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Uso do canabidiol para fins medicinais em crianças com epilepsia refratária no Brasil.

Garantia do direito constitucional à saúde

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09/12/2019 às 16:53
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O presente trabalho aborda sobre uso do canabidiol (CBD) para fins medicinais em crianças com epilepsia refratária no Brasil: garantia do direito constitucional à saúde, sendo de relevância para a sociedade jurídica, bem como para a sociedade acadêmica.

Resumo: O presente trabalho aborda sobre uso do canabidiol (CBD) para fins medicinais em crianças com epilepsia refratária no Brasil: garantia do direito constitucional à saúde, sendo de relevância para a sociedade jurídica, para a sociedade acadêmica e para os cidadãos brasileiros, pois se trata da questão do cumprimento do direito fundamental à saúde, previsto na Constituição Federal de 1988 no artigo 196, por intermédio do acesso do paciente a terapia com o canabidiol, composto presente do Cannabis sativa que não apresenta efeito psicotrópico, porém possui ação anticonvulsivante. Sendo autorizada a importação do medicamento a base do canabidiol mediante a receita médica. Tratando-se de um conceito experimental pelo ordenamento jurídico brasileiro, do Conselho Federal de Medicina e da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. O trabalho tem por objetivo retratar sobre o uso do canabidiol na epilepsia refratária, abordando os aspectos jurídicos brasileiro, legislações reguladoras e a constitucionalidade do acesso ao tratamento alternativo para a epilepsia refratária, bem como o dever do Estado em garantir o acesso ao tratamento.

Palavra-chave: Canabidiol (CBD), uso terapêutico, epilepsia, legalização e Constituição Federal.


Em 10 de dezembro de 1948 em Paris, foi assinada a Declaração Universal dos Direitos do Homem, reflexo da junção entre os princípios religiosos do cristianismo conjuntamente com os ideais libertários da Revolução Francesa. Representando-se deste modo um marco inicial da defesa dos direitos humanos com objetivo de estabelecer parâmetros humanitários universalmente respeitados, independentemente de sexo, raça, cor, crença etc. Observa-se que quanto mais civilizada é uma sociedade, consequentemente mais avançada são a proteção aos direitos humanos desta (BARCELOS, 2010).

Deste modo coadunando com ideais estabelecidos pela Declaração Universal dos Direitos do Homem, promulgou-se em 05 de outubro de 1988 a Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB/88), a Constituição Cidadã, até hoje constitui-se de um marco de defesa das garantias e direitos fundamentais, sendo uma das mais avançadas no mundo nesse quesito. Logo em seu Título II, traz em seu texto, no artigo 5° e seus incisos, os Direitos e Garantias Fundamentais, estes subentendidos como direitos individuais e coletivos; inerentes ao conceito de pessoa humana e à sua personalidade, v.g. direito à vida, à saúde, à igualdade, à honra, à propriedade, à segurança e a dignidade (MAZZUOLI, 2018).

Neste contexto seguindo os passos estabelecidos no nosso ordenamento jurídico pátrio, precisamente na CRFB/88 no que esta tutela, o direito fundamental à saúde e sua prestação pelo Estado, relevante se faz trazer à baila o conceito de saúde, a Organização Mundial de Saúde (OMS), define saúde como “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não somente ausência de afecções e enfermidades”.

Deste conceito pode-se extrair que não basta a ausência de afecções e enfermidades para que se constitua o status de saúde, faz-se mais que isso, ou seja, também há um macro sistema que circunda o indivíduo para que o mesmo exerça seu pleno estado de saúde.

Garantir tratamento digno ao paciente que é diagnosticado com qualquer tipo de patologia, é obrigação do ordenamento jurídico, garantir-lhes o acesso a medicamentos relacionados ao tratamento da doença acometida e procedimentos médicos necessários proporcionando o bem-estar do paciente (FALCÃO et al., 2017).

De acordo com Falcão et al. (2017), o texto da Constituição Federal redigido em 1988, no artigo 6° o direito à saúde está situado no rol de direitos sociais, destacando-se o dever do Estado de proteger e guardar o referido bem jurídico, visto que está inerentemente coadunado ao direito à vida, conforme atenta-se o artigo 196 da Carta Magna, in verbis:

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

Ainda no tocante à promoção e garantia à saúde pelo Estado, a lei infraconstitucional, precisamente a Lei n° 8080/1990 (Legislação do SUS), dispondo sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, sua organização e funcionamento, dispõe:

Art. 2º A saúde é um direito fundamental do ser humano, devendo o Estado prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício.

