

Por fim, em relação ao princípio da liberdade de expressão, há clara proteção do direito de manifestar as mais diversas formas de pensamento, da forma como o indivíduo acreditar ser a mais conveniente.

Superficialmente, a liberdade de expressão é “manifestação pública de ideias, opiniões, críticas, crenças, sentimentos, etc., abrangendo, em sua inteireza, quaisquer formas de exteriorização da subjetividade ínsita ao ser humano”107

Há, dessa forma, uma consagração da liberdade individual de se expressar, sem que haja necessidade de permissão anterior ou perigo de censura.

Todos os princípios norteadores das relações digitais são necessários para a responsabilização eficaz nos casos concretos, bem como para a garantia da vida privada de seus usuários.

Sendo claros os princípios norteadores da Internet no Brasil, cabe esclarecer as novidades estabelecidas pelo Marco Civil no que tange às responsabilizações dos envolvidos nos casos de violações de tais princípios.

Em regra, a responsabilização será daquele que feriu diretamente a privacidade da vítima, ou seja, quem publicou ou “vazou” as informações pessoais sem autorização anterior. Porém, há casos em que será possível a responsabilização também do provedor108, quando houver ato ilícito de terceiros e a atividade do provedor possibilitar sua responsabilização solidária.Tais possibilidades vêm descritas no Marco Civil em seus artigos 18 a 21.

Art. 18. O provedor de conexão à internet não será responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros.

Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário.

§ 1º A ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material.

§ 2º A aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor ou a direitos conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da Constituição Federal.

§ 3º As causas que versem sobre ressarcimento por danos decorrentes de conteúdos disponibilizados na internet relacionados à honra, à reputação ou a direitos de personalidade, bem como sobre a indisponibilização desses conteúdos por provedores de aplicações de internet, poderão ser apresentadas perante os juizados especiais.

§ 4º O juiz, inclusive no procedimento previsto no § 3º, poderá antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, existindo prova inequívoca do fato e considerado o interesse da coletividade na disponibilização do conteúdo na internet, desde que presentes os requisitos de verossimilhança da alegação do autor e de fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação.

Art. 20. Sempre que tiver informações de contato do usuário diretamente responsável pelo conteúdo a que se refere o art. 19, caberá ao provedor de aplicações de internet comunicar-lhe os motivos e informações relativos à indisponibilização de conteúdo, com informações que permitam o contraditório e a ampla defesa em juízo, salvo expressa previsão legal ou expressa determinação judicial fundamentada em contrário.

Parágrafo único. Quando solicitado pelo usuário que disponibilizou o conteúdo tornado indisponível, o provedor de aplicações de internet que exerce essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos substituirá o conteúdo tornado indisponível pela motivação ou pela ordem judicial que deu fundamento à indisponibilização.

Art. 21. O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo.

Parágrafo único. A notificação prevista no caput deverá conter, sob pena de nulidade, elementos que permitam a identificação específica do material apontado como violador da intimidade do participante e a verificação da legitimidade para apresentação do pedido.

Verifica-se que a regra trazida pelo Marco Civil é justamente no sentido de não ser possível a responsabilização do provedor por atos de terceiros. Tal imunidade se justifica por ser o provedor mero instrumento para o acesso à informação, não sendo este responsável direto pela disponibilização do conteúdo lesivo.

Já no que tange às exceções previstas pela Lei, estas se mostram extremamente importantes para garantir e incentivar a retirada de publicidade domaterial lesivo, visto que, quando couber ao provedor a retirada do material, a Lei é clara no sentido de responsabilizar tal provedor pelos danos causados à vítima.

Obviamente, tais exceções foram pensadas justamente no sentido de trazer uma maior garantia à vítima, já que impõe ao provedor a retirada do material quando houver requerimento da vítima.

Independente das conquistas que o marco civil trouxe, cabe ressaltar a dificuldade que o mesmo encontrou ao tentar harmonizar os princípios norteadores da internet, dado que há uma clara contraposição entre o princípio da liberdade de expressão e dos direitos de personalidade.