§ 1º O dever do Estado de garantir a saúde consiste na formulação e execução de políticas econômicas e sociais que visem à redução de riscos de doenças e de outros agravos e no estabelecimento de condições que assegurem acesso universal e igualitário às ações e aos serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.

A resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) Nº 2.113/2014 que regulamenta autorização do uso do CBD para fins terapêuticos prevê que a Cannabis sativa contém, entre os seus inúmeros componentes, o CBD é um canabinoide que pode ser isolado ou sintetizado por métodos laboratoriais seguros e confiáveis, mesmo com a diminuição de estudos em relação a substância, os estudos vem comprovando os efeitos terapêuticos do CBD, em crianças com epilepsia refratária (MIRANDA, 2016).


1. Epilepsia

A epilepsia é uma disfunção cerebral que tem como característica convulsões, alterações da atividade dos neurônios, com impulsos elétricos exacerbados, devido a alterações no córtex cerebral, e isso pode causar várias consequências para o paciente, como consequências neurobiológicas, cognitivas, psicológicas e sociais (ALVARENGA et al., 2007).

De acordo com o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas (PCDT) do Ministério da Saúde, 70% dos pacientes em tratamento com anticonvulsivantes respondem ao tratamento de maneira satisfatória, porém 30% dos pacientes são refratários, ou seja, continuam a ter crises, mesmo com o tratamento adequado com medicamentos anticonvulsivantes disponíveis atualmente, sendo resistente ao tratamento farmacológico, apresentando crises descontroladas (BRAGATTI et al, 2013).

Etiologicamente em torno de 0,5% a 1% da população é afetada pela epilepsia, sendo uma patologia que apresenta vários fatores como: traumatismo no nascimento, incompatibilidade sanguínea ou hemorragia, doenças infecciosas como: meningite, abuso de bebidas alcoólicas, de drogas, tumores cerebrais, traumatismo craniano, doenças metabólicas e acidentes vasculares cerebrais, no entanto ainda não se conhece todos os aspectos das crises convulsivas, compreende-se que são causadas pelos impulsos anormais dos neurônios de maneira exacerbada, acarretando a crise convulsiva (COSTA et al., 2012).

A epilepsia é uma doença neurológica grave, atinge cerca de 50 milhões de pessoas no mundo, e 40 milhões destas pessoas vivem em situações de precariedade, países de baixa renda que estão em desenvolvimento, atingindo pessoas de todas as raças, sexo, e condições socioeconômicas, no entanto pessoas que morem em países onde o acesso ao medicamento é difícil devido à localização, tendem a apresentar crises convulsivas mais severas pela falta do medicamento (COSTA et al., 2012).


2. Cannabis sativa: breve histórico

A Cannabis sativa conhecida como maconha é cultivada desde a antiguidade, planta originada da Ásia, com aproximadamente 400 componentes químicos, dentre eles os canabinoides, destacando o canabidiol (CBD) que não possui atividades alucinógenas, mas sim algumas propriedades terapêuticas (SANTOS, 2017).

No século XVIII foi relatada a presença da planta no Brasil para a produção de fibras, o cultivo e beneficiamento da Cannabis teve amparo da Coroa Portuguesa em Santa Catarina (1747), Rio Grande de São Pedro (entre 1762 e 1766) e Rio de Janeiro (a partir de 1772). Contudo, pressupõe que a maconha existe há mais tempo, tendo sido utilizada pelos escravos (ROSA, 2018).

No ano de 1961, a Convenção Única de Drogas Narcóticas proibiu seu porte, consumo e comercialização, sendo reconhecida como droga ilícita mais consumida no mundo. Nos dias atuais existem críticas em relação à lógica empregada na época para classificação das substâncias psicoativas em lícitas e ilícitas, autocrática e sem relação com o potencial destas substâncias em causar agravos ao indivíduo que as utilizam (JESUS et al., 2017).

Hipócrates usou a planta na Grécia como terapêutica junto a dietas, bebidas alcoólicas e medicamentos. Os Assírios inalavam a Cannabis para aliviar sintomas de depressão, no entanto, o primeiro relato medicinal da planta é atribuído aos chineses, utilizam para tratamentos de constipação intestinal, tuberculose, malária e até epilepsia, entre outras.