Em uma leitura superficial do Marco Civil já pode ser percebida uma maior proteção à liberdade de expressão, quando comparado ao direito à privacidade. Marcelo Thompson109 aponta claramente que foi garantida de fato uma maior importância aos direitos relativos à liberdade de expressão em detrimento de outros direitos. Para o autor, priorizar dessa forma a liberdade de expressão não condiz com a realidade do ordenamento jurídico brasileiro, já que aqui os direitos, quando em conflito, devem ser ponderados.

A indignação do autor está claramente relacionada à redação dada ao artigo 19 da Lei 12.965/2014, que somente condiciona a responsabilização solidária do provedor quando este, após intimado por decisão judicial, não retire o material de sua plataforma.

O Marco Civil, em dispositivo redigido por Marcel Leonardi, professor da fundação Getúlio Vargas de São Paulo e, atualmente, diretos de Políticas Públicas do Google Brasil, diz que “a responsabilidade dos provedores de aplicações (como o Google, em diversos de seus sites) só existe quando estes descumprirem ordem judicial; nunca antes”. Mas entre achar um advogado, negociar seus honorários, descobrir quem de fato é o provedor e onde está estabelecido, ter uma petição redigida, ajuizada, obter uma ordem judicial, enviar uma carta precatória para São Paulo ou uma carta rogatória para Londres para fazer cumprir a ordem, notificar o réu e este, dentro de período razoável, tornar o conteúdo indisponível, o conteúdo já foi reproduzido por um, por outro, por centenas de sites na Internet.110

Dessa forma, a retirada do conteúdo lesivo somente seria obrigatória após uma decisão judicial, priorizando o direito à liberdade de expressão do agressor em detrimento aos direitos de personalidade da vítima.

Percebe-se que é temerária tal previsão, em razão de que a internet permite a disseminação imediata e em escala global do conteúdo nela publicado, então, esperar por uma decisão judicial, em um momento onde há sobrecarga do judiciário, somente aumentará os danos causados à vítima.

Sendo assim, prever que a responsabilização dos provedores somente será possível após uma judicialização do fato, vai completamente ao contrário da busca pela solução imediata, demonstrando uma burocratização desnecessária que pode resultar, além da extinção da efetividade da decisão judicial, em danos maiores à vítima.111

Além desse ponto, o próprio artigo 19 traz outra questão que coloca, mais uma vez, a proteção da liberdade de expressão acima dos direitos individuais à personalidade, garantindo uma excludente de ilicitude ao provedor, no caso de ficar demonstrado a impossibilidade técnica de se retirar o material lesivo de sua plataforma.

Obviamente, a previsão de excludente de ilicitude trazida pelo Marco Civil é um ponto extremamente vantajoso ao provedor, uma vez que é quase impossível que terceiros possam delimitar qual seria a capacidade técnica do provedor.

Visto isso, percebe-se que a estruturação da responsabilização dos provedores da forma como se mostra atualmente não é, mais uma vez, uma garantia de eficácia da legislação, sendo necessárias outras abordagens para tornar as previsões legais de fácil e rápida execução.

3.4.2. Consequências penais

Assim como ocorre na esfera cível, quando há disseminação não consensual de imagens íntimas envolvendo mídias digitais, apesar de não haver um tipo penal específico para o caso, há aplicação da lei penal por analogia, utilizando-se, portanto, dos tipos penais já existentes para punir o agressor.

Na esfera penal, em especial, há necessidade de se delimitar a idade da vítima, com o fim de se aplicar a legislação mais cabível ao caso.

Tratando-se de vítima menor de dezoito anos, deverá ser aplicado o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), considerando os tipos penais ali presentes.

Sendo a vítima pessoa com dezoito anos ou mais, será aplicado o Código Penal, mais especificamente os crimes previstos contra a honra, nos casos de difusão da imagem e outros tipos penais, como ameaça, extorsão e estupro, a depender do caso concreto.

Ainda, em ambos os casos é possível a aplicação de tipos penais esparsos, conforme ficará evidenciado adiante.

Em relação à exposição íntima de pessoa com mais de dezoito anos, em regra, aplica-se o tipo penal descrito no artigo 139 do Código Penal112, tendo em vista que, por conta da exposição não consentida, há visibilidade de terceiros. Caso não ocorra a disseminação do conteúdo, sendo o fato restrito entre vítima e agressor, aplicará o artigo 140 do Código Penal113, já que neste caso se trata de crime de injúria.

Da mesma forma, ao analisar o caso concreto, poderá haver a necessidade de aplicação de tipos penais diversos, referentes às condutas praticadas pelo agressor. Tem-se, por exemplo, a aplicação do crime de ameaça, extorsão ou estupro, previstos, respectivamente, nos artigos 147, 158 e 213 do Código Penal114.

Tais tipos penais geralmente são facilmente impostos em momentos anteriores à exposição de fato das imagens, em razão de muitas vezes o agressor tentar utilizar da ameaça de divulgação para obter alguma vantagem.

Em todos os tipos penais descritos há clara possibilidade de aplicação da Lei Maria da Penha, quando houver algum tipo de relação doméstica íntima, atual ou passada, entre agressor e vítima. Ressalta-se que nos casos de aplicação de tal Lei, haverá agravamento das penas impostas no Código Penal, além de que, mesmo sendo caso de crimes de menor potencial ofensivo, como ocorre nos crimes contra a honra, o agressor não poderá ter os benefícios previstos pela Lei 9.099/1995, tendo em vista que o processo não poderá ocorrer nos Juizados Especiais115.

Além dos tipos penais comumente utilizados e abordados, atualmente há algumas leis esparsas que tratam sobre temas específicos que acabam ocorrendo no contexto fático da exposição sexual não consentida na internet.

Dentre as leis, talvez a mais conhecida seja a chamada Lei Carolina Dieckmmann, a Lei 12.737/2012, que alterou o Código Penal, incluindo os artigos 154-A e 154-B, bem como alterou a redação dos artigos 266 e 298 do Código supracitado116.

Tal Lei estabelece a penalização de indivíduo que invade dispositivo informático alheio, o que ocorre em diversos casos de exposição sexual não consentida, tendo em vista que não é sempre que a vítima enviou o material disseminado. Conforme será visto nos estudos de casos, há diversos exemplos de pessoas expostas após obtenção de material íntimo por meio de invasão de dispositivo pessoal.

De fato, não é um tipo penal específico para o caso ora tratado, até porque atualmente não há qualquer tipo específico para o caso. Porém, é um avanço, se considerar que, antes da Lei, não havia previsão específica no Código Penal que tratasse da punição de um dos meios de execução do delito ora tratado.

No contexto do Direito Penal, a verificação do próprio Marco Civil faz-se necessária, tendo em vista que o artigo 21 da Lei demonstra uma exceção à regra da notificação judicial para responsabilização do provedor, possibilitando uma maior segurança da vítima em casos específicos de pornografia de vingança.

Art. 21. O provedor de aplicações de internet que disponibilize conteúdo gerado por terceiros será responsabilizado subsidiariamente pela violação da intimidade decorrente da divulgação, sem autorização de seus participantes, de imagens, de vídeos ou de outros materiais contendo cenas de nudez ou de atos sexuais de caráter privado quando, após o recebimento de notificação pelo participante ou seu representante legal, deixar de promover, de forma diligente, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço, a indisponibilização desse conteúdo.

Parágrafo único. A notificação prevista no caput deverá conter, sob pena de nulidade, elementos que permitam a identificação específica do material apontado como violador da intimidade do participante e a verificação da legitimidade para apresentação do pedido.117

Tal possibilidade de responsabilização sem necessidade de resguardar a segurança jurídica se dá justamente pelo fato de que a pornografia de vingança, ocorrida pela disseminação de imagens da internet, traz à vítima danos irreparáveis, sendo necessário que medidas drásticas sejam tomadas mesmo antes de decisão judicial sobre o feito.