A descoberta da Cannabis foi atribuída ao imperador e farmacêutico chinês Shen Nieng, o trabalho em farmacologia defendia o uso da Cannabis, na terapêutica do reumatismo e apatia, e como sedativo, os chineses classificaram a planta em três classes: inferior, média e superior, a classe inferior atuavam doenças específicas, a classe média amparava a energia vital e fortificariam as funções do corpo, já as de classe superior afetariam todo o organismo, gerando um equilíbrio e potencializando as defesas do organismo (OLIVEIRA et al., 2018).


3. Canabidiol: uso terapêutico em crianças com epilepsia refratária

No ano de 1960 o professor de química médica, o israelense Raphael Mechoulam identificou e isolaram as estruturas químicas de diversas substâncias da Cannabis sativa junto com seu grupo de pesquisadores, a substância que mais despertou interesse do grupo foi o delta-9-tetraidrocanabinol (∆-9-THC), sendo responsável pelas atividades psicoativas e o canabidiol composto não psicotrópico da planta e compõe cerca de 40% dos extratos da Cannabis. Porém os efeitos antiepiléticos do CBD foram descobertos em 1970 pelo cientista brasileiro Elisaldo Carlini e comprovados em humanos, no ano de 1980 (PAULO et al., 2015).

De acordo com Rosa (2016), em 1975 o professor Elisaldo Carlini, um dos principais pesquisadores sobre o uso terapêutico da Cannabis sativa, comandou as primeiras pesquisas sobre os efeitos anticonvulsivantes do CBD. Na década de 1980 em São Paulo foram realizados testes em dez indivíduos com epilepsia que não respondiam ao tratamento convencional, as crises epiléticas foram cessadas em todos que estavam sobre efeito de CBD.

Segundo a Nota técnica nº 02/2015 em uma pesquisa autorizada pelo Food Drugs Administration (FDA) que está em desenvolvimento, apresentou em seus resultados preliminares de 23 pacientes com idade de 10 anos, que 39% dos pacientes apresentaram diminuição de 50% de suas crises epiléticas, proporcionando o bem-estar do paciente e da família, várias pesquisas foram realizadas e o CBD se mostrou eficaz na terapêutica da epilepsia refratária, enfatiza – se que a autorização da substância é para fins terapêuticos e não recreativo (MIRANDA, 2016).

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3.1. Caso Anny Fischer: a esperança e um marco na importação do canabidiol no brasil

Anny Fischer, hoje com dez anos de idade, filha de Norberto Fischer e Katiele Fischer, e irmã de Júlia. Nasceu com algumas características fora dos padrões, com apenas quarenta dias, a bebê Anny apresentou a primeira crise convulsiva, e aos quatro anos de idade foi diagnosticada com CDKL5, uma síndrome rara, semelhante a Síndrome de Rett, tendo como característica as múltiplas crises convulsivas, ocasionando na criança o impressionante e triste quadro de oitenta crises convulsivas em uma única semana, causando na criança um retrocesso em seu desenvolvimento (GUSMÃO, 2016).

Relata o pai de Anny, Norberto Fischer;

Nessa época, ela teve uma piora do quadro. De uma criança que andava e estava começando a falar, virou um vegetal na cama, que passava o dia inteiro babando. Na busca desesperada por algo que pudesse ajudar, eu e minha esposa, Katiele, soubemos do CBD. Fomos estudar e descobrimos que era derivado da maconha, o que nos causou um grande impacto. Além do preconceito que a gente tinha em relação à planta, era ilegal no Brasil. Mas no desespero de ver a Anny indo embora, resolvemos arriscar. Com nove semanas de uso, a Anny conseguiu ficar pela primeira vez na vida uma semana inteira sem ter convulsões.

Foi nessa época que os pais de Anny, com esperança em um tratamento alternativo para sua filha, iniciaram sua jornada de importação do produto, até então ilegalmente no país, com pouco tempo de uso já houve melhora de cerca de 90 % no quadro da doença.

No entanto, por tratar-se de importação de substância até então ilegal, não incluída na lista da ANVISA, ou seja, substâncias proscritas no Brasil, o produto fora barrado nos Correios, o remédio acabou e os pais se viram em uma burocracia envolvendo a ANVISA e os Correios, sendo aí que se inicia uma batalha judicial em busca da liberação da importação do produto (MATSUURA, 2018).