Além disso, conforme já apontado, diante dos fatos concretos é possível a utilização de outros tantos tipos penais dispostos no Código Penal ou em legislação esparsa, cabendo ao Judiciário a análise especifica dos fatos.

Tal análise se torna dificultada pela inexistência de tipos penais específicos, bem como por conta da ignorância da maior parte dos profissionais da área no que tange às situações referentes à pornografia de vingança. Porém, até que algum dos projetos de Lei, que serão especificados adiante, sejam aprovados, o Judiciário continuará atuando de forma a utilizar da analogia para garantir a aplicação da justiça.

3.4.3. Projetos de lei

Diante da inexistência de tipos penais específicos que tratem da pornografia de vingança ou de qualquer outro tipo de exposição sexual não consentida, há atualmente alguns projetos de lei que tratam sobre tais atos, buscando uma forma de penalização mais eficaz para os casos futuros, vez que estes somente vêm crescendo nos últimos anos.

O primeiro projeto de lei sobre o tema foi proposto em 09 de maio de 2013, tendo como autor o então deputado federal João Arruda, de número 5.555/2013118, que visa alterar a Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), sendo que esta passaria a prever expressamente a pornografia de vingança entre os tipos de violência contra a mulher, desde que os fatos fossem passíveis de aplicação da Lei.

Tal projeto, bem como tantos outros apresentados na mesma época, foram impulsionados pela ocorrência de crimes de extrema publicidade e comoção nacional, conforme será abordado a frente. Diante da clara necessidade de legislar e a óbvia gravidade do tema, a apresentação de projetos de Lei visando regulamentar o tema foi o caminho mais simples encontrado pelo Legislativo.

Em 25/06/2013 foi apresentado o Projeto de Lei 5.822/2013119, de autoria da então Deputada Federal Rosane Ferreira, tendo o mesmo objetivo do PL 5.555/2013, tanto que se encontra a ele apensado atualmente.

Já em 23/10/2013, o então Deputado Federal Romário apresentou o PL 6.630/2013, que, embora apensado ao PL 5.555/2013120, busca a modificação do Código Penal, e não da Lei Maria da Penha. Este projeto tem como finalidade a criação de um tipo penal específico121 que criminaliza a exposição sexual sem autorização da vítima.

Um ponto importante previsto pelo Projeto de Lei 6.630/2013, além, é claro, do fato de criar um tipo penal específico para os casos de pornografia de vingança, é que o Projeto de Lei apresentado prevê a aplicação de pena para quem realiza montagens com as imagens das pessoas, ou seja, a imagem publicada não precisa necessariamente ser uma imagem real da vítima, tendo em vista que a manipulação de mídias tem sido recorrente nesse tipo de delito.

Em apenso ao PL supracitado, encontram-se os Projetos de Lei 6.713/2013122, 6.831/2013123 e 7.377/2014124, que de igual forma, visam a tipificação da pornografia de vingança.

Também idêntico ao PL 6.630/2013, o Projeto de Lei 63/2015125, também editado pelo então Deputado Federal Romário, prevê especificamente a punição de casos de exposição sexual não consentida, possibilitando o aumento de pena quando o fim for o de vingança ou humilhação.

Seguindo a mesma ideia do PL 5.555/2013, o PL 170/2015126, a ele apensado, apresentado pela então Deputada Federal Carmen Zanotto, busca modificar a Lei Maria da Penha, incluindo a violação da intimidade da mulher como violência doméstica e familiar.

Apresentado por Iracema Portella, o Projeto de Lei 3.158/2015127 busca incluir um tipo penal específico128com o fim de penalizar casos de exposição pública de intimidade física ou sexual de terceiros. Verifica-se que este Projeto de Lei não trata especificamente de pornografia de vingança, porém, pode ser utilizado para penalização dos autores desse tipo de violência.

O mais recente Projeto de Lei apresentado é o PL 4.527/2016129, editado por Carlos Henrique Gaguim que visa a modificação do Código Penal com o fim de tipificar a divulgação de mídia íntima de mulher, inserindo também a conduta no âmbito protetivo do combate à violência contra a mulher.

Todos os projetos mencionados, de alguma forma encontram-se dependentes do PL 5.555/2013, estando atualmente aguardando apreciação do Plenário.

Verifica-se, portanto, que vários são os Projetos de Lei que tratam sobre o tema da pornografia de vingança, seja de maneira pontual ou geral, tendo como característica dominante a busca pela tipificação penal do delito, demonstrando, mais uma vez a tendência punitivista do legislativo brasileiro.

Percebe-se, de igual forma, a ampla identificação quanto à falta de legislação específica sobre o tema, tendo sido percebido pelo legislativo a conexão entre a violência empregada nos casos de pornografia de vingança e a violência contra a mulher, violências estas que, geralmente se confundem, tendo em vista que a exposição sexual não consentida, na maioria das vezes, traz como vítima a mulher em seu ambiente familiar.

3.5. Casos famosos no Brasil e no mundo

O maior motivo para se discutir sobre o problema da exposição íntima não consentida na internet é, a grosso modo, as diversas ocorrências com grande repercussão. A comoção mundial dos casos relatados também se mostra como motivação para uma análise mais aprofundada sobre o tema, movimentando tanto o legislativo quanto o judiciário.

Por óbvio, questões como essa, por terem como resultado uma exposição viral do delito, facilmente se propagam na mídia, fazendo com que pessoas, até então anônimas (ou não), se tornem mundialmente conhecidas, e justamente pela sua intimidade.

Alguns casos se tornaram mais notórios que outros, sendo estes demonstrados no presente trabalho. Porém, faz-se necessário ressaltar que estes são apenas alguns dos casos que tiveram proporções globais, destacando que tal delito tem apresentado números exorbitantes, aumentando a cada ano as denúncias, que representam apenas parte dos casos reais, conforme já apontado anteriormente.

3.5.1. Prisão de Joshua Simon Ashby

O primeiro caso conhecido de prisão por pornografia de vingança foi o de Joshua Simon Ashby, no ano de 2010 na Nova Zelândia130, condenado a quatro meses de prisão.

O jovem, na época com vinte anos, após um episódio de ciúmes, invadiu a conta da rede social facebook de sua então namorada, publicando uma foto da garota, modificando a senha de acesso ao perfil, de forma que a vítima não pudesse apagar a mídia. Inicialmente a fotografia publicada permitia o acesso tão somente aos amigos da vítima na rede, 218 (duzentos e dezoito) pessoas.

Porém, posteriormente, o jovem tornou a imagem pública, tornando-a visível para milhares de pessoas na internet, possibilitando a viralização da mídia por cerca de doze horas, até que a polícia emitisse uma ordem de retirada.

A imagem foi então deletada do perfil da jovem. No entanto, a mesma foi compartilhada e copiada milhares de vezes, garantindo que os danos à imagem da vítima fossem extremamente extensos.

3.5.2. Caso Francyelle dos Santos Pires

Talvez o caso de maior repercussão no Brasil, em outubro de 2013, uma jovem de então dezenove anos, mãe de uma filha de dois anos, foi vítima de um claro exemplo de pornografia de vingança. Um vídeo em que a jovem que ficou conhecida como Fran mantinha relações sexuais foi compartilhado milhares de vezes pelo aplicativo WhatsApp, viralizando de tal forma que até hoje é possível encontrar cópias da mídia na internet131.

Além do vídeo, foram publicadas na internet as informações pessoais de Francyelle, fazendo com que seu telefone recebesse centenas de mensagens e chamadas diariamente, a maioria destinada a ameaças e propostas de programa.