De acordo com Mariângela Gallucci (2014), conforme publicação no jornal O Estado de S. Paulo, o caso de Anny foi o pioneiro no país e em uma decisão do juiz Bruno César Bandeira Apolinário, da 3º Vara do Distrito Federal, garantiu a o direito de importar e usar o CBD, desde que haja prescrição médica. Na decisão o magistrado afirmou, que, “no que diz respeito à epilepsia, a substância revelou-se eficaz na atenuação ou bloqueio das convulsões. No caso da autora, (foi) fundamental na debelação das crises, dando-lhe qualidade de vida", e afirmou ainda que a “Constituição de 1988 estabelece que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado e, portanto, compete à Anvisa a obrigação de proteger a saúde da população’’.

Deste modo o caso da menina Anny tornou-se um marco temporal na legislação regulamentatória do país, iniciando assim uma verdadeira judicialização da saúde, com milhares de pais recorrendo ao judiciário em busca do direito fundamental da criança ao tratamento da epilepsia proporcionado pelo uso do CBD (STJ, 2019).

Vale ressaltar que até meados do ano de 2014 o canabidiol constava incluído na lista de substâncias proscritas (vedadas) no país, e somente a partir da Resolução da Diretoria Colegiada (RDC) n° 66 de 2016 da ANVISA, o CBD passou a ser incluso na lista C1 de substâncias sujeitas a controle especial (ANVISA, 2016).

Após anos de estudos, alguns países autorizaram o uso da Cannabis para fins medicinais. No Brasil, após essa luta de milhares de pais em busca do tratamento da epilepsia realizada com uso do CBD, finalmente, no ano de 2015 a ANVISA autorizou a importação de medicamentos à base de canabidiol em associação à outros canabinoides para terapêutica de crianças com epilepsias refratárias, estabelecendo alguns critérios para a importação da substância.

A ANVISA é responsável por conceder a autorização da importação de medicamentos contendo canabidiol, a autorização é válida por um período de um ano, é autorizado aos pais ou responsáveis legais a importação da quantidade que foi prescrita pelo médico que possui especialização em neurologia, neurocirurgia e psiquiatria, somente será autorizado quando o paciente submetido a terapêutica farmacológica disponível no mercado, porém não obteve melhora no quadro. (LIMA, 2015).

A resolução número 156/2017 da ANVISA caracterizou a sativa L. como planta medicinal, ampliando-se a escala das características orgânicas da planta, com isso, estão sendo realizados novos estudos em relação às atividades terapêuticas do CBD e os efeitos adversos a longo prazo da substância supracitada em pacientes refratários, com o intuito de sanar as lacunas existentes nos processos fisiopatológicos da epilepsia refratária (ZAGANELLI et al., 2018).


4. ASPECTOS JURÍDICOS

4.1. Resoluções e Portarias Vigentes: Regulamentação ANVISA e Conselho Federal de Medicina (CFM)

De acordo com Gripp (2017), após anos de estudos e relação ao CBD alguns pais entraram na justiça para que pudessem importar medicamentos à base do Canabidiol, até dezembro do ano de 2014 a ANVISA tinha recebido 297 pedidos de importação da substância supracitada, em 16 de dezembro do mesmo ano, o Conselho Federal de Medicina publicou a Resolução CFM 2.113/14, esclarece que o uso compassivo da substância é somente para o tratamento de epilepsias em crianças e adolescentes que são refratárias aos tratamentos convencionais, tal fato foi bastante criticado por ser possível o direito à importação somente crianças que não responderam ao tratamento com anticonvulsivantes.

A ANVISA, por meio de decisão de seu órgão colegiado, em 14 de janeiro de 2015, incluiu o canabidiol, antes substância proibida, como substância controlada e enquadrada na lista C1 da Portaria 344/98, de acordo com a Resolução/RDC nº 3, publicada em 26 de janeiro de 2015. Desse modo essa mudança foi relevante, pois a utilização deixou de ser ilegal e permitiu a realização de novas pesquisas, e também favoreceu a importação da substância, porém a ANVISA estabeleceu alguns critérios para a importação do canabidiol (GRIPP, 2017).