Até mesmo sua família, amigos e colegas de trabalho foram afetados pelo caso, sendo que na época, sua filha de então dois anos, teve sua imagem amplamente divulgada na internet e suas colegas de trabalho recebiam propostas para encontros pagos.

Talvez o mais repulsivo deste caso seja o fato de que a imagem da jovem virou uma espécie de “meme132” nas redes sociais. De imediato, o caso virou piada na rede, tendo inúmeros compartilhamentos da imagem da jovem vinculados, quase sempre, com frases de desprezo ou de piada.

O responsável pelo vazamento, seu ex–companheiro, o empresário Sérgio Henrique de Almeida Alvez, então com 22 (vinte e dois) anos, fez um acordo com o Ministério Público na ação penal movida contra ele, sendo determinado o cumprimento de cinco meses de serviço comunitário133.

A jovem, que teve que largar seu emprego, seus estudos e mudar até mesmo de aparência, acredita que a pena aplicada não foi o suficiente para um ato que simplesmente destruiu a sua vida. Fran afirma “não ter mais vida” após a repercussão do caso, enquanto que o responsável não teve qualquer consequência severa134.

Ao contrário do que geralmente acontece, Francyelle concedeu diversas entrevistas as mídias de grande circulação, falando abertamente sobre o caso, com o fim de dar mais visibilidade a condição de vítima das pessoas que sofrem esse tipo de ataque.

3.5.3. Caso Rose Leonel

Outro caso de grande repercussão foi o de Rose Leonel, jornalista então com 41 (quarenta e um) anos, que, em 2006, após terminar um relacionamento de quatro anos com Eduardo Gonçalves Dias, teve sua vida destruída pela exposição de suas fotos íntimas na internet.135

O ex namorado, descontente com o término do relacionamento, após várias ameaças à vítima afirmando que acabaria com sua vida, decidiu expor fotos em que Rose aparecia nua, compartilhadas na época em que mantinham um relacionamento.

Eduardo contratou um técnico de informática que o auxiliou a manipular as fotos em sua posse, montando um slide que sugeria uma apresentação de uma garota de programa, remetendo por um e-mail anônimo para milhares de pessoas o slide. Rose afirmou que o técnico cobrou R$ 1.000,00 (mil reais) para realizar o serviço que, a cada dez dias, disparava um lote de fotos para quinze mil e-mails.

Além disso, Eduardo ainda imprimiu centenas de panfletos e fez dezenas de cópias de CDs, contendo as imagens da vítima, distribuindo-os em comércios e prédios da região, sempre sugerindo se tratar de um portfólio de uma garota de programa.

Todas as mídias compartilhadas continham dados pessoais da vítima, seu telefone e o telefone de seus filhos, iniciando assim uma perturbação constante de sua família.

Os ataques duraram cerca de três anos, sendo que, com o passar do tempo, além da violência virtual, o ex-namorado de Rose passou a persegui-la. Quando as fotos reais acabaram, Eduardo passou a realizar montagens e manipulação de imagens, continuando a enviar lotes de fotos de Rose para os milhares de e-mails.

Diante da repercussão do caso, Rose foi demitida, seu filho de onze anos decidiu passar uma temporada no exterior, sua família passou a ser apontada e sua vida foi inteiramente destruída. Além disso, seus dois filhos tiveram que lidar com problemas psicológicos e sociais, tendo Rose perdido a guarda de seu filho mais velho devido à exposição que sofreu.

Ao todo, Rose move quatro processos contra o ex-namorado, porém, todos com sentenças que não condizem com o dano causado à vítima, que, até hoje, mais de dez anos após o caso, ainda sofre as consequências de tal ato.

Assim como Francyelle, Rose não se calou diante do delito. Ciente de que foi uma vítima de um tipo de violência não tão falada, porém extremamente recorrente, ela criou a ONG “Marias da Internet”136, que oferece suporte e auxílio profissional para vítimas de exposição sexual não consentida na internet.