RESOLUÇÃO - RDC No- 17, DE 6 DE MAIO DE 2015:

Define os critérios e os procedimentos para a importação, em caráter de excepcionalidade, de produto à base de Canabidiol em associação com outros canabinóides, por pessoa física, para uso próprio, mediante prescrição de profissional legalmente habilitado, para tratamento de saúde.

O Conselho Federal de Medicina (CFM), órgão que fiscaliza e normatiza a prática médica no Brasil, por intermédio da Resolução CFM nº 2.113/2014 aprovou o uso do canabidiol para o tratamento de epilepsias da criança e do adolescente que apresenta resistência a terapêutica farmacológica, ou seja, falha de resposta ao tratamento com a monoterapia ou combinação de dois anticonvulsivantes tolerados e apropriadamente usados para cessar ou diminuir as crises epiléticas (Seibel et al., 2017).

A Resolução CFM nº 2.113/2014 “aprova o uso compassivo do canabidiol para o tratamento de epilepsias da criança e do adolescente refratárias aos tratamentos convencionais”.

O CFM defende o acesso a um medicamento à base do canabidiol, principal composto não psicoativo da Cannabis, e não o uso recreativo da droga, pois essa traz diversos agravos à saúde. “CFM regulamenta o uso do canabidiol no tratamento de epilepsia” publicado site da sociedade brasileira de pediatria:

Apesar da liberação do uso do canabidiol no país, o Conselho Federal de Medicina reitera sua posição contrária sobre a descriminalização e legalização das “Cannabis indica e sativa” e seu consumo “recreativo”. Esta posição está alinhada com a postura da autarquia com relação às políticas de combate ao tabagismo e alcoolismo e ao seu compromisso com a defesa do bem-estar de todos.

Silva (2015) corrobora, que mesmo sendo restrita a utilização do CBD, a sua legalização configura um grande avanço para as crianças com epilepsia, para as famílias e para os estudos científicos em relação ao canabidiol. Com uma enorme perspectiva em relação às pesquisas possibilitando a descoberta de novas funções terapêuticas, com novos estudos, é possível concluir os possíveis efeitos adversos a longo prazo e em relação a toxicidade do CBD, para assegurar uma terapêutica segura ao paciente para melhorar a sua qualidade de vida.

No ano de 2016 em cumprimento à decisão judicial proferida nos autos da Ação Civil Pública nº 0090670-16.2014.4.01.3400, proposta pelo Ministério Público Federal no Distrito Federal e deferida pelo juiz Marcelo Rebello Pinheiro, da 16ª Vara/DF, a ANVISA publicou, a RDC 66/2016, que permite a prescrição médica e a importação, por pessoa física, de produtos que contenham as substâncias Canabidiol (CBD) e Tetrahidrocannabinol (THC) em sua formulação, exclusivamente para uso próprio e para tratamento de saúde, in verbis;

A Diretoria Colegiada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, no uso da atribuição que lhe conferem os incisos III e IV, do art. 15, da Lei nº 9.782, de 26 de janeiro de 1999, o inciso V e §§ 1º e 3º do art. 53 do Regimento Interno aprovado nos termos do Anexo I da Resolução da Diretoria Colegiada - RDC nº 61, de 03 de fevereiro de 2016, publicada no DOU de 05 de fevereiro de 2016, conforme decisão do Circuito Deliberativo CD_DN 208/2016, de 17 de março de 2016, em cumprimento à decisão judicial proferida, em 03 de março de 2016, nos autos da Ação Civil Pública nº 0090670- 16.2014.4.01.3400, adota a seguinte Resolução da Diretoria Colegiada e eu, Diretor-Presidente, determino a sua publicação.

Art. 1º O artigo 61 da Portaria SVS/MS nº 344, de 12 de maio de 1998, passa a vigorar com a seguinte redação:

"Art. 61 (...)

§1º Excetuam-se do disposto no caput:

I - a prescrição de medicamentos registrados na Anvisa que contenham em sua composição a planta Cannabis sp., suas partes ou substâncias obtidas a partir dela, incluindo o Tetrahidrocannabinol (THC).

II -a prescrição de produtos que possuam as substâncias canabidiol e/ou tetrahidrocannabinol (THC), a serem importados em caráter de excepcionalidade por pessoa física, para uso próprio, para tratamento de saúde, mediante prescrição médica.

§2º Para a importação prevista no inciso II do parágrafo anterior se aplicam os mesmos requisitos estabelecidos pela Resolução da Diretoria Colegiada - RDC nº 17, de 6 de maio de 2015" (ANVISA).

Diante do exposto, o intuito do presente artigo é a defesa da descriminalização e legalização do CBD para o uso terapêutico aplicado aos casos de epilepsia refratária, ou seja, em casos que a terapêutica convencional não se mostrou satisfatório; e além, uma melhor propagação perante à sociedade sobre os efeitos benéficos da planta Cannabis sativa, visto que há uma banalização acerca exclusivamente do seu efeito alucinógeno conhecido pela população de modo geral. Com a promoção do seu uso terapêutico, seu uso medicinal e seus benefícios perante à sociedade de modo geral, poderá deste modo por meio dos conselhos de medicina juntamente com o legislativo a elaborar leis e programas de incentivos que corroborem com estudos sobre a planta, visto que o presente artigo aborda uma doença específica, mas sabe-se que sua aplicabilidade não se restringe somente à esta.

Uma extirpação deste pré-conceito (ideia preconcebida) tido de modo mais amplo pela população que se relaciona à Cannabis sativa (“maconha”) com seu efeito degradante alucinógeno, resultaria em um maior acesso pelos que necessitam do tratamento e um maior desenvolvimento dos estudos acerca dos benefícios, que infelizmente ainda são desconhecidos pela maior parte da sociedade.

4.2. Relevância constitucional; garantia fundamental do acesso à saúde

A priori, antes de adentrarmos em tema tão relevante mister se faz conceituarmos o que seria Direito, Constituição e Garantia fundamental, tarefa esta de grande dificuldade acadêmica, pois há muito tempo insignes autores já se debruçaram neste mister.

De acordo com a Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen (1998), podemos analisar o Direito, partindo inicialmente do seu significado na linguagem, v.g. a “palavra Recht (Direito) na língua alemã e as suas equivalentes nas outras línguas (law, droit, diritto etc.)’’, e se estas apresentem características comuns, em segundo momento, como uma ordem de conduta humana, in verbis; “com efeito, quando confrontamos uns com os outros os objetos que, em diferentes povos e em diferentes épocas, são designados como “Direito”, resulta logo que todos eles se apresentam como ordens de conduta humana [...] as normas de uma ordem jurídica regulam a conduta humana’’. Partindo-se deste conceito tem-se que o Direto se compõe de ordens normativas que regulam as condutas humanas e se desenvolvem com o tempo e as evoluções da sociedade.

Partindo para um prisma filosófico, Norberto Bobbio (2004); “a filosofia do direito pode, consequentemente, ser definida como o estudo do direito do ponto de vista de um determinado valor, com base no qual se julga o direito passado e se procura influir no direito vigente”. Kant associa o Direito à liberdade, “ Direito é o conjunto das condições por meio das quais o arbítrio de um pode entrar em acordo como arbítrio de outro, segundo uma lei universal da liberdade”.

No que tange o conceito de Constituição, José Afonso da Silva descreve;

A Constituição do Estado, considerada sua lei fundamental, seria, então, a organização dos seus elementos essenciais: um sistema de normas jurídicas, escritas ou costumeiras, que regula a forma do Estado, de seu governo, o modo de aquisição e o exercício do poder, o estabelecimento de seus órgãos, os limites de sua ação, os direitos fundamentais do homem e as respectivas garantias. Em síntese, a Constituição é o conjunto de normas que organiza os elementos constitutivos do Estado (SILVA, 2005).

Contudo, o eminente autor alerta que tal conceito expressa uma ideia parcial do que é uma Constituição, pois, há profundas divergências doutrinárias acerca do sentido a ser entendido, seja ela no plano sociológico ( Ferdinand Lassalle) sendo uma essência, a soma dos fatores reais do poder que regem nesse país, sendo esta a constituição real e efetiva, não passando a constituição escrita de uma “folha de papel’’; ou no plano político (Carl Schmitt) como decisão política fundamental, decisão concreta de conjunto sobre modo e forma de existência de unidade política; ou ainda no plano jurídico (Hans Kelsen), constituição é, então, considerada norma pura, puro dever ser, sem qualquer pretensão a fundamentação sociológica, política ou filosófica (BARCELOS, 2010).