3.5.4. Caso Saori Teixeira

Saori tinha doze anos quando se envolveu com um menino de dezessete anos, enviando para ele fotos íntimas suas. Após ameaçar divulgar as imagens caso a vítima não fizesse sexo novamente com ele, o jovem decidiu expor as fotos da vítima na escola em que ela estudava137.

A jovem, filha de pais religiosos, se deparou com diversas fotos suas espalhadas nos murais da escola, além de diversos olhares de cochichos de julgamento de seus colegas. Tão logo soube da violência, Saori foi chamada na diretoria, junto com seus pais, de quem apanhou muito.

Após a repercussão do caso, Saori deixou os estudos por dois anos, desenvolveu depressão e tentou suicídio. Por outro lado, o responsável pelo vazamento das imagens permaneceu impune e seguiu normalmente o curso de sua vida.

3.5.5. Caso Julia Rebeca

Júlia, com dezessete anos, moradora da cidade de Parnaíba – PI, foi encontrada morta em seu quarto, com um fio de chapinha enrolado em seu pescoço, na data de 10 de novembro de 2013138. O desfecho trágico veio após a adolescente fazer diversas publicações em redes sociais clamando pelo fim do sofrimento que estava passando e pedindo perdão aos familiares139.

Tal atitude decorreu de uma divulgação não consentida de um vídeo em que a vítima aparecia fazendo sexo com seu então namorado e uma amiga, tendo tal mídia sido compartilhada milhares de vezes na internet.

A menina, antes descrita como alegre, passou seus últimos dias de vida visivelmente deprimida140, se afastando de tudo e de todos. Suas atitudes e as mensagens que deixou antes de cometer suicídio demonstram claramente que a grande maioria das vítimas de delitos do gênero se sentem culpadas.

Reforçando o sentimento de culpa que a própria vítima passa a ter em situações como essa, a sociedade também acaba por apontar a vítima, ainda mais quando mulher, como principal responsável pelo caso.

Neste caso, mesmo após a morte da adolescente, diversos comentários foram dispensados nas redes sociais e nas matérias jornalísticas que relatavam o caso, debochando da vítima e apontando a mesma como culpada do fato.

Diante de toda a exposição e a forma como a situação foi recepcionada pela sociedade, a outra adolescente que aparecia no vídeo tentou suicídio cinco dias após a morte de Júlia. No entanto, foi socorrida a tempo e internada para tratamento.

Ainda após todo o desfecho trágico dos fatos, não houve qualquer manifestação de empatia por parte da sociedade, sendo que a maioria dos internautas continuaram a culpar a jovem.

3.5.6. Caso Giana Laura

O caso de Giana Laura é muito parecido com o de Júlia Rebeca. Quatro dias após a morte de Júlia, no dia 14 de novembro de 2013, a adolescente Giana, de dezesseis anos foi encontrada morta em seu quarto, na cidade de Veranápolis – RS, enforcada por um cordão de seda141.

A motivação do suicídio da adolescente foi a exposição não consensual de uma imagem sua em que aparecia mostrando os seios. A referida imagem foi capturada quando, em uma conversa pelo Skype142 com um colega de escola, após muita insistência, a jovem tirou o sutiã, e o garoto capturou uma imagem deste momento.

Inicialmente, a imagem ficou guardada com o jovem, sem que este informasse a Giana que teria a capturado. A motivação de tal ato seria, de acordo com especulações, chantagear a jovem já que o agressor tinha interesse de manter um relacionamento, o que não era do interesse de Giana143.

Quando a vítima iniciou um relacionamento com outra pessoa, o agressor enviou a foto aos amigos e, em pouco tempo, tornou um viral na internet.

A jovem, acreditando ser uma vergonha para a família, decidiu cometer suicídio, após postar uma despedida nas redes sociais. A família de Giana não teve tempo de agir em apoio a filha que, envergonhada com a situação, não contou aos pais o que estava acontecendo e decidiu que o suicídio seria a melhor forma de resolver a situação.