Apesar das várias concepções, a maneira correta de vê-la de acordo com José Afonso da Silva, é na sua universalidade, não na sua unilateralidade, deve haver toda uma concepção estrutural coadunando seu aspecto normativo com a realidade social, dando-lhe conteúdo fático e sentido axiológico, tratando-se de um complexo que se entrelaçam, aspectos jurídicos, sociológicos, políticos e sociais, formando assim, a Constituição.

Sob a ótica da proteção dos direitos humanos e garantias fundamentais, a doutrina costuma classificar, os primeiros relativos ao âmbito dos sistemas de proteção internacional, e os últimos sendo de ordem interna de cada Estado, assim explana Mazzuoli (2018);

Direitos humanos é uma expressão intrinsecamente ligada ao direito internacional público. Assim, quando se fala em “direitos humanos”, o que tecnicamente se está a dizer é que há direitos que são garantidos por normas de índole internacional, isto é, por declarações ou tratados celebrados entre Estados com o propósito específico de proteger os direitos (civis e políticos; econômicos, sociais e culturais etc.) das pessoas sujeitas à sua jurisdição[...]Essa diferenciação terminológica adveio do momento em que os direitos fundamentais (internos) começaram a ser replicados ao nível do direito internacional público, a partir da intensificação das relações internacionais e da vontade da sociedade internacional em proteger os direitos das pessoas numa instância superior de defesa contra os abusos cometidos por autoridades estatais, o que levou os direitos de índole interna (fundamentais) a deterem o novo status de direitos internacionalmente protegidos (direitos humanos).

Ainda de acordo com José Afonso da Silva, o termo “fundamental’’ relaciona-se com aquelas prerrogativas de garantias essenciais para uma vida digna, livre e igual de toas as pessoas, tratando-se de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana, não convive, nem ao menos sobrevive, necessitando que tais garantias seja de todo modo reconhecidas e materialmente efetivadas. Nessa concepção, acrescenta; “ Direitos Fundamentais do homem, não como macho da espécie, mas no sentido de pessoa humana[...] é com esse conteúdo que a expressão encabeça o Título II da Constituição, que se completa, como direitos fundamentais da pessoa humana, expressamente, no art. 17”(SILVA, 2005).

Diante do exposto, pode-se singrar pelos mares constitucionais em relação às garantias fundamentais, especificamente ao direito à saúde. A CRFB/88, representou um grande avanço no que concerne as garantias e direitos fundamentais da pessoa humana, logo em seu Título I, Dos Princípios Fundamentais, estabelece em seu art. 1º;

A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:

I - a soberania;

II - a cidadania

III - a dignidade da pessoa humana;

IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;

V - o pluralismo político. [Grifei]

Visto que tal objetivo está inserido em diversos artigos da Constituição Federal de 1988, podemos citar o art. 5°; todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade[...] e inserido nos Direitos Sociais, assim reza o art. 6°, são direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição. E art. 196;

A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

No escopo de garantir o acesso à saúde e regulamentar o art. 197 da CRFB/88 foi criada a Lei n° 8.080 de 1990 que visa regular as ações do Sistema Único de Saúde (SUS), dispondo logo em seu art. 2°; a saúde como um direito fundamental do ser humano e um dever do Estado sua promoção, seguindo como parâmetros os princípios do SUS; a universalidade, a descentralização, a igualdade e a integralidade da assistência à saúde.

No que tange a saúde, a criança tem especial proteção, é o que assevera José Afonso da Silva, “ ao Estado incumbe ainda promover programas de assistência integral à saúde da criança e adolescente” (SILVA, 2005).

No entanto, por mais extenso que seja o aparato jurídico constitucional e infraconstitucional que ampare e tutele tal direito fundamental, em muitas situações pais de crianças portadoras de doenças raras cujo o tratamento satisfatório ainda dependem de medicamentos não inclusos ou ainda que inclusos não comercializados em território nacional, deparam-se com o óbice de enfrentar longos processos judiciais para a fim de obterem o direito de tratarem seus filhos, o que causam grande angústia e sofrimento, tanto para os próprios pais, e principalmente para as crianças que ficam à espera do medicamento, em especial a doença aqui tratada, a epilepsia refratária, que causa diversos episódios convulsivos, ferindo assim a dignidade da pessoa humana.

Em muito se deve ao fato de que o Estado ao atender o interesse secundário em detrimento do interesse primário, acaba por ocasionar óbices ao direito fundamental. É o que podemos extrair da lição do prof. Alexandre Mazza, apud, Renato Alessi;

Interesse público primário é o verdadeiro interesse da coletividade, enquanto interesse público secundário é o interesse patrimonial do Estado como pessoa jurídica.

A distinção é relevante porque os interesses do Estado podem não coincidir com os da sociedade. São exemplos de interesse público secundário: a interposição de recurso com finalidade estritamente protelatória, o aumento excessivo de tributos e a demora para pagamento de precatório.[Grifei].

Ainda de acordo com Alexandre Mazza, os interesses secundários só teriam legitimidade se estes forem para o atingimento dos interesses primários, ou seja, o interesse da sociedade (MAZZA, 2012).

Muito se deve esse diapasão, o fato desses medicamentos terem alto custo, para o tratamento de uma criança com epilepsia, os medicamentos saem em torno de mil reais mensais, fato que se deve pela mora regulamentatória pela ANVISA e legislações que garantam e proporcionem o incentivo à pesquisa em território nacional, devido a isto as pesquisas no país ainda estão em estágios iniciais, dependendo deste modo da importação do produto.

Em meio à judicialização ao acesso à saúde, os juízes têm demonstrado sensibilidade ao tema, é o que pode ser verificado na jurisprudência, v.g. a primeira vitória advinda da 3ª Vara Federal do Distrito Federal da sentença do juiz Bruno César Bandeira Apolinário, como já explicitado alhures, a concessão do CBD à criança Anny Fischer, até então a substância ainda era proscrita pela ANVISA, permitindo a importação do produto seguindo um processo burocrático intermediado pela agência. Sendo os primeiros no país a conseguirem a autorização na justiça.

Em decisão recente, a Segunda Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ), em decisão inédita permitiu uma família do Pernambuco, a importação direta do CBD para o tratamento da criança que sofre de epilepsia refratária. É o decisório do Recurso Especial N° 1.657.075 – PE (2017/0044695-1), Relator Ministro Francisco Falcão;

CONSTITUCIONAL. PROCESSO CIVIL. FALTA DE INTERESSE DE AGIR. PRÉVIO REQUERIMENTO ADMINISTRATIVO. DISPENSABILIDADE.DIREITO FUNDAMENTAL À SAÚDE. IMPORTAÇÃO DE MEDICAMENTO SEM REGISTRO NA ANVISA. CANNABIDIOL. MENOR INCAPAZ. TRATAMENTO DE PARALISIA CEREBRAL E EPILEPSIA INTRATÁVEL.

1. Apelações interpostas pela União e pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA, em face da sentença que julgou procedente o pedido, determinando aos promovidos que autorizem a importação do medicamento "Cannabidiol" pelos Autores, para tratamento em menor incapaz, portadora de Paralisia Cerebral, forma Tetraparética/Distônica, com Retardo Mental Grave e quadro de Epilepsia Intratável.

2. O princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, da CF/88) torna dispensável o prévio esgotamento da instância administrativa para utilização da via judicial, especialmente em demandas de caráter urgente, como o fornecimento de medicamentos.

3. Configurada a ineficácia dos tratamentos tradicionais, por meio de exaustivos relatórios médicos, mostra-se cabível a concessão de provimento judicial para fins de importação de medicamento sem registro na ANVISA, como o "Cannabidiol", com a devida prescrição médica, no intuito de resguardar o direito constitucional à saúde. Apelações e Remessa Necessária improvidas.

[...] Nesse contexto, não se mostra razoável a conclusão de que a garantia de acesso aos medicamentos, inclusive pelo meio de importação direta, deva ficar restrita ao ente público responsável pelo registro. Tal qual ocorre no caso em análise, por vezes, o acesso aos fármacos e insumos não é obstado por questões financeiras, mas sim por entraves burocráticos e administrativos que prejudicam a efetividade do direito fundamental à saúde.

Como assevera o Min. Francisco Falcão, entraves burocráticos e administrativos constituem-se em óbices a efetividade do direito fundamental à saúde, embora a Constituição Federal garanta tal direito o mesmo ainda é dificultado o seu exercício, necessitando em vários casos serem submetidos à apreciação judicial a fim que se obtenha a tutela almejada.

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