3.5.7. Caso ThamiresMayumi Sato

A história de Thamiris, assim como as outras, se inicia em uma situação de confiança. A Jovem, então com vinte e um anos, tinha um relacionamento amoroso com um jovem búlgaro de vinte e seis anos e, após diversos episódios de brigas, decidiu colocar um fim no relacionamento, em julho de 2013.

Foi aí que o ex namorado, Kristian Krastanov, iniciou uma sequência de ameaças à jovem, perseguindo-a, ligando para ela repetidas vezes, hackeando sua conta de e-mail, criando diversos perfis falsos nas redes sociais fazendo se passar pela jovem, dentre outras condutas violentas.144

Quando as ameaças se tornaram extremamente violentas, tratando inclusive de morte, a jovem decidiu registrar um Boletim de Ocorrência em 04 de outubro do mesmo ano, tendo o agressor agido de forma ainda mais agressiva diante da situação.

No dia 31 de outubro de 2013 o agressor espalhou as fotos da vítima trocadas em uma situação de confiança. Juntamente com as mídias, o agressor publicou o perfil pessoal da vítima mantido no facebook.

A jovem descobriu que suas fotos circulavam na rede quando se deparou com mais de quarenta solicitações de amizade de pessoas desconhecidas na rede social, além de diversas mensagens. Algumas mensagens a alertavam dos fatos enquanto outras se tratavam de propostas sexuais145.

Thamirisdeletou suas fotos e alterou a privacidade de sua rede social, se afastando temporariamente do facebook, onde permanecia recebendo ameaças do ex namorado.

Em 15 de novembro de 2013 a vítima voltou a receber diversas mensagens de pessoas desconhecidas, foi quando descobriu que suas fotos agora estavam sendo compartilhadas no WhatsApp e disponíveis para download.

Ciente de que tinha sido vítima de pornografia de vingança, a jovem decidiu entrar em contato com os pais do agressor, que a culpabilizaram pelo fato e não ofereceram qualquer auxílio. Cansada da situação, Thamiris publicou uma nota pública contando sobre sua situação em sua página pessoal do facebook, hoje indisponível146.

Neste caso em especial, cabe ressaltar um fato tão repugnante quanto o crime em si. Em uma busca sobre o caso nas páginas de notícia, percebe-se a existência de diversos comentários com conteúdo repulsivo, culpabilizando a vítima, ridicularizando-a, duvidando de seu relato, o que demonstra, mais uma vez, que as vítimas de pornografia de vingança necessitam mais de mudança social do que de repressão penal147.

3.5.8. Caso Mischa Barton

A comprovação de os casos de pornografia de vingança não são restritos aos anônimos é o caso envolvendo Mischa Barton, atriz britânica e americana conhecida por seu papel na série de televisão The O.C..148

A atriz, em março de 2017, se deparou com vídeo em que protagonizava cenas de sexo sendo vendida em lojas de materiais pornográficos. Ao saber dos fatos, a atriz procurou auxílio legal e iniciou um processo contra seu ex-namorado, Jon Zacharias.149

No processo, as partes fizeram um acordo no qual o agressor ficava impedido de disseminar ainda mais mídias que envolvessem a vítima, proibindo a aproximação de Jon à Mischa.

As referidas imagens foram gravadas sem o consentimento da vítima, sendo que o agressor mantinha câmeras escondidas com o fim de capturar imagens da atriz já premeditando a posterior venda das imagens, exatamente como fez, anunciando cópias por até $500 mil dólares.

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Sobre a autora
Vanessa Braga Curiel

Advogada especialista em Direito Penal e Processual Penal, Direito Digital e Pós Graduanda em Direito Público.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CURIEL, Vanessa Braga. Crimes digitais: o crime de pornografia de vingança e pornografia infantil na internet. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5983, 18 nov. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/77892. Acesso em: 26 abr. 2024.

